Carlos Roberto Loiola
Magistrado em Minas Gerais


Encontram-se a granel em repertórios de jurisprudência hipóteses de cassação de sentenças prolatadas em casos de crime continuado, ao entendimento de que “o princípio constitucional da individualização das penas, previsto no artigo 5º, inciso XLVI, da CR, impõe ao magistrado a indicação precisa do crime pelo qual o réu está sendo condenado, operando-se a fixação da reprimenda com estrita observância ao previsto nos artigos 59 e 68, do CP, sob pena de nulidade da decisão, pois havendo condenação por crimes em continuidade delitiva, em circunstâncias distintas, o juiz deve aplicar as penas correspondentes a cada delito isoladamente para, após, fazer incidir a regra da exasperação” (neste sentido confira-se no portal do TJMG, apenas exemplificativamente: 1.0145.13.056891-1/001; 1.0301.12.003434-5/001; 1.0486.11.001106-2/001; 2.0000.00.428355-6/000; 1.0347.04.911874-3/001; e 1.0456.07.052919-7/001).

Mas, o crime continuado não é, por uma ficção jurídica estabelecida na Lei Penal, um crime único, para fins de fixação da pena?

Ora, como sustentar a individualização das penas, isoladamente, individualmente, para cada um dos crimes que compõem o crime continuado se ele mesmo, por uma definição dada pela Lei é um crime único? Como fugir do sistema trifásico estabelecido na Lei Penal, criando um sistema onde as fases se multiplicam, tantas vezes quantas são os tipos integrantes da mesma unidade?

Enfim, qual a teoria acerca da natureza jurídica do crime continuado que esses vários acórdãos ainda têm aplicado para cassar as decisões anteriores em casos que tais? Pode o Tribunal cassar uma sentença que não tenha aplicado a fórmula proposta? Não seria mais coerente o Tribunal apenas reformar tais decisões? Enfim, a metodologia pugnada nesses acórdãos tem realmente fundo constitucional como afirmam?

O Código Penal Brasileiro, em seu art. 71, assim delimitou conceitualmente o crime continuado:

“Crime continuado
Art. 71. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada em qualquer caso, de um sexto a dois terços.”

Assim, quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, com condições de tempo, lugar, maneira de execução semelhantes, cria-se uma suposição, uma ficção de que os subsequentes são uma continuação do primeiro, de forma que, para fins de fixação da pena, por força de Lei, leva-se em conta um crime único, praticado de forma continuada. Ou como já dizia Roberto Lyra: “Trata-se de uma obra escrita em capítulos” (Comentários ao Código Penal, Nelson Hungria et autri, Forense, 1958, vol. II, comentários aos art. 51 a 56, p. 438 e seguintes). É ainda do mesmo renomado jurisconsulto (p. 449/450):

“A certeza de que os crimes ligados pelo vínculo de continuação obedecem a desígnios autônomos não implica a trasladação da hipótese para o domínio do concurso material, como ocorre em relação ao concurso formal. Mas, para não converter a exceção (crime continuado) em regra (crime único – concurso material), o art. 51, §2º, supõe inconfundível a imagem material da continuação (devem ser havidos).”

Pela nossa Lei Penal vigente, assim, utilizando das mesmas expressões do renomado jurisconsulto, os diversos delitos anteriores, reconhecida a continuidade delitiva, para a fixação da pena, devem ser havidos como elementos integrantes de um único crime.

Difere, desta forma, o crime continuado das diversas formas de concurso. Vejamos: do concurso formal, que é previsto no artigo 70 do Código Penal, em que há existência de uma só conduta (ação ou omissão) embora ela possa se desdobrar em vários atos, com infringência várias vezes da mesma disposição ou várias disposições legais.

O concurso formal, por sua vez, pode ser homogêneo ou heterogêneo. No concurso formal homogêneo, aplica-se a pena de um dos delitos aumentada de um sexto até a metade. Mas pode ocorrer de se tratarem de tipos penais que preveem penas diversas, embora da mesma espécie, devendo ser aplicada a pena mais grave, também com a mesmo aumento.

