Juiz Amaury Silva
Não é apropriado designar a Lei 4.898/1965, que regula o Direito de Representação e o processo de Responsabilidade Administrativa Civil e Penal, nos casos de abuso de autoridade, como uma obsolescência planejada. Embora a lógica de produção e consumo na sociedade industrial como fator de sustentação do sistema econômico e de contenção da liberdade humana, como pensado por Marcuse, possa encontrar paralelo em uma produção legislativa que se resolve pelo consumo e desperdício normativo, o âmbito penal da Lei do Abuso de Autoridade há tempos suscita uma atualização.
Os ajustes em relação aos aspectos administrativos e cíveis já foram incorporados ao nosso sistema jurídico, quer seja pela Constituição Federal de 1988, ou por outros componentes da legislação brasileira: Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar 35/1979) ; Lei 8.625/1993 que institui a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público; o art. 37, § 6º, CF, com a responsabilidade civil administrativa; a Lei do Mandado de Segurança (Lei 12.016/2009); a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92); o regime de responsabilidade civil do Código Civil, a partir do conceito aberto de ato ilícito contido no art. 186, CC, entre outros conteúdos legais, que estabelecem um aparato contemporâneo, atento à dinâmica trazida com a temporalidade desde a metade da década de 1960, quando iniciou a vigência da Lei 4.898/65.
Mesmo no campo penal alguns progressos legislativos foram efetivados nesse ciclo, como a Lei 9.455/1997, que em síntese define os crimes de tortura, e a própria estrutura do Código Penal (Crimes Contra a Administração Pública – Crimes Praticados por Funcionário Público contra a Administração em Geral – art. 312 a 327) que foi revisada em alguns pontos. Lógico que esse quadro não supriu a lacuna do anacronismo da Lei 4.898/65, construída para uma realidade diversa, mostrando a necessidade do controle e contenção do abuso e do excesso de poder, que surge em forma de um impulso natural no homem que o detém, como clássica e historicamente foi registrado por Montesquieu.
No cenário atual, a legitimidade para a proposta de revisão da temática do abuso de autoridade no Brasil encontra outros aportes, extremamente graves e urgentes, com a divulgação do conteúdo de mensagens audiovisuais entre membros do Ministério Público e Judiciário. Essa materialidade que diz respeito a investigações e processos penais que resultaram na condenação de políticos e empresários por crimes relacionados à administração pública (fatos conhecidos como Operação Lava Jato e Vaza Jato), ostenta um quadro fortemente sugestivo da prática de desvios legais e éticos de alguns dos responsáveis pela imputação e seu julgamento.
A abordagem e a discussão sobre um novo regime de abuso de autoridade no Brasil não são ociosas. Essas circunstâncias conferem legitimidade à iniciativa, que não pode se transformar, no entanto, em uma plataforma para se acomodar ressentimentos ou subjetividades, afastando-se de uma racionalidade que Montesquieu ao prevenir sobre o abuso já supunha, quando elaborou sua teoria da tripartição dos Poderes – freios e contrapesos. O ator político (no caso o Poder Legislativo) que fornece o método e o instrumento para o controle do abuso, se exagerar, se transforma em titular do abuso.
É essa a impressão proporcionada pelo texto do Projeto de Lei n. 7.596/2017 do Senado Federal, cujo objetivo central é a revisão da Lei 4.898/65, criando uma categoria dos crimes de abuso de autoridade, na forma do art. 1º: cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído. No Capítulo VI, do art. 9º ao art. 39 estão previstas as figuras típicas e penas respectivas. O propósito da presente reflexão não consiste em exaurir de forma analítica cada um dos tipos penais, quer seja em relação ao preceito primário ou secundário do tipo, os elementos do crime ou outras repercussões em razão da tipicidade, ilicitude ou culpabilidade.
A ênfase que o Projeto de Lei 7.596/2017 exterioriza é uma utilização temerária do direito penal, com grave apoio no afastamento da intervenção mínima; estabelecimento de premissas do crime de hermenêutica que afeta de forma fulminante a legalidade, lesividade ou alteridade e uma adesão indisfarçável ao direito penal do inimigo. Nessa direção, elege como destinatários da inimizade do Estado, os atores responsáveis pela persecução penal, sob a ótica do próprio direito / poder de punir estatal: membros das Polícias, Ministério Público e Judiciário.
Por uma amostragem, os fundamentos dessa aferição assumem as seguintes assertivas, sem pretensão de esgotar outras enunciações. A intervenção mínima não pode ser tratada como um princípio balaústre, mas articulador de referências das ciências criminais ao Poder Legislativo na difícil tarefa de construção dos tipos penais. O direito penal que está distante de ser reconhecido como uma enteléquia aristotélica, não pode ser utilizado para proteger de ataques menores os bens jurídicos. Como explica Muñoz Conde, as perturbações mais leves exigem a solução por outros ramos do direito.
