Um terço dos adolescentes apreendidos por atos infracionais em Belo Horizonte têm envolvimento direto com as drogas, seja para tráfico, seja para uso próprio. Segundo levantamento da Vara Infracional da Infância e Juventude da capital, dos 9.106 jovens apreendidos na cidade em 2014, 3.321 (36,47%) foram enquadrados por envolvimento direto com as drogas.

Titular da vara, a juíza Valéria da Silva Rodrigues alerta que a realidade, já preocupante, pode piorar, caso o Supremo Tribunal Federal (STF) decida pela descriminalização do porte de drogas para consumo próprio. O assunto foi tema de votação no último dia 20 e, após pedido de vistas, segue suspenso.

Valeria


Na avaliação da juíza Valéria Rodrigues, que lida há 11 anos com crianças e adolescentes apreendidos na capital e levadas ao Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional (Cia-BH), o argumento do ministro Gilmar Mendes, relator do processo e que votou favoravelmente à descriminalização, não abrange toda a complexidade da questão.

“A fundamentação legal do ministro foi de que seria uma auto-lesão, que não afetaria a sociedade para que o Estado regule sobre isso, mas eu acredito que não é tão simples pensar que cada um faz com seu corpo o que bem entende. (A descriminalização do uso) fere o direito de terceiros sim”, defende Valéria. “Como juíza há 23 anos, lidando direto com a criminalidade, vejo como a droga afeta os membros de uma família e como causa outros crimes, já que, geralmente, o dependente químico pratica furtos para manter o vício, e, por vezes, o traficante vai à casa da família ameaçar todos para pagar uma dívida do tráfico”.

A juíza pondera que toda substância alucinógena, além de causar problemas de saúde ao usuário, traz reflexos na sociedade. “A abstinência é uma coisa seriíssima. Crianças e adolescentes ficam descontrolados e precisam da droga naquele momento, fazendo o que for necessário para obtê-la. Daí os casos de lesão corporal e homicídios entre familiares, porque a família nega o dinheiro, e o adolescente entra em desespero porque está fissurado”, explica Valéria, que considera preocupante o elevado índice de adolescentes apreendidos ao ano por uso de droga.

Com o argumento de que esse uso afeta a família e a sociedade como um todo, a juíza defende que a descriminalização seja discutida com a sociedade. “Uma mudança dessas devia passar por um plebiscito para que a sociedade pudesse ser consultada”.

Entenda. No último dia 20, após o ministro Gilmar Mendes, relator do processo, votar pela inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas 11.343/2006, Edson Fachin pediu vistas dos autos. Nesta segunda, Fachin devolveu a ação para julgamento. A lei de 2006 define como crime o porte para uso pessoal.

Dados.Dos 3.321 jovens apreendidos em BH, em 2014, por envolvimento com drogas, 2.278 foram por tráfico e 1.043 por uso. A juíza Valéria pondera que a droga também originou furtos, roubos e porte de arma.

Além dos transtornos às famílias, o uso de drogas entre crianças e adolescentes também leva a um outro problema: o abandono precoce dos estudos. Pesquisadora da área na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a psicóloga Michelle Ralil explica que, do ponto de vista psicológico, os jovens tendem a fazer experimentação precoce em função de pares e amigos, o que pode levar a problemas diversos na escola.


“O uso contínuo pode gerar problemas desde a questão escolar até a comportamental e também interferir na saúde, já que o processo de formação se dá nessa passagem da infância para a adolescência”, explica. “Isso pode trazer questões relacionadas à violência e até aumentar alguns transtornos de personalidade no caso de já haver alguma tendência”.

A psicóloga alerta que o uso contínuo da droga também pode, dependendo do tipo de substância, fomentar a depressão e possíveis tentativas de suicídios. “A questão da droga é um problema de todos que estão ao redor (do usuário)”.

Minientrevista

Valéria Rodrigues

Juíza

Qual o posicionamento da senhora sobre o julgamento no Supremo?

Criou-se um paradoxo, porque seria legal comprar, mas continuaria proibido vender, o que mantém a figura do tráfico. O adolescente envolvido com droga coloca em risco não só a sua vida, mas a da família. Já presenciei adolescentes entrarem com faca em casa, ameaçando a mãe pela fissura da droga. Se isso não for monitorado, vamos partir para um caos no aumento da violência. Fiquei me perguntando: a quem interessa a legalização, se é algo que só traz aumento de criminalidade e desgraça às famílias?

O risco para a sociedade é grande?

Sim. Se o problema fosse só de quem usa, realmente deveríamos liberar tudo. Mas não é. Entendo que existe um dano à sociedade, e o governo, nas três esferas, não oferece nenhum acolhimento eficaz. Esse indivíduo vai se tornar um dependente químico e vai te assaltar e te meter uma faca porque está sob efeito da droga e precisa do dinheiro. Além disso, o tráfico não vai mudar.

Foto: TJMG
Fonte: O Tempo