O concurso formal pode ainda ser impróprio (ou imperfeito), referindo-se a uma só conduta dolosa em que o agente causa dois ou mais resultados, com delitos autônomos; ou próprio (ou perfeito), em que a unidade da conduta e multiplicidade de resultados, implica, em regra, na aplicação da pena mais grave, dentre as cabíveis, ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até a metade (art. 70, caput, Código Penal).

Mas, havendo duas ou mais ações distintas, não se pode falar em concurso formal, podendo-se inferir, consoante a hipótese, em progressão criminosa (com antefato ou pós-fato não punível), concurso material, crime continuado etc.

Já o concurso material ocorre quando mais de uma conduta corresponde a mais de um crime, pouco importando existência ou não, da identidade entre eles, sendo cominada individualmente cada uma das penas, que deverão ser somadas, em cumulação de sanções (art. 69, do Código Penal).

Objetivando definir se várias condutas criminosas havidas como caracterizadoras de crime continuado, constituem, em realidade, um ou mais crimes, é que surgiram as teorias que miram esclarecer a natureza jurídica do instituto em análise. Dentre estas, são destacadas as teorias da unidade real, da ficção jurídica e a mista (ou da unidade jurídica). A importância da adoção de teoria para justificar a inserção do crime continuado em determinado sistema jurídico transcende a uma simples opção doutrinária, a fórmula utilizada para a fixação da pena, para ofertar efeitos bem distintos ao enfrentamento do problema, como se poderá constatar no presente trabalho, em que se pretende demonstrar que, sob o pretexto de se preservar o estatuído na Constituição da República, comete-se, na verdade, uma inconstitucionalidade, com uma caiação de constitucionalidade.

Daí a importância de fixarmos qual teoria adotou nosso Código Penal. Qual a natureza jurídica do instituto em questão, segundo nossa Lei posta.

Segundo a teoria da unidade real, os diversos comportamentos delituosos do agente constituem, em verdade, um só crime, na medida em que são partes de um mesmo todo e representam uma unidade de intenção, refletida na unidade de lesão. Esta teoria tem base nos postulados da teoria objetiva-subjetiva, que exige, além dos requisitos objetivos, uma unidade de vontades, ou seja, uma espécie de programa inicial para a realização encadeada dos atos criminosos. O dolo é, pois, unitário. E os crimes continuados nada mais são do que a mesma unidade real e psicológica.

De acordo com a teoria da ficção jurídica, a unidade delitiva não passa de uma criação da Lei, já que, em verdade, múltiplos são os delitos e se efetivamente existisse o crime único, a pena haveria que ser a mesma cominada para um só dos crimes concorrentes.

Por essa teoria o crime continuado é uma ficção jurídica inspirada pelo critério da benignidade, destinado a servir como fator de individualização da pena e deduzida, por motivos de equidade justificados pela culpabilidade diminuída do agente, da homogeneidade de condutas concorrentes que ofendem o mesmo bem jurídico.

Em conformação com a teoria mista ou da unidade jurídica, o crime continuado não é uma unidade real, tampouco configura uma simples ficção jurídica, imposta pelo querer legislativo. Segundo os defensores dessa terceira teoria, o crime em continuação é ontologicamente autônomo, constituindo uma realidade jurídica e não uma criação.

Para os adeptos da teoria da unidade real, consideram-se as várias violações componentes de um único crime; para os adeptos da ficção jurídica, deriva a unidade do crime de uma criação legal para a imposição da pena quando, na realidade, existem vários delitos; e, para os adeptos da teoria mista, pela qual não se cogita de unidade ou pluralidade de delitos, mas de um terceiro crime, que é o próprio concurso.

A despeito de entendimentos diversos sustentados em tais precitados acórdãos, todos muito respeitáveis, parece ser francamente majoritário o entendimento de que o sistema jurídico brasileiro adotou a teoria da ficção jurídica determinando o sistema da exasperação da pena ao crime continuado, que existe, formalmente, na reunião de vários delitos praticados nas mesmas condições. Resumindo: são vários delitos que devem ser havidos como um só.

Portanto, é incompreensível como possa haver uma determinação no sentido de que “o juiz deve aplicar as penas correspondentes a cada delito isoladamente para, após, fazer incidir a regra da exasperação”. Isso é regra de concurso material de crimes, não de crime continuado.

