Eu me lembro de uma longa conversa que tive com Mário Lago, brasileiro admirável. Ele falou de seus primeiros tempos de luta pelos direitos autorais, nas décadas de 30 e 40 do século passado. Foi até parar na cadeia, por defender o pagamento pela utilização das obras musicais. Ao longo do tempo, muitos autores conciliaram seu trabalho de criação com a busca de conscientizar a sociedade de que era justo reconhecer que o autor é proprietário de sua obra. Ao longo de muitos anos, muitos foram incompreendidos e, até, perseguidos por usuários
poderosos.

A situação hoje é, ou deveria ser, muito melhor do que naqueles tempos heróicos. Temos o direito dos autores inscrito em cláusula pétrea da
Constituição e a Lei de 1998, seguindo a linha constitucional, protege com eficiência os criadores artísticos. Estes dois momentos se igualam à chegada de Sísifo ao cimo da montanha, quando tudo parece estar resolvido.

Quando pensamos em gozar de descanso merecido, a pedra começa a se mover para baixo, na forma de projetos absurdos saídos do Congresso Nacional. Na inadimplência generalizada de emissoras de rádio e televisão particulares e também dos vários níveis do Poder Público. Renega-se a Carta Maior sem a menor cerimônia, desrespeitam-se os criadores brasileiros sem a mínima vergonha.

A pedra do Sísifo autoral não chega a despencar de vez por existirem pessoas e instituições que impedem a queda. A lei autoral brasileira foi
fruto de uma discussão ampla que durou muitos anos, até que se chegasse a um consenso. Agora, passados dez anos de sua promulgação, os Tribunais Superiores e a maioria dos Juízes pacificaram o entendimento sobre seu alcance. Os usuários de má-fé sabem que estão perdendo a batalha, mas, em vez de se curvarem ao bom direito, buscam no Legislativo e no Executivo fórmulas para torpedear os autores. E assim continua o sobe-e-desce da pedra - direito que carregamos morro acima.

Há alguns anos, ouvi de um dirigente da Bolsa de Valores o seguinte raciocínio. No seu entendimento, a música só deveria render para o autor durante, no máximo, cinco anos. Depois ela seria de todos. Argumentei com ele que até concordaria com sua tese se ele também considerasse que todos os seus bens - imóveis, ações e carros - seriam igualmente de todos ao fim do mesmo período. Socialista com a minha propriedade, ele era radicalmente capitalista com o que era seu.

Este é um conceito que deve ficar claro: o direito autoral é um direito de propriedade. A obra original, criada por alguém, pertence a seu criador e é protegida moral e materialmente. A proteção da Propriedade Intelectual no mundo contemporâneo está expressa na Declaração Universal dos Direitos do Homem que, em seu artigo 27, determina que "todo homem tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor."

Houve, nos primeiros anos do Ministério da Cultura do atual Governo, um pensamento contraditório. De um lado acenou-se para a flexibilização dos direitos autorais. Era uma tendência, que creio estar superada, de suprimir, cortar, diminuir o que conquistamos. Ao mesmo tempo, incentivavam que os autores cedessem seus direitos ao "Creative Commons", iinvenção suspeita pensada para enganar autores novos e inexperientes e financiada pela Fundação Rockfeller, incensada pelo MINC e pela Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas. Era o Estado contra os criadores brasileiros e a favor das telefônicas e demais distribuidores de conteúdo digital.

Por outro lado, o vírus do autoritarismo e da intervenção estatal convive, ou convivia, com esse "abre-alas" que se desejava fazer com nossos direitos. Primeiro foi o episódio da ANCINAV, que trazia dois artigos que extorquiam os direitos autorais das músicas em obras audiovisuais e os doava à agência estatal que se pretendia criar. O tal projeto não foi em frente, por enfrentar, além dos frágeis autores de música e poesia, entidades e empresas muito poderosas. Nos livramos dessa. Depois veio a conversa, ainda presente, de intervenção do MINC na vida das associações de direitos autorais. Falou-se, até, em fixação de preço, que a Constituição diz que é direito exclusivo dos autores. Os espíritos autoritários e não democráticos abominam a Constituição.

A gestão coletiva, feita pelas associações, surgiu da necessidade de se organizar a autorização, o controle, a arrecadação e distribuição dos direitos autorais da obra. A impossibilidade de cada autor controlar a utilização de sua obra, em todos os cantos do País e do mundo, faz com que eles se reúnam em sociedades para gerir seus direitos. A gestão coletiva garante os autores e preserva os usuários, que recebem uma autorização ampla e única.

Trata-se de um direito privado. Vacinados contra o autoritarismo, não buscamos a qualquer obstáculo a proteção do Estado, essa mão
esquizofrênica que "afaga e apedreja. "Os problemas dos cidadãos devem ser resolvidos por eles. A função do Estado, que vive dos impostos que lhe pagamos, é cuidar das grandes questões da coletividade: educação, saúde, segurança e infra-estrutura. Resistimos por não querer, como Prometeu, viver acorrentados.

Recusamos o paternalismo estatal, e mais ainda a intervenção, porque sabemos das ditaduras que se escondem atrás das diversas ideologias. E porque temos, essa, sim, a nos defender, a Constituição Brasileira. Está lá em seu artigo 5º, inciso XVIII: "a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independe de autorização, sendo vedada a intervenção estatal em seu funcionamento." Esta é uma cláusula pétrea, não pode ser modificada, de acordo com o artigo 60: "não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais.

Em voto, durante sessão em que o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade da existência do ECAD, o Ministro Gilmar Mendes assim se expressou: "A jurisprudência da Corte Constitucional Alemã acabou por consolidar entendimento no sentido de que, do significado objetivo dos direitos fundamentais resulta o dever do Estado não apenas de se abster de intervir no âmbito de proteção desses direitos, mas também de proteger esses direitos contra a agressão ensejada por atos de terceiros. Essa interpretação empresta, sem dúvida, uma nova dimensão aos direitos fundamentais, fazendo com que o Estado evolua da posição de adversário para uma função de guardião desses direitos."

Quero ressaltar, ainda, uma outra idéia que percorre os corredores do ministério e da universidade. Trata-se do mandamento constitucional que determina que o Estado deve democratizar o acesso à cultura. Concordo e aplaudo. Mas a obrigação, é bom que fique claro, é do Estado e não dos autores. Outra questão: estamos vivendo um momento de transição. Mas a tecnologia que possibilita o aceso amplo de todos às obras autorais vai permitir o controle e garantir os direitos dos autores.

Deixem a lei autoral crescer e entrar na consciência das pessoas, assim como está na mente dos Juízes e Ministros dos Tribunais. Para que não sejamos nem Sísifos e muito menos Prometeus, nós, autores brasileiros, caminhemos com a Constituição do Brasil nas mãos.

Autor: Jornalista Fernando Brant

O artigo foi publicado edição nº 6 da Revista Propriedade e Ética.