Uma verdadeira fábrica de fraudes invade as varas cíveis do interior de Minas Gerais e de São Paulo em busca de ganhos ilícitos por meio de ações predatórias. Advogados inescrupulosos fabricam demandas com documentos falsos e, na maioria das vezes, sem o conhecimento das partes a quem dizem representar, para dar golpes milionários.
Depois de serem flagrados em Varginha, alguns deles migraram para cidades vizinhas do Sul de Minas, do Centro-Oeste e Triângulo Mineiro e até de São Paulo, como Campinas e Ribeirão Preto. Três advogados estão presos em Bom Sucesso, acusados de apropriação indébita, falsidade ideológica e de documento. Os crimes estavam sendo praticados desde 2014, em Bom Sucesso e região, e foram desbaratados após investigação do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG).
O modus operandi é quase sempre o mesmo. Com informações privilegiadas, levantam dados de pessoas com o nome negativado em órgãos de restrição (SPC/Serasa) e, aproveitando-se da ingenuidade e da falta de instrução delas, as aliciam como clientes, para aplicar os golpes. Ao constatar que havia irregularidades na negativação dos nomes, entravam com ações judiciais. Porém, quando recebiam a indenização não a repassavam às pessoas de direito.
A Comarca de Varginha é a que mais tem sido alvo dessas fraudes há cinco anos. Cerca de 20 mil ações abarrotaram a comarca, inviabilizando seu funcionamento. Apesar do arquivamento de milhares, ainda hoje, apenas na 3ª Vara Cível dessa comarca, oito mil ações repetitivas travam a tramitação regular. “Aqui em Varginha, as varas cíveis ficaram abarrotadas desses processos. Eles ingressam com várias ações, às vezes, mais de 15, 20, 30 de uma vez só de uma mesma pessoa, abusando do direito de ação e inviabilizando a comarca”, constatou a juíza Adriana Barbosa, titular da 3ª Vara e diretora da Seccional da Amagis na Comarca.
De acordo com a magistrada, eles ingressam com ações de vários tipos, se a parte autora tem o nome negativado, pleiteando receber honorários ao final. “A prática é exatamente essa, de uma negativação, eles multiplicam cinco, seis ações sobre o mesmo tema em vez de uma só”, disse a juíza, confirmando que só um advogado tem 10 mil ações. “O acervo fica muito grande, impedindo a tramitação regular dos demais processos”, disse a juíza que também substitui na Comarca de Bom Sucesso.
Segundo servidores da Comarca de Bom Sucesso, alguns advogados chegaram ao ponto de entregar um kit com procuração e declaração para que as partes assinassem e, a partir daí, entravam com inúmeras ações. “Muitas vezes, as partes nem tomam conhecimento das ações”. A prática tem sido denunciada ainda em outras cidades do Sul, como em Passos, Elói Mendes, Muzambinho, e da Grande BH.
Antes da entrada em vigência do NCPC, distribuíam inúmeras Cautelares de Exibição de Documentos e fundamentavam como satisfativa. Agora, migraram para Declaratória de Inexistência de Débito, com pedido de tutela de urgência para que os documentos fossem exibidos. “O entendimento jurisprudencial consolidado favorece esse tipo de fraude já que restou sumulado que a simples comprovação de inscrição indevida é suficiente para dar ensejo à condenação por danos morais”, observou a juíza Denise Canedo Pinto, da 1ª Vara Cível de Passos.
Suspeita
Há casos de advogados que contratam pessoas para angariar clientes. Os alvos são os negativados. A partir daí, surgiram duas situações: uma, abordagem às pessoas negativadas; a outra, as pessoas eram atraídas pelos comparsas, que repassavam os documentos para formalização da procuração. De acordo com outra juíza de Passos, Patrícia Maria Oliveira Leite, da 3ª Vara Cível, mais de três mil ações tramitam ali.
