A Constituição Federal de 1988 completa 30 anos na próxima sexta-feira, dia 5 de outubro. Promulgada pelo Congresso Nacional Constituinte, a Carta Magna marcou o processo de redemocratização do País após 21 anos de regime militar e ampliou a proteção aos direitos fundamentais dos indivíduos, como saúde, educação e moradia, entre outros pontos. Com isso, e com o maior acesso da população à Justiça, também aumentou bastante o número de processos que chegam ao Judiciário todos os dias.

Nesta entrevista, o desembargador Kildare Gonçalves Carvalho, do TJMG, avaliou as mudanças que a Constituição trouxe para a Justiça brasileira e se é o momento de se pensar em um novo texto para o País.

De que forma a Constituição impactou o Judiciário brasileiro?

No pós-88, com o advento do Estado Democrático de Direito, a crescente expansão do Direito, dos seus procedimentos e instituições sobre política e sociabilidade tem levado o Judiciário a adotar uma postura mais ativa do que a de simples aplicador da lei, cabendo-lhe sindicar a própria legitimidade da questão sob julgamento. São exemplos dessa nova realidade: a ação civil pública, em que se busca salvaguardar o patrimônio público e social, o meio ambiente e os interesses difusos; o julgamento das ações populares, em que se deve considerar a moralidade administrativa e a tutela do meio ambiente, o patrimônio histórico e cultural; o mandado de segurança, o mandado de injunção, o habeas corpus, a ação direta de inconstitucionalidade, a ação declaratória de constitucionalidade e a arguição de descumprimento de preceito fundamental.

Nota-se ainda que as relações entre Judiciário e democracia se estreitaram, com a inserção da atividade jurisdicional na vida política, social e econômica do País (o Judiciário é o avalista do Estado de Direito), o que acarretou o conhecido fenômeno da judicialização da política e das relações sociais, a envolver um novo ativismo judicial dos tribunais, e o interesse dos políticos e administradores em adotar métodos e procedimentos típicos do processo judicial, bem como parâmetros jurisprudenciais referidos pelos juízes em suas decisões.

A expansão do Poder Judiciário decorreu, sobretudo, da superação de um modelo positivista de jurisdição constitucional, em que temas como mudança de partido por parlamentar, cotas raciais em universidades públicas, pesquisas com células-tronco embrionárias, aborto de fetos anencefálicos, para citarmos algumas das questões submetidas ao controle judicial, foram examinadas e decididas pela aplicação direta de princípios constitucionais e com o uso de argumentos não meramente jurídicos.

De qualquer modo, a judicialização da política ocorre porque os tribunais são chamados a se pronunciar onde o funcionamento do Legislativo e do Executivo se revela falho, insuficiente ou insatisfatório, especialmente na América Latina, em que a judicialização do conflito social é resultado da democratização da sociedade e ocupa o espaço das instituições políticas incapazes de dar respostas ao conflito social.

Disso tudo, tem resultado um crescente impacto na atividade do Judiciário a exigir medidas racionais e pragmáticas para que resolva os conflitos, que, a cada dia, se avolumam no âmbito dos Tribunais e dos juízes singulares.

O caminho para diminuir a grande quantidade de processos que chegam ao Judiciário passa por mudanças constitucionais?

A busca por soluções que envolvem essa questão passa muito mais por mudanças na legislação processual e na prática judiciária do que por mudanças na Constituição. A propósito, menciono que, em 2015, foi editado o novo Código de Processo Civil, cuja entrada em vigor se deu em 2016, que trouxe significativas mudanças na processualística brasileira, com vistas a tornar mais célere a prestação jurisdicional, contribuir para a efetivação do princípio constitucional da razoável duração do processo e conferir maior simplicidade ao sistema recursal brasileiro, um dos vilões da morosidade do sistema.

Daí o comando, de obrigatório cumprimento pelos tribunais, expresso no art. 926 do novo CPC, de que os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.O novo CPC passou também a vincular a atividade jurisdicional a determinados precedentes dos tribunais, estabelecendo, em seu art. 927, que os juízes e os tribunais observarão: “I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II - os enunciados de súmula vinculante; III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V- a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.”

A Constituição de 1988 já demanda um aprimoramento maior do que o que tem sido feito com emendas constitucionais?

Não se deve perder de vista que a Constituição, nesses 30 anos de vida, não é a Constituição de 1988, mas aquela interpretada ou até mesmo reinventada pela jurisdição constitucional e por uma hermenêutica contemporânea e pragmática no dia a dia do Judiciário. Portanto, a atualização do texto constitucional vem sendo diariamente implementada, no âmbito do Judiciário, pela jurisdição constitucional, sendo cada juiz um intérprete de suas normas e princípios.

Não se deve esquecer de que, no pós-88, a Constituição já foi objeto de 99 emendas e mais 6 emendas de revisão, o que totaliza 105 emendas. Não são emendas formais que garantem o cumprimento da norma constitucional, mas sua defesa e garantia dependem, sobretudo, de uma jurisdição constitucional adequada às exigências políticas, sociais e econômicas da contemporaneidade.

Uma nova constituinte no cenário atual é desejável ou necessária?

A Constituição de 1988 prevê de maneira expressa a sua alteração, que se faz por emendas constitucionais, respeitadas as cláusulas imodificáveis também nela referidas. Penso que uma constituinte, ainda que parcial, convocada para promover reforma constitucional, depende de uma ruptura da ordem jurídica e política brasileira. Fora desse quadro, não há espaço para qualquer mudança do texto constitucional, a não ser pelo caminho das emendas.