A polêmica sobre os possíveis vetos da presidente Dilma Rousseff ao projeto do novo Código de Processo Civil, enviado para sanção presidencial, tem aumentado. Depois de aprovado o projeto na Câmara e no Senado, uma nova queda de braço — dessa vez entre associações de juízes e advogados — gira em torno do artigo 489 do novo código. A norma cria parâmetros pelos quais o juiz deve fundamentar suas decisões.
Dentre outros pontos, o artigo 489 prevê que toda decisão deve “enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”.
Para a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), o Congresso Nacional restringiu o conceito de fundamentação previsto no artigo 93, da Constituição Federal. "O Poder Legislativo não pode ditar ao Poder Judiciário como deve interpretar a Constituição. Esse papel cabe sumamente ao próprio Judiciário; e, em derradeira instância, ao Supremo Tribunal Federal, guardião constitucional da Carta Maior”, afirma Paulo Luiz Schimdt, presidente da entidade.
Juízes ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico afirmam que nos casos trabalhistas, por exemplo, a norma prejudicaria os hipossuficientes. Isso porque as empresas vão criar modelos enormes de petição, retardando a solução do processo, uma vez que o juiz terá que analisar ponto a ponto.
Para a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), ao exigir que o juiz analise todos os argumentos das partes, o novo CPC vai burocratizar o processo. "Há uma liberdade nas petições que permitem que sejam elencados todo e qualquer fundamento, inclusive as que são impertinentes”, diz o presidente da entidade, João Ricardo Costa.
No entanto, a visão de parte da magistratura não é a mesma de advogados e juristas consultados pela ConJur. “A verdade é que nem deveríamos necessitar de um dispositivo legal que ensine o julgador a exercer adequadamente seu dever constitucional. Mas a crueza da realidade forense obrigou o legislador a ser excessivamente didático”, afirma Lúcio Delfino, doutor em Direito Processual Civil pela PUC-SP. “Pode doer a alguns mais sensíveis, mas o dispositivo legal é uma resposta amarga para abusos judiciais (ausência de fundamentação significa isso mesmo: abuso) verificados dia a dia na praxe judiciária”, complementa.
Lenio Streck, advogado e professor, aponta que o dever do juiz de enfrentar todos os argumentos das partes é coisa antiga, já utilizada em outros países como a Alemanha. ““Não é verdade que o NCPC torna o sistema mais lento. Ele tornará o sistema mais sério e responsável. Na Europa, que é primeiro mundo, a fundamentação detalhada é um direito humano-fundamental”, diz.
Alexandre Câmara aponta que, ao contrario do que foi dito pelas associações, a fundamentação completa irá evitar recursos e, com isso, a anulação de decisões não fundamentadas. No mesmo sentido, José Miguel Garcia Medina afirma o novo CPC apenas deixa explícito o que já se exige atualmente: que examine os fundamentos apresentados pelo autor e pelo réu, sempre que puderem conduzir a resultado diverso. “Quando o tribunal anula uma decisão por falta de fundamentação e determina o retorno dos autos para que se profira nova decisão, isso, sim, faz com que o processo demore mais”, diz.
Para o juiz do Tribunal de Justiça de Santa Catarina Alexandre Morais da Rosa, a nova compreensão da teoria da decisão acolhida pelo Novo CPC democratiza a decisão judicial a qual deixa de ser decisionista, para respeitar as pretensões de validade suscitadas pelas partes. “Deve-se enterrar a concepção autoritária de que as partes devem trazer os fatos e o juiz entregar o direito. A teoria da decisão se moderniza, ainda que com resistência de boa parte da magistratura”.
“Não se pode considerar fundamentada a decisão que julga o processo sem examinar as teses suscitadas pelas partes”, diz o advogado Ulisses Sousa, sócio do Ulisses Sousa Advogados Associados e secretário geral da Ordem dos Advogados do Brasil do Maranhão. “Ora, o direito de ação não se limita à possibilidade de levar os litígios à apreciação do Poder Judiciário. Compreende também o direito do cidadão de obter um exame atento e adequado dos seus argumentos”.