“A quantidade de ações propostas chamou a atenção e revelou que não havia outro intuito senão o de fabricar honorários de advogados. Acredito que haja uma quadrilha agindo nesse sentido. No princípio, achamos que queriam apenas sufocar o Judiciário. Depois, achamos estranho o fato de centenas de pessoas procurarem o mesmo advogado para o mesmo tipo de ação”, disse a juíza Patrícia, desconfiando, então, de falsificações de documentos.
“Pra minha surpresa, comecei a chamar os autores das ações e eles não apareciam. Quem veio declarou que jamais tinha outorgado procuração para os advogados, que sequer conheciam. Agora, no terceiro momento, esses autores não estão nem vendo a cor do dinheiro. Estão embolsando os honorários como também os valores de eventuais indenizações. Uma parte chegou a reclamar que não recebeu o valor de indenização recebida pelo advogado. A grande maioria é de pessoas simples, que não vai reclamar”.
Grande BH
Em Contagem, na Grande BH, a juíza Mônica Silveira, da 4ª Vara Cível, identificou o mesmo esquema orquestrado para obtenção de vantagens ilícitas “Nas Varas Cíveis, especialmente na área do Direito Privado, têm havido grande número de demandas, que, informalmente, chamam-se de fabricadas, ou de litígio criado, ou seja, a pessoa, na verdade, não enfrenta uma situação verdadeira de direito violado, não há uma situação em que ela sofreu uma injustiça, uma violação de direito para trazer à apreciação do Judiciário. Fabrica-se uma demanda, assume- -se um risco, pois se pode perder, mas talvez se ganhe algo. Na hipótese de ganhar, há ganhos para outros envolvidos na demanda. Isso gera um demandismo e um congestionamento absurdo na Justiça Cível”, disse a magistrada.
A média de distribuição de feitos nas cinco Varas Cíveis de Contagem, por exemplo, até abril deste ano, era de cerca de 240 processos/mês. Em maio e junho, subiu para 300, 310 por Vara. “O que nós temos verificado é fabricação de fatos mesmo, falseamento de fatos para trazer à Justiça, demandas que na realidade não veiculam litígios reais. É a criação de litígios em uma tentativa de obter um ganho ilícito”, denunciou, advertindo que o alto volume dessas “aventuras jurídicas” trava e impede o Judiciário de dar resposta rápida àquelas demandas que vinculam direitos violados.
“Há casos inclusive em que os autores da ação negam a outorga de procuração, ou apontam que outorgaram mandato com finalidade diversa. Essas questões todas precisam ser tratadas pelo sistema inteiro de Justiça. O Judiciário sozinho dificilmente vai conseguir coibir essa prática”, afirmou.
Corregedoria de Justiça busca parceria da OAB
No dia 10 de julho, o corregedor-geral do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, desembargador André Leite Praça, discutiu o assunto com o presidente da OAB/ MG, Antônio Fabrício Gonçalves, na sede da entidade. O corregedor solicitou a participação da OAB Minas em um grupo de trabalho para monitorar e fiscalizar fraudes contra a justiça, além de gerenciar ações repetitivas e de demandas fabricadas que são encaminhadas ao tribunal. “Nossa intenção não é que ninguém seja impedido de ter acesso à justiça, mas que essa busca seja legítima com o intuito de defender o funcionamento do Judiciário em Minas, pois dessa maneira está ficando inviável”, disse Leite Praça.
O presidente Antônio Fabrício colocou a OAB à disposição do tribunal para integrar o grupo de trabalho e disse que o assunto será levado ao Conselho Pleno da seccional na próxima reunião. “Estaremos vigilantes sobre esses casos que extrapolam a questão da razoabilidade. Vamos punir, sem dúvidas, os advogados que tiverem usando a justiça para se beneficiar, além de impedir o andamento jurisdicional. Estamos formando a comissão e os casos fraudulentos serão encaminhados ao Conselho de Ética da OAB”, adiantou Antônio Fabrício.