Ora, o princípio da legalidade estabelece que, para cada crime devem ser aplicadas as penas a ele cominadas, de acordo com o processo de dosimetria trifásico adotado no nosso ordenamento jurídico, ou seja, uma dosimetria em três fases para cada crime. Se o caso é de crime continuado, há aplicação de penas para um único crime, exclusivamente pelo sistema trifásico.

Não existe previsão em nosso ordenamento jurídico de adoção desse inusitado procedimento multifásico, em que para um só crime, muitas fases devem ser analisadas. A Lei brasileira efetivamente estabelece o sistema trifásico para todos os crimes, não havendo previsão em nosso ordenamento jurídico de aplicação de sistema multifásico, para casos de crime continuado.

Individualizar a pena para cada um desses crimes que compõem o todo, que devem ser entendidos fases do todo, para somente depois aplicar a continuidade delitiva, configura flagrante confusão entre os conceitos de ação e de crime.

É que, um só crime (como é o caso do crime continuado) pode ser cometido mediante várias ações (e no caso do crime continuado sempre o é), sem perder a sua individualidade, sem deixar de ser um crime só.

Tomemos um exemplo bem elucidativo: quem sobe uma escada, sobre vários degraus, mas sobe uma escada só! No crime continuado, por uma ficção jurídica, apesar do sujeito cometer, em princípio, “diversos delitos de per si”, esses devem ser entendidos, para fins de aplicação da pena final, apenas como ações (ou omissões), degraus dessa única escada, desse um único delito, com aplicação das penas de um só crime, tomando por base as penas do delito mais grave, ou a comum, se semelhantes, aumentadas de um sexto a dois terços.

Assim, pela ficção jurídica determinada pela Lei, há um só crime, e portanto, somente poderá haver a fixação das penas de um único crime. Não fosse assim, bastariam as regras do concurso material e formal e tudo se resolveria nelas.

A metodologia criada nesses acórdãos, data venia, fere frontalmente o disposto no art. 71, do Código Penal, criando uma nova fórmula (não prevista em Lei) em que as condutas devem ser individualizadas, segundo as regras do disposto nos art. 59, 68 e 69, do Código Penal, descaracterizando por completo o conceito de crime continuado, que passa a ser, então, algo muito diferente do disposto em Lei, na medida em que haverá individualização para “os crimes separadamente considerados” - sic, (seus degraus), ao passo que, pelo conceito legal de crime continuado, o mesmo deve ser considerado com uma só unidade (a escada). A fórmula cria uma nova metodologia multifásica em que são as condutas valoradas de forma múltipla, tantas quantas elas forem e não o crime, na sua individualidade, que deve ser analisado tão somente no sistema trifásico.

Com efeito, se o Código Penal estabelece que o crime continuado deve ser considerado um crime único, para efeito de aplicação de pena, a utilização de dosimetrias diversificadas, individualizando as ações que o integram, uma a uma, tornando a individualidade uma multiplicidade, isso é uma burla flagrante ao princípio da legalidade, e, portanto, uma inconstitucionalidade.

Essa metodologia destrói o conceito de continuidade delitiva, transformando o crime continuado numa nova espécie de concurso de crimes, algo como um concurso material com a aplicação da regra do art. 70, caput, do Código Penal, ou o reconhecimento da reiteração criminal (art. 69, do CP) com aplicação de pena única, do concurso formal. Resumindo, um híbrido intergenérico ao arrepio da Lei Penal.

Muitas das vezes, o crime continuado é descoberto quando o sujeito está praticando o último da série de crimes, que na maior parte das vezes torna-se apenas tentado, enquanto os antecedentes ficam consumados. É como se o sujeito, no meio da escada, fosse impedido, por circunstâncias alheias à sua vontade, de continuar subindo a tal escada. Admitir a individualização (um cálculo de penas para cada um desses degraus) é admitir que um único crime possui uma parte consumada e outra tentada, tudo ao mesmo tempo!