Para Sousa, hoje são raras as decisões com fundamentação adequada. “O que constatamos hoje, em tempos de crescente informatização do Poder Judiciário, é a proliferação das sentenças ou decisões 'padronizadas', com aparente fundamentação. Com motivação tão genérica e imprecisa que se aplica a um grande número de lides semelhantes, ou, o que é pior, que as vezes são usadas até mesmo para julgar casos diferentes”, complementa.
Na opinião de Rafael Tomaz de Oliveira , advogado e professor, não há no novo CPC qualquer restrição ao conceito de fundamentação previsto na Constituição Federal. “O texto apenas afirma algo que já se encontra retido no sentido de fundamentação encampado por nossa Constituição”, diz.
Para ele, o que gera mais perplexidade neste raciocínio das associações de magistrados é o de que o direito fundamental à decisões judiciais fundamentadas teria como titular o órgão jurisdicional quando este, na verdade, é o seu destinatário. “Ora, o titular deste direito fundamental é o cidadão e, quanto a este, caberia a pergunta: em que momento artigo 489 restringe o direito de todo cidadão de receber do Judiciário uma decisão fundamentada? A resposta é obvia: em nenhum”, afirma.
Marcus Alexandre Matteucci Gomes, sócio do Felsberg Advogados, explica que a redação proposta para o artigo 489 do novo CPC não tem por propósito ditar ao magistrado como interpretar a Constituição. “Tudo o que faz é buscar indicar parâmetros mínimos (e, portanto, sem prejuízo de quaisquer outros que se mostrarem necessários para a plena satisfação da norma constitucional), que, no curso do processo, devem ser satisfeitos pelo magistrado para que as decisões possam ser reputadas suficientemente fundamentadas”.
Para Tiago Asfor Rocha Lima, sócio do escritório Rocha, Marinho e Sales Advogados, o parágrafo 1º, do artigo 489, apenas impõe ao magistrado algumas cautelas no que tange às decisões judiciais, a fim de que não sejam genéricas e se descurem de examinar o caso concreto. “Buscou, pois, a nova lei processual que os magistrados sejam cuidadosos na citação de dispositivos legais, no emprego de conceitos jurídicos indeterminados e na aplicação ou não de precedentes judiciais”, explica.
Argumentos impertinentes
Os advogados também rechaçaram as críticas quanto à possibilidade do uso de argumentos impertinentes pelos advogados, o que segundo os juízes atrasaria o andamento processual. Na visão de Rafael Tomaz de Oliveira os argumentos ruins ou impertinentes fazem parte do jogo e não podem ser sumariamente ignorados. “Nenhum argumento ou pedido pode ser considerado ruim de forma a priori, como parece querer a AMB. A determinação do que é pertinente ou impertinente, exige um necessário exame a posteriori. Desse modo, se já houve o enfrentamento — para avaliar a pertinência do pedido — por que não revelar na fundamentação da decisão?”, questiona.
Para Alexandre Câmara os considerados argumentos impertinentes não são um problema pois podem ser rechaçados com poucas palavras. “O novo CPC não exige do juiz que redija tratados. A fundamentação não precisar ser longa. Tem de ser completa."
O advogado Tiago Asfor Rocha Lima vai além. Em seu entendimento, se os argumentos impertinentes forem ignorados, a decisão não poderá se anulada. “Caberá ao magistrado enfrentar os argumentos da parte que, na prática, pudessem levar o julgador a um outro entendimento. Ou seja, os fundamentos impertinentes, se ignorados, não implicarão nulidade da decisão. Atente-se, ainda, que ao analisar os argumentos que possam infirmar a sua conclusão, o juiz evitará que a parte interponha recursos e que os autos retornem à origem para análise de um determinado fundamento. Com isso, pode-se até obter uma antecipação do trânsito em julgado das decisões”, explica.
O advogado Benedito Cerezzo Pereira Filho, sócio do escritório Eduardo Antônio Lucho Ferrão Advogados Associados, lembra que há mecanismos previstos na lei para combater os excessos das partes. “A advocacia necessita de liberdade para postular (princípio da demanda) e o Judiciário tem sim que se manifestar fundamentadamente, sobre todos os pontos suscitados no processo pelas partes. Se entender excessivo, que utilize dos mecanismos previstos no código, como por exemplo, condenação por litigância de má-fé, multa etc”.
