A Lei Maria da Penha sob o olhar de uma vítima de violência doméstica
Por Luziene Medeiros do Nascimento Barbosa Lima
Juíza de Direito titular da 6ª Vara Criminal de Belo Horizonte/MG
O advento da Lei 11.340 de 7/08/2006 - popularmente intitulada Lei Maria da Penha - trouxe para o cenário do direito individual da mulher questões que ultrapassam o seu sentido significante para alcançar no campo do Direito Material o esperado significado.
Isso porque, lembrando a ideia do psicanalista Lacan, hoje toda mulher sabe o que é realmente ser vítima de violência doméstica, pois esse conceito saiu da estrutura imaterial do significante, ou seja, no dizer de Freud, um saber inconsciente da linguagem, para se tornar uma ordem simbólica, materializada na norma jurídica, cujo significado é a proibição da violência contra mulher. Temos agora uma Lei positivada que pune esta conduta.
Na condição de mulher vítima de violência doméstica por 12 anos, nas modalidades física e psicológica, em um casamento que fracassou em virtude desse tema, posso falar do assunto com a propriedade de quem sofreu na pele, em silêncio, as agruras dessa violência. Porém, passou de vítima a uma mulher confiante, que superou os traumas sofridos, vencedora de sua própria história e ser exemplo para qualquer mulher tirar do sofrimento o vigor para se levantar e conquistar seu espaço.
O meu agressor era um jovem lindo, inteligente, extremamente capacitado e amoroso, que conheci aos 16 anos no Rio de Janeiro. Tínhamos a mesma idade, nos apaixonamos e após cinco anos de namoro nos casamos. Ainda estávamos no ensino universitário. Ele, no curso de engenharia elétrica e eletrônica. Eu, cursando Direito, ambos em faculdades federais.
Ele já era técnico em eletrônica, formado pela Escola Técnica Federal no Rio de Janeiro. Trabalhava lecionando matemática e física em cursos pré-vestibular.
No início do casamento, o relacionamento era muito bom, mas depois, ele mudou seu comportamento e passou a me tratar de forma humilhante e quando as coisas não saíam conforme idealizava, a agressões físicas e psicológicas eram aplicadas pelas mais comezinhas razões.
A falta de feijão em uma refeição, cujo referido alimento fora substituído por outro, era motivo suficiente para ele jogar o prato de comida e o suco no meu rosto. Em seguida, saía para comer fora. Depois, retornava arrependido, chorando e pedindo desculpas.
As agressões verbais se tornaram constantes, além de humilhações que afetavam o âmago do meu ser. Foram muitos episódios sórdidos que pouco a pouco consumiram minha alma, fazendo com que a minha autoestima fenecesse.
Então, me tornei uma mulher medrosa, depressiva e refém daquela pessoa a ponto de não mais acreditar ser possível sobreviver sem o seu auxílio. Era uma espécie de dependência paralisante!
Esse tipo de sentimento norteia a psiquê de toda mulher vítima de violência doméstica. Fui uma moça que casou nos anos 1970, em que uma mulher que comparecesse a uma delegacia com o rosto machucado por seu marido seria logo tratada como algoz e não vítima! A pergunta era sempre: “o que você fez para que ele te batesse?”.
Com isso, mulheres de uma classe social mais elevada não se sentiam confortáveis em procurar ajuda legal. No máximo, naquela época, nós, vítimas de violência doméstica, apenas nos desquitávamos (separação antes da lei do divórcio). Nesse status civil, a lei não permitia um novo casamento e essa mulher passava a ser alguém estigmatizada socialmente, como “a desquitada”. Poucas superavam a amargura e a depressão decorrentes dos sofrimentos vivenciados. A superação de algumas mulheres revelada depois das separações dos agressores era limitada, às vezes por falta de tratamento psicológico adequado ou de apoio financeiro e familiar para enfrentar o problema.
Além das lides angustiantes nos processos de separações, por disputas dos filhos, alimentos e bens a serem partilhados, grande parte dessas mulheres não possuía uma profissão rentável que lhes propiciasse arcar com o ônus da própria subsistência e dos filhos daquele casamento falido.