O imbróglio não é novo e, dizem, veio na bagagem dos tedescos para essas terras tupiniquins. Tradutores estudiosos afirmam que Mezger, para aclarar os conceitos do crime continuado em face do concurso de crimes já afirmava que um cavalo branco e de corrida não são dois cavalos, mas apenas um cavalo que tem duas qualidades:

“O idealismo abre uma perspectiva diferente, pois pode chegar a admitir que os tipos penais criam as condutas, e que, no concurso ideal, há várias condutas e vários delitos. Se assim for, não se justifica a diversidade de soluções para os dois casos. Esta posição idealista esquece que não são as qualidades de um objeto que o multiplicam. Com toda razão se afirmou que um cavalo branco e de corridas não são dois cavalos, mas apenas um cavalo que tem duas qualidades (Mezger)

...Dessa tendência advém, como solução, a utilização do conceito de crime continuado, como uma ficção para os efeitos da atenuação das penas no concurso material, e, portanto, considerar o crime continuado como ficção. Embora também desde a Idade Média, exista a tendência de distinguir o concurso formal do material, se a partir do ponto de vista idealista, considera-se o concurso formal como uma pluralidade de crimes, o sistema da absorção será sempre uma regra de aplicação da pena, que atenua o rigor da cumulação aritmética.
Em síntese: a partir do ponto de vista idealista, o concurso (material ou formal) constitui sempre uma pluralidade de crimes, e o sistema da exasperação (pena do crime mais grave aumentada) para o concurso ideal e para a ficção jurídica chamada de “crime continuado”, são apenas formas, mais ou menos generosas, de limitar ou estreitar o rigor da cumulação aritmética, que é uma sua consequência lógica de considerar, em todos os casos, uma pluralidade de crimes.

No crime continuado, a realidade da continuidade se traduz numa única ação típica, e os atos sucessivos do autor são tão somente graus progressivos da realização do conteúdo injusto do crime. Consequentemente, sua pena é a pena do crime, fixada conforme o conteúdo do injusto, atingido pela realização progressiva deste, sempre dentro dos limites da pena legal, fixados para o crime que for.” (Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. Ed. RT, 1997. p.717 e seguintes).

Veja-se o exemplo: um sujeito entra no sítio de seu vizinho e subtrai uma dúzia de caixas de carambolas maduras para vender na feira, por R$2,50, a unidade, utilizando seu cavalo branco e de corridas para fugir do local do crime, sozinho, na véspera de completar 21 anos; no dia seguinte, o mesmo sujeito entra no mesmo sítio de seu mesmo vizinho e subtrai dez caixas de frutas-do-conde quase maduras, para vender no mercado central, a R$3,50 a unidade, utilizando sua bicicleta vermelha de dez marchas para fugir do local do crime, no dia de seu aniversário de 21 anos, com o auxílio de um outro indivíduo; o mesmo sujeito, no terceiro dia, entra no mesmo sítio, do mesmo vizinho, e subtrai sete cachos de banana-nanica, utilizando um carrinho de pedreiro, de uma roda só, para vender tais bananas na beira da estrada, pelo preço de R$5,00 o quilo, dia depois de seu aniversário de 21 anos, sozinho, mas, durante a empresa é surpreendido pela exitosa ação policial e é preso em flagrante. Ora, reconhecida a continuidade delitiva, pois que essa é hipótese prevista em Lei, não há que se falar em três dosimetrias, nove fases (para este agente), mas uma única dosimetria, com três fases, na medida em que o crime continuado pressupõe que tudo isso anteriormente referido foi um crime só, ainda que os objetos tenham sido diversos, os meios de transporte tenham sido variados, os resultados danosos tenham sido distintos, dois deles tenham sido consumados e o último tentado, um realizado em concurso de pessoas e outros não. Tudo isso, para fins de fixação de pena de crime continuado, deve ser considerado um crime só, que se consumou com o sucesso das duas primeiras empreitadas e que se prolongou com as demais ações, não merecendo o sujeito nenhuma diminuição de pena, em face da menoridade pelo primeiro dos delitos, porque uma fase do delito foi cometida quando já havia feito 21 anos, incidindo a qualificadora do concurso de agentes, tudo isso numa dosimetria única (o comparsa, se condenado, merecerá outra dosimetria, bem diferente, na medida de sua culpabilidade).

Haverá dosimetrias diversas (caso de concurso material) se o agente, num desses três eventos, por exemplo, levar também um menor com ele, corrompendo-o. Aí, porque a Lei não admite a continuidade delitiva, por se tratarem de crimes de naturezas diversas, o sujeito sim responderá por um furto continuado e mais um crime de corrupção de menor, em concurso material (duas dosimetrias).

