Três ações movidas por haitianos contra a Organização das Nações Unidas (ONU) colocam em xeque a imunidade diplomática e legal da entidade e a expõem a um dos maiores constrangimentos internacionais desde a sua criação, em 1945, segundo a advogada e coordenadora do Programa de Cooperação Internacional do Instituto Igarapé, Eduarda Hamann.
Em janeiro de 2010, quando o Haiti foi devastado por um terremoto, milhares de missões de todo o mundo desembarcaram no país com o objetivo de ajudar os haitianos a se recuperar do desastre. Além da destruição do terremoto, outra tragédia assolou o Haiti em outubro daquele ano: uma epidemia de cólera, doença que nunca havia sido registrada no país em quase 100 anos. No total, já foram registrados 720 mil casos, o equivalente a 7% da população do país.
Embora não haja provas concretas da origem da doença, investigações mostram que a epidemia coincide com a chegada de um contingente de militares do Nepal – onde a doença é endêmica – que foi dar apoio a vilas do interior e montou acampamento próximo ao Rio Artibonite, principal fonte de água do Haiti. A transmissão da bactéria do cólera se dá pela ingestão oral de dejetos fecais de doentes, principalmente na água contaminada.
O surto de cólera, que já matou cerca de 8,7 mil pessoas no Haiti, levou vítimas e parentes delas a entrar com três processos contra a ONU, todas em tribunais dos Estados Unidos, onde fica a sede da organização. O último foi apresentado no primeiro semestre de 2014, em nome de 1,5 mil haitianos. As ações requerem, em geral, a compensação financeira das vítimas, um pedido público de desculpas da ONU e a instalação de sistema de água e esgoto no país.
Os advogados das vítimas alegam que a ONU foi responsável pelo início da doença no Haiti e cometeu negligências graves por não checar as condições de saúde dos militares oriundos de um país com a doença, por falhar em manter bons padrões sanitários nos acampamentos e por não tomar as medidas imediatas necessárias para combater o surto. Em alguns casos, segundo os advogados, a organização chegou a dificultar as investigações e esconder exames.
Em sua defesa, a ONU atribui as causas da epidemia a uma confluência de fatores, como as precárias condições sanitárias e de saúde do Haiti, além de citar a imunidade diplomática da organização. Sem assumir a culpa da entidade, no entanto, o secretário-geral Ban Ki-moon está engajado na arrecadação de recursos para um fundo de US$ 2,2 bilhões para erradicar, em uma década, a cólera da ilha de Hispaniola, onde ficam o Haiti e a República Dominicana.
A questão, no entanto, além da indenização, que pode chegar a bilhões de dólares, envolve outros elementos legais e morais que a tornam um dos maiores constrangimentos da história da ONU, diz Eduarda Hamann. A imunidade legal da organização está presente na Carta das Nações Unidas e no Estatuto da Corte Internacional de Justiça, na Convenção sobre Privilégios e Imunidades das Nações Unidas e no acordo entre a ONU e o governo do Haiti sobre o status da operação no país.
A especialista explica que somente a entidade pode renunciar a sua imunidade. Foi o que também afirmou, na última sexta-feira (9), o juiz federal J. Paul Oetken, de Manhattan, que rejeitou uma das ações afirmando que a capacidade da ONU para bloquear ações judiciais contra ela foi estabelecida em convenção internacional de 1946.
Os advogados das vítimas já anunciaram que vão recorrer da decisão, alegando que a ONU violou obrigações de tratados internacionais. Segundo eles, ao deixar de criar uma comissão de reparação, instrumento previsto nos tratados e que determina uma análise independente do caso, inclusive com a possibilidade de indenizações às vítimas, a ONU não deu alternativa aos haitianos para clamarem por seus direitos a não ser pelas ações na Justiça dos Estados Unidos. “Esse fato é uma grande tragédia para a ONU porque a expõe a uma das causas que ela mesma defende, que é a proteção dos direitos humanos. Não porque fez intencionalmente, mas por ter sido omissa e negligente”, afirmou Eduarda Hamann
Segundo ela, embora prevista nos acordos de várias missões da ONU, a comissão reparadora nunca foi criada em nenhum caso. “Qual o custo político de se criar esse precedente? Quantas comissões serão pressionadas pra ser criadas no mundo? E o custo político da quebra da imunidade? Quebrando a imunidade, quantos outros casos poderiam ameaçar a imunidade na história da ONU?”, questionou a especialista.
Fonte: Agência Brasil