Me enquadro, em parte, nesse estereótipo de vítima. Casei muito jovem, ainda em formação universitária, e, portanto, dependente daquele “Deus”, lindo, inteligente e meu provedor, que falava que me amava, mas não me respeitava como um ser pensante, capaz de lutar e vencer.
Não foram poucas as vezes em que o ouvi dizer: “você é uma porcaria de mulher. Se me deixar, quem vai te querer? Além de burra e incompetente, com dois filhos nas costas, quem vai te querer?”.
Quando não me comportava sob a perspectiva esperada por ele, era sempre xingada com os adjetivos já descritos e com a afirmação de que, sem ele, morreria de fome e nunca iria passar de uma advogadinha medíocre! Nesse aspecto, crescia em minha mente que sobreviver sem meu provedor seria impossível. Tal sentimento faz parte do inconsciente da mulher subjugada pela violência doméstica.
Além disso, a dependência não se restringia à minha pessoa. Havia também dois filhos! A minha formação universitária só ocorreu porque estudava em faculdade federal, pois dele não recebi nenhum apoio. Foram os cinco anos de Direito estudando com livros da biblioteca da faculdade, nem todos os códigos eu possuía para consulta.
Além de ter que vencer as batalhas da vida, tive que superar meus temores e acreditar que possuía, sim, condições de mudar aquela situação. Importa ressaltar que, às vezes, essa mulher ora descrita perde as forças, torna-se vencida! No meu caso, o medo que subjugava meu ser era tão grande que o simples levantar pela manhã se tornara um peso enorme para suportar a dor e seguir.
Dizem que precisamos ir ao fundo do poço para tomar impulso e subir. Acho que foi isso que ocorreu comigo. Só depois de 12 anos de um casamento sofrido, em que em uma das agressões ele quase me matou e foi obrigado a me levar ao hospital por eu ter desmaiado e quase perdido a visão do olho esquerdo, amealhei forças para mudar.
Então, em um lampejo racional, por ocasião de outro episódio de agressão verbal, que não me sinto confortável em relatar, decidi que deveria salvar tanto a mim mesma quanto aos meus filhos.
Foi por amor a meus filhos, inicialmente, que tomei a mais difícil decisão da minha vida: separar-me do meu agressor. Para não ter brigas judiciais, abri mão de minha parte por direito nos bens, pois, enfim, compreendi que preservar minha sanidade mental, e mesmo a própria vida, seria mais importante e necessário do que continuar naquele estado. Decidi viver!
A Lei 11.340 de 7/08/2006 veio minorar o sofrimento de muitas mulheres que tiveram a desventura de sofrerem violência doméstica, sem precisar ser uma Maria da Penha, uma Viviane, juíza vítima de feminicídio no Rio de Janeiro, uma Luziene ou tantas outras que sofreram ou morreram nas mãos de seus agressores por sonhar com dias melhores e com a possibilidade de, ao final, tudo terminar bem! Isso porque incontáveis vezes o agressor diz se arrepender de seus atos, pede perdão com aparente sinceridade e nós os perdoamos.
No entanto, a realidade mostra que isso raramente acontece, pois, uma vez desrespeitada pelo companheiro, marido etc., a mulher será sempre desrespeitada. Isso se deve ao machismo, à falta de educação do homem desde a tenra idade ou, conforme meu caso, ao fato de ser o agressor portador de alguma anomalia psíquica. Seja o que for, nós, mulheres, temos que abandonar esse estado de vitimização e buscar com coragem e fé nossos ideais e, por fim, vislumbrar um futuro melhor e radiante.
Depois da separação foram longos anos lutando por meu sustento e dos meus filhos. O trabalho incessante restabeleceu a minha autoestima, outrora perdida, e possibilitou viver um novo amor.
A minha fé em Deus e determinação me proporcionaram encontrar um segundo marido, amoroso, ter mais um filho e me tornar uma Juíza de Direito, sabendo que “neste mundo teremos aflições”, mas o ânimo direcionado à superação e a fé em Deus está dentro de toda mulher, justamente porque somos capazes de gerar e reconstruir, sempre e sempre uma nova vida!
Meus pais me apoiaram emocionalmente, mas o financeiro tive que buscar nas entranhas da vida e consegui! Parti do ponto zero, morrendo de medo, contudo, crendo que fazemos a nossa própria história, e a superação é o caminho.