De notar, além disso que, se durante esses três dias imperarem leis que fixam penas diversificadas para o furto, o sujeito deverá ser apenado com as penas mais graves, nos termos da súmula 711, do STF. Também há que se considerar os termos da súmula 723, do STF que preceitua que “não se admite a suspensão condicional do processo por crime continuado, se a soma das penas mínimas da infração mais grave com o aumento mínimo de 1/6 for superior a um ano”.

Portanto, a vigorar precitado entendimento, de nada servirão as tais súmulas da Suprema Corte, pois que a unidade do crime continuado esvai-se nessas “particularidades”. Um sujeito, v. g., que comete crime continuado cujas penas de per si são inferiores a um ano, mas que, com o acréscimo passam a ser superiores, pelo método legal não poderá se beneficiar de suspensão do processo, ao passo que, pela nova fórmula, poderá. Assim, nega-se, por vias transversas, vigência à súmula 723, do STF.

Façamos, pois, as dosimetrias segundo a fórmula pregada nesses acórdãos e segundo a regra constitucionalmente aqui defendida para um seguinte caso hipotético: um sujeito com todas as circunstâncias do art. 59, do CP favoráveis, comete um furto simples consumado; feliz com o resultado de sua empresa, convida um comparsa para continuar seu empreendimento criminoso e com ele comete um segundo furto, nas mesmas circunstâncias de tempo, lugar e modo de execução, mas agora qualificado (§4º, inc. IV, CP), mas é pego em flagrante, de tal forma que esse segundo crime fica apenas na forma tentada. A se adotar a regra acima especificada, analisando tudo separadamente, o agente seria punido (1ª fase) com 1 (um) ano de reclusão e 10 (dez) dias-multa para o furto simples consumado (penas mínimas). Na (2ª fase) vamos considerar que não há agravantes nem atenuantes. Na 3ª fase, nada há que aumente ou diminua as penas, pois havendo um crime qualificado a ser analisado, que é o mais grave, eventual aumento de pena deverá ser analisado por ocasião da dosimetria desse crime mais grave. Além disso, para o furto qualificado tentado, o agente receberia (4ª fase) penas de 2 (dois) anos e 10 (dez) dias-multa (mínimas); na 5ª fase, tal como nos anteriores, não há atenuantes nem agravantes. Na 6ª fase, tomando-se o “delito mais grave” (ou seja, o qualificado) aplicaremos a causa genérica de diminuição de penas (tentativa) que, considerando o curto iter criminis percorrido deve ser de 2/3 (dois terços), chegando-se às penas de 08 meses de reclusão e 3 (três) dias-multa. Agora aplicamos a causa de aumento (continuidade delitiva), na medida de 1/6 (um sexto, que é o mínimo legal), chegando-se às penas finais de 9 (nove) meses e 10 (dez) dias de reclusão e 3 (três) dias-multa. Então, para o crime continuado, as penas são menores que a de um único crime, isoladamente considerado.

Este demonstrado absurdo matemático somente acontece porque tais acórdãos admitem-se a ocorrência, num mesmo crime, o fato dele ter uma parte tentada e outra consumada.

Esses acórdãos admitem, portanto, que uma escada de três degraus pode ser mais curta que apenas um degrau! Além disso, não houve sistema trifásico, como se pode constatar, mas multifásico.

Portanto, um sujeito que só cometeu um único furto simples consumado (penas de 1 ano reclusão e 10 dias-multa), se esse confessar ter cometido outro, ou cometer outros efetivamente, pode acabar se beneficiando.

Vejamos, então, como a Lei resolve essa questão de forma correta, utilizando-se o sistema trifásico, considerando a unidade fictícia do crime continuado: pela fórmula determinada pela Lei Penal vigente o agente, nessas mesmas hipóteses deverá ser punido por um crime único (a escada), ou seja, por um furto qualificado (porque o agente efetivamente subiu o degrau da qualificadora), consumado (porque o agente galgou efetivamente o primeiro degrau da escada, consumando sua subida nele). Assim, o agente será punido na 1ª fase com 2 (dois) anos de reclusão e 10 (dez) dias-multa (penas mínimas). Não haverá nenhuma atenuante ou agravante, na 2ª fase, tal como anteriormente. Sobre essas penas, na 3ª fase da dosimetria, incidirá o acréscimo de 1/6 (idêntico ao anteriormente utilizado), chegando-se a um resultado de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de reclusão e 11 (onze) dias-multa.