O art. 9º, caput e parágrafo único, incisos I a III do Projeto traz hipótese de intensa violação à intervenção mínima. Criminaliza o tempo utilizado pela autoridade judiciária para analisar e decidir situações referentes ao relaxamento de prisão ilegal; medidas cautelares alternativas à prisão e habeas corpus, quando e sempre for manifestamente ilegal o indeferimento ou cabível o deferimento. Ora, existe toda uma conjuntura normativa no âmbito do Conselho Nacional de Justiça e Corregedorias de Justiça, integrantes de um direito administrativo sancionador, cujo objetivo é verificar a conduta funcional dos magistrados, que bem resolve a proteção ao bem jurídico eleito pelo legislador, que seria o direito à razoável duração do processo.
Se tudo isso não fosse suficiente, o crime de prevaricação, atentando-se para a presença de suas elementares, poderia incidir sobre uma conduta dolosa de magistrado no sentido de inviabilizar a soltura de determinado cidadão (art. 319, CP). É uma nítida miragem a necessidade de convocação do direito penal para esse controle. Se agregarmos a essa compreensão, a percepção de que nesse tipo penal, as formulações de crime de hermenêutica e de violação ao princípio da legalidade, pelas elementares (manifestamente ilegal e manifestamente cabível), a situação se agrava, revelando-se que o objetivo do tipo é criar um cenário de intimidação na construção da decisão judicial.
As expressões que convergem para um adjunto adverbial de modo (manifestamente) são construções lacônicas e indeterminadas. O legislador abre mão da descrição da conduta proibida e chama o intérprete para fazê-lo. Ofende a legalidade, pois descarta a taxatividade na construção do preceito primário do tipo penal. Não assume de modo efetivo, qual o desiderato da proibição. Dessa forma, atinge o postulado da legalidade (art. 1º, CP e art. 5º, XXXIX, CF). Quem diz o que é manifestamente ilegal? A quem cabe definir se é uma hipótese de cabimento de soltura ou substituição de medidas cautelares, sob o prisma do manifestamente cabível? O legislador não quis fazê-lo. Não pode entregar essa tarefa a nenhum outro artífice, por mais qualificado que seja.
A clareza e a precisão da norma penal incriminadora são inafastáveis como pressupostos de sua validade, não podendo gerar contrastantes entendimentos como sinaliza Luisi, ao recomendar a boa técnica ao legislador. Esse binário de ofensa à intervenção mínima e à legalidade, diretamente no sub-princípio da taxatividade foi uma fórmula condicionante para a construção de outros tipos no Projeto de Lei 7.596/2017, como o art. 10 (decretar condução coercitiva de testemunha ou investigado, manifestamente descabida); art. 12 (omissão na comunicação de prisão em flagrante delito); art. 25 (obtenção de prova por meio manifestamente ilícito) e art. 37 (demora injustificada no exame de processo, do qual tenha requerido vista em órgão colegiado).
Não se mostra adequada a nenhum tipo penal do Projeto, a acomodação do crime de hermenêutica, como um enunciado dirigido aos policiais, membros do Ministério Público e Judiciário, enfim, a todos os servidores públicos que segundo a contingência de suas atividades tiverem para o respectivo exercício, de adotarem juízos de valor sobre determinada pessoa ou fato. A injunção da errônea valoração ou formulação é inerente ao campo dialético que orienta a liturgia de uma investigação ou processo. Obviamente, que põe-se fora desse contexto, o comportamento subjetivo doloso, que se presente, deriva o enquadramento para a prevaricação (art. 319, CP) ou outro tipo penal, dependendo do caso concreto.
A interpretação que for reputada indevida, não pode só por si, servir de substância à tipicidade. Na sua miríade de encontrar uma solução pretensiosa, o Projeto traz essa locução no art. 1º, § 2º: A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura, por si só, abuso de autoridade. De modo, antropofágico, ao construir os tipos penais ignora essa disposição inaugural. A maioria esmagadora dos tipos penais do Projeto estabelecem quadros fáticos que são pertinentes à tomada de decisões, a partir de compreensões interpretativas do direito, o que não constitui um arranjo opcional de cunho subjetivo, mas a potencialização da necessidade de justificativa e fundamentação em relação às próprias condutas funcionais, ínsitas a elas. Logo, a penalização da eleição é ferir duramente, o âmago da disponibilidade intelectual, isenção e independência, sobretudo em relação aos membros do Poder Judiciário, pois a eles são confiadas pela intranscendência da jurisdição (art. 5º, XXXV, CF), a definição à lesão ou a ameaça a direito.