Ulisses Sousa aponta que a razoável duração do processo não pode servir de desculpa para que seja eliminada a garantia de fundamentação das decisões judiciais. “É necessário que se diga quais os requisitos necessários para que uma decisão seja considerada como fundamentada. Só assim acabaremos com a prática da 'pseudo-fundamentação' das decisões judiciais. A norma em debate não é uma conquista dos advogados. É uma garantia do cidadão”, conclui.
Georges Abboud, do Nery Sociedade de Advogados, reforça o argumento dos colegas. “Sob o argumento de aceleração do processo e em busca de sua 'desburocratização', não se pode abrir mão dos princípios constitucionais e das garantias fundamentais do jurisdicionado”, diz. “Numa democracia, o julgador deve demonstrar porque a solução proferida por ele é superior às demais, compreendendo a apresentada por uma das partes ou presente em outras decisões. O dever de fundamentação somente estará devidamente preenchido se o julgador evidenciar as razões jurídicas pelas quais a decisão que proferiu é superior à apresentada por uma das partes quando ele acolhe a decisão apresentada pela parte contrária”, complementa.
Livre convencimento
O presidente da AMB, João Ricardo, afirma que o novo CPC, ao exigir que o juiz use os argumentos apresentados pelas partes, impede que ele julgue com base em uma fundamentação que não foi apresentada.
O que é visto com algo negativo pelo magistrado, é comemorado pelos advogados. Segundo Lenio Streck, o novo CPC não mais contempla o livre convencimento. “No velho CPC, pelo livre convencimento, o juiz poderia surpreender as partes. Agora não. Eis o lado republicano e democrático do novo CPC. Se alega 'alhos', o juiz não pode responder ‘bugalhos’”, diz.
Alexandre Câmara afirma que a reclamação do presidente da AMB vai contra o que se entende hoje como princípio do contraditório. “A garantia constitucional do contraditório, compreendida como direito de participação como influência e de não surpresa, já impede o juiz de basear-se em fundamentos que não tenham sido submetidos ao prévio debate.”
Dierle Nunes, advogado e professor da Universidade Federal de Minas Gerais, reforça o argumento: “Em todos os países nos quais o contraditório e a fundamentação das decisões são respeitados de modo pleno o juiz não pode surpreender as partes com fundamentos não discutidos no processo. Infelizmente no Brasil é muito comum decisões de surpresa. O que o CPC/2015 estabelece, nesses termos, é uma garantia de não surpresa, induzindo que o juiz apresente sua terceira via interpretativa do caso ao debate antes de usá-la como argumento decisório”.
Para Rafael Tomaz de Oliveira com o novo CPC o juiz ainda pode julgar a demanda, respeitados os limites da congruência, com fundamento distinto daquele oferecido pelas partes. “O juiz não está proibido de usar fundamentação diversa. O que se proíbe, ao meu ver, é que o juiz dê conformação diversa desconsiderando completamente aquilo que foi aduzido pelos jurisdicionados. Trata-se, na verdade, do cumprimento de mais uma garantia constitucional que é a da efetiva possibilidade da parte influenciar nos destinos do provimento jurisdicional”, diz.
No mesmo sentido, Benedito Cerezzo Pereira Filho entende que em nenhuma hipótese o artigo 489 do novo CPC, ou outro qualquer, impede o juiz de utilizar fundamentação “diferente”. “Os poderes instrutórios e, por consequência, decisórios do juiz são amplos, cuja única exigência para tal é a necessidade de fundamentar a sua decisão. Só isso.”
Na opinião de Tiago Asfor Rocha Lima a norma não vincula o magistrado aos argumentos das partes. “Na verdade, pelo novo CPC, se o juiz constatar de ofício um fato novo, deve o magistrado, antes de decidir, oportunizar as partes de se manifestarem sobre essa questão, conforme parágrafo único do artigo 493 do novo CPC. Embora tal regra não esteja prevista expressamente no CPC/1973, os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa já devem orientar os julgadores nesse sentido”.
Fonte: Conjur