A fórmula do crime continuado prevista na Lei Penal vigente favorece em muito o acusado, que, se não fosse isso, seria punido, nesse exemplo, com penas de 04 anos de reclusão e 30 dias-multa (concurso material).

O crime continuado é, nessa linguagem, uma escada encurtada, contudo, maior que cada um dos degraus isoladamente considerados!

Damásio já alertava para esse absurdo em seu Direito Penal, Parte Geral, Saraiva, 1995, p. 526 e seguintes.

Sempre gosto de citar Malba Tahan (Uassalã!), quando se trata de sistema lógico, porque foi em seus maravilhosos romances e em seus intrigantes livros de aventuras das arábias que comecei a gostar de lógica, lá nos tempos incríveis, embora reconheça que continuo cometendo erros, muitos erros, porque o grande mestre da matemática dizia que “só quem já esteve, por alguns momentos sequer, entre os muros tenebrosos de uma enxovia, sabe resolver esses problemas em que os números são parcelas terríveis da desgraça humana” (O homem que calculava – Ed. Record). É verdade que a pena não pode ser calculada somente com base nesses sistemas lógicos, em que os números são apenas parcelas terríveis da desgraça humana. Mas, também, se não houver uma lógica mínima, chegamos ao absurdo que se demonstrou matematicamente, em que é preferível cometer muitos crimes do que um só, ou confessar crimes que não cometeu para ter a pena mais branda. Aí é preferível não ter direito posto algum, porque onde não há uma lógica do razoável, existe só arbitrariedade, para o mal ou para o bem, isso não importa.

Já ensinava o grande mestre Heleno Cláudio Fragoso em suas Lições de Direito Penal, Forense, 1986, p. 369:

“O crime continuado é, por ficção, um crime único. Essa ficção existe para excepcionar as regras gerais do concurso de crimes e funciona para certos efeitos processuais. Assim, o processo deve ser unitário para todos os componentes do crime continuado.”


Aliás, a Suprema Corte também já fixou entendimento no sentido de que, na hipótese do crime continuado, não pode haver considerações isoladamente, sobre os tipos que compõem a unidade fictícia criada pela norma penal, sob pena de se ferir o princípio da legalidade, mormente o que estabelece o sistema trifásico, verbis:


“E M E N T A: "HABEAS CORPUS" - CRIME CONTINUADO - ALEGAÇÃO DE ERRÔNEA DOSIMETRIA DA SANÇÃO PENAL - INOCORRÊNCIA - EXACERBAÇÃO DA PENA - POSSIBILIDADE - DECISÃO PLENAMENTE MOTIVADA - PRETENDIDO RECONHECIMENTO DA PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA DO ESTADO - IMPOSSIBILIDADE - PEDIDO INDEFERIDO. - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a possibilidade de o magistrado sentenciante fixar a pena em limite superior ao mínimo legal, desde que indique, concretamente, as razões justificadoras da exacerbação penal. - A ficção jurídica do delito continuado, consagrada pela legislação penal brasileira, vislumbra, nele, uma unidade incindível, de que deriva a impossibilidade legal de dispensar, a cada momento desse fenômeno delituoso, um tratamento penal autônomo. Não podem ser considerados, desse modo, isoladamente, para efeitos prescricionais, os diversos delitos parcelares que compõem a estrutura unitária do crime continuado.” (HC 70.593/SP – Relator: Min. Celso de Melo. Julg: 05.10.1993).

A dosimetria adotada pela Lei brasileira é um sistema bem intrincado e a todo instante todos cometemos erros, falhas, nos esquecemos de um mero detalhe, aplicamos fórmulas nem sempre lógicas, como se pode ver pela enorme quantidade de reformas de sentenças e acórdãos que existem em todos os Tribunais.