Crime de hermenêutica é uma violência repugnante. O dissídio que permeia o direito, como destacou Ruy em defesa de Mendonça Lima apud Nogueira, é relacional e decorrente dos elementos de ordem subjetiva e objetiva que estabelecem as soluções interpretativas: os grandes debates da hermenêutica, em assuntos de lei ordinária e lei constitucional, se travam, por via de regra, no domínio de relações, onde o direito não pode cristalizar-se nessas fórmulas lineares e incisivas, onde a solução das dificuldades suscitadas impõe confrontos, analogias, inferências, deduções, onde o processo da interpretação é complexo, lida com elementos técnicos, e obriga a raciocínios delicados. Dessa complexidade resulta o dissídio entre os julgadores, já no mesmo tribunal, já de um para outro. A posição do intérprete constitui nessa diretiva, uma atitude interna, que não resiste à punibilidade, pois dela não parte a ofensa ao bem jurídico, volta-se a ressalvar, salvo a hipótese de empreendimento doloso. Não se apregoa uma alforria ao decisionismo que rompe com o texto legal, mas considerar que a interpretação jurídica é procedimento vivo, dependente de harmonizações de valores que se ponderam sob um módulo sistêmico.
O controle quanto à possibilidade de reforma das decisões no mérito ou pronunciamento de nulidades, na estrutura autopoiética do sistema processual, e a responsabilidade de ordem administrativa, funcional e disciplinar, ou seja, toda essa conjuntura que assegura a tutela ao bem jurídico, expressa a opção do Projeto de Lei 7.596/2017 pelo direito penal de intervenção máxima, implicando em violação aos postulados constitucionais referidos.
Essa manifestação é pertinente a uma declaração de guerra. Os inimigos foram identificados pelo legislador como sendo aqueles encarregados de aplicar a lei, nas hipóteses da persecução penal. Mesmo que alguns desses destinatários tenham se exacerbado, abusado de modo efetivo da autoridade que dispunham, cabe agora a solução bélica que pode ofender como qualquer guerra, a tudo e a todos, bons e justos, iníquos e éticos.
O ferramental para a beligerância é o direito penal do inimigo. É necessário nesse estado, segundo Jakobs que se neutralize previamente o perigoso, pois ele se afastou do direito, dos valores democráticos e da cidadania. Ao adversário deve se fornecer uma teia, uma esparrela para apanhá-lo naquilo que pode grotescamente significar sua munição: tipos penais convergentes para uma criminalização do seu pensamento e sua deliberação cognitiva e valorativa.
Se pensarmos sob o enfoque do caráter linear e fechado que uma ideia de direito penal máximo, tangenciando com a escolha de inimigos, elaborações abertas onde a instabilidade é o fator determinante para controle e inibição de um determinado segmento, como as autoridades encarregadas da persecução penal, postas ao alcance do Projeto de Lei 7.596/2017, seria estimulante a evocação ao rizoma em Deleuze e Guattari. Ora, não há expoentes fundantes que autorizem uma base epistemológica de adequação no tratamento corretivo de um pretenso excesso punitivista pelo punitivismo, ou de uma vingança cruenta contra aqueles que devendo, não pagaram a outrem com garantias, logo devem ficar sem elas.
O pensamento rizomático é que permitirá não se tomar o particular pelo todo; não justificar os fins pelos meios, isto é, não crer que a solução para o abuso, seja o cometimento de outro abuso e mais abuso, mas na abertura da variedade de direções, significados e apropriações que uma conduta pode adquirir para ser relevante ao direito penal do fato. Se não alcançarmos esse estágio, preponderando o Projeto de Lei 7.596/2017 estará aberto o combate, e em seguida novos confrontos, outros inimigos no front serão lançados, para defesa de pensamentos como hegemônicos com criminalização do contramajoritário, estrangulamento das minorias e movimentos sociais, censura às artes e à cultura, restrição à liberdade de pensamento e de expressão, em suma, o opaco direito penal atende ao convite da permanência como senhor das guerras. Pax vobis!
REFERÊNCIAS
CONDE, Francisco Muñoz. Introducción ao Derecho Penal. Montevídeo – Buenos Aires: IB de f, 2001.
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Volume 4. São Paulo: Editora 34.
JAKOBS, Gunther. MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo (Noções e Críticas). Organ. e Trad. André Luis Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 6ª edição
LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991
MARCUSE, Herbert. O Homem Unidimensional. São Paulo: Edipro, 2015.
MONTESQUIEU, Charles. Do Espírito das Leis. Trad.: Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martin Claret, 2010.
NOGUEIRA, Rubem. O Advogado Rui Barbosa. Ciência Jurídica: 1996.