De notar que, ainda que se admita o desacerto de uma possível decisão em contradição com a adotada nos precitados julgados, isso não implica em absoluto, em error in procedendum, mas em erro que pode e deve ser corrigido de imediato pelo Tribunal, sem a declaração de nulidade, sem a cassação da sentença, como reiteradamente já decidiu a Suprema Corte.

“Ementa: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL, PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIMES DE MAUS-TRATOS. DOSIMETRIA DA PENA. FIXAÇÃO DA PENA-BASE ACIMA DO MÍNIMO LEGAL. POSSIBILIDADE. MAUS ANTECEDENTES. LIMITES INSTRUTÓRIOS DO HABEAS CORPUS. CONTINUIDADE DELITIVA. CRITÉRIOS PARA ESCOLHA DA MAJORANTE IMPRÓPRIA. 1. O legislador penal não quantificou as variáveis que compõem o art. 59 , caput, do Código Penal , possibilitando a fixação da pena-base acima do mínimo legal, sempre que forem identificadas circunstâncias judiciais desfavoráveis ao sentenciado. Precedentes. 2. Cumpre ao Impetrante demonstrar, de forma definitiva, que o reconhecimento dos maus antecedentes pelas instâncias estaduais operou-se de forma equivocada, em flagrante descompasso com a legislação vigente, porque não é o habeas corpus meio processual adequado para reapreciação da matéria fática demarcada nas instâncias originárias. Precedentes. 3. No crime continuado, a dosimetria da pena deve ocorrer para todos os crimes que o integram, mas não é caso de nulidade da sentença, por ausência de prejuízos ao Paciente, o fato de ter o magistrado se limitado ao delito mais grave, que, por força do art. 71 do Código Penal, orienta a aplicação da pena final. Precedente. 4. No crime continuado, independentemente de sua natureza simples ou qualificada, a escolha do percentual de aumento da pena varia de acordo com o número de infrações praticadas. 5. Em habeas corpus, é defeso ao Superior Tribunal de Justiça alicerçar sua decisão em regra mais gravosa, sequer cogitada pelo Ministério Público nas instâncias estaduais, sob pena de se chancelar uma reformatio in pejus indireta. 6. Recurso parcialmente provido. (STF. RHC 107.381. Relatora: Min. Carmem Lúcia. Data de publicação: 13/06/2011). No mesmo sentido: (STF. HC 93.586/RJ. Relator Min. Cezar Peluso. Julg: 10.02.2009).

Leonel França disse que “a verdade não é monopólio de ninguém. É patrimônio comum das inteligências”. Realmente, no campo do Direito, existem muitas formas de se mostrar as muitas verdades que existem. Umas convincentes, outras nem tanto; outras, muito perigosas. É plenamente possível, com falsos argumentos constitucionais, caiar uma ponte de madeira toda carunchada, sobre um alto penhasco, para enganar aquele que pretende atravessá-la. O peregrino do Direito atento deve analisar as alternativas. Ele pode preferir o caminho mais bonito, da ponte carunchada, mas caiada com falsos argumentos e se arriscar na travessia dessa ponte, e, quem sabe despencar lá do alto. Mas pode preferir outro, uma outra ponte sem caiação alguma, cujo cerne da madeira está às escâncaras, a toda prova, em que ele pode confiar naquilo que vê, na prova diante de seus olhos. E cada um segue pela ponte que julga mais confiável, porque atravessar o penhasco preciso é!

O emprego da matemática pode, a depender de sua utilização correta ou não, ser surpreendente, pode gerar soluções as mais díspares, até algumas aparentemente justas, outras caidamente corretas. Conta Malba Tahan, em seu maravilhoso romance “O homem que calculava” que Beremiz Samir e seu amigo estavam andando pelo deserto, quando se depararam com um xeique que havia sido assaltado e esse xeique enricado estava com muita fome, pois os assaltantes roubaram-lhe toda a comida. E propôs esse xeique que, se ambos dividissem com ele os pães que traziam consigo em suas caixas, durante a viagem até Bagdá, para onde caminhavam, para cada pão repartido, ao final da viagem, ele pagaria com uma moeda de ouro. Beremiz Samir possuía 5 pães e seu amigo 3, e durante essa viagem, esses 8 pães foram divididos entre eles e muitas soluções podem ser dadas a esse singelo problema, ao final da viagem. A fórmula de Beremiz é simplesmente espetacular, fantástica:

“- Vou deixar-vos, meus amigos. Antes, porém, desejo agradecer-vos o grande auxílio que ontem me prestastes. E para cumprir a palavra dada, vou pagar já o pão que generosamente me destes!
E dirigindo-se ao Homem que Calculava disse-lhe:
- Vais receber pelos 5 pães, 5 moedas!
E voltando-se para mim, ajuntou:
- E tu, ó bagdáli, pelos 3 pães, vais receber 3 moedas!
Com grande surpresa, o calculista objetou respeitoso:
- Perdão, ó xeique. A divisão, feita desse modo, pode ser muito simples, mas não é matematicamente certa! Se eu dei 5 pães devo receber 7 moedas; o meu companheiro bagdali, que deu 3 pães, deve receber apenas uma moeda.
- Pelo nome de Maomé! – interveio o vizir Ibrahim, interessado vivamente pelo caso. – Como justificar, ó estrangeiro, tão disparatada forma de pagar 8 pães com 8 moedas? Se contribuíste com 5 pães, por que exiges 7 moedas? Se o teu amigo contribuiu com 3 pães, por que afirmas que ele deve receber uma única moeda?
O Homem que Calculava aproximou-se do prestigioso ministro e assim falou:
- Vou provar-vos, ó Vizir, que a divisão das 8 moedas, pela forma por mim proposta, é matematicamente certa. Quando durante a viajem, tínhamos fome, eu tirava um pão da caixa em que estavam guardados e repartia-o em três pedaços, comendo cada um de nós, um desses pedaços. Se eu dei 5 pães, dei é claro, 15 pedaços; se o meu companheiro deu 3 pães, contribuiu com 9 pedaços. Houve, assim, um total de 24 pedaços, cabendo, portanto, 8 pedaços para cada um. Dos 15 pedaços que dei, comi 8; dei na realidade, 7; o meu companheiro deu, como disse, 9 pedaços, e, comeu também, 8; logo, deu apenas 1. Os 7 pedaços que eu dei e que o bagdali forneceu formaram os 8 que couberam ao xeique Salém Nasair. Logo, é justo que eu receba 7 moedas e o meu companheiro, apenas uma.
O grão-vizir, depois de fazer os maiores elogios ao Homem que Calculava, ordenou que lhe fossem entregues sete moedas, pois a mim me cabia, por direito, apenas uma. Era lógica, perfeita e irrespondível a demonstração apresentada pelo matemático.
- Esta divisão – retorquiu o calculista – de sete moedas para mim e uma para meu amigo, conforme provei, é matematicamente certa, mas não é perfeita aos olhos de Allah! E tomando as moedas na mão dividiu-as em duas partes iguais. Deu-me uma dessas partes (4 moedas), guardando para si, as quatro restantes.
- Esse homem é extraordinário – declarou o vizir. – Não aceitou a divisão proposta de 8 moedas em duas parcelas de 5 e 3, em que era favorecido; demonstrou ter direito a 7 e que seu companheiro só devia receber uma moeda, acabando por dividir as 8 moedas em 2 parcelas iguais, que repartiu, finalmente com o amigo.
E acrescentou com entusiasmo:
- Mac Allah! Esse jovem além de parecer-me um sábio e habilíssimo nos cálculos e na Aritmética, é bom para o amigo e generoso para o companheiro. Tomo-o hoje mesmo para meu secretário!
- Poderoso Vizir – tornou o Homem que Calculava - , vejo que acabais de fazer 32 vocábulos, com um total de 143 letras, o maior elogio que ouvi em minha vida, e eu, para agradecer-vos, sou forçado a empregar 64 palavras nas quais figuram nada menos que 286 letras. O dobro, precisamente! Que Alá vos abençoe e vos proteja!”

Uassalã!

Bibliografia:

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Franco, Alberto Silva, et autri. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. Volume I, Tomo I – Parte Geral. São Paulo. RT,1997.


Galvão, Fernando. Aplicação da pena. Belo Horizonte. Del Rey, 1995.


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Zaffaroni, Eugênio Raúl, e Pierangeli, José Henrique. Manuel de Direito Penal brasileiro. Parte Geral. RT. Rio de Janeiro, 1997.