A Vitimologia é produto de diversas linhas ideológicas e científicas paralelas ao Direito Penal

Henrique Abi-Ackel Torres*

Quando fui convidado para escrever essas breves linhas, sabia que seria impossível tratar de todo o tema, até mesmo de forma introdutória, já que este merece considerações de muito mais profundidade. Optei por falar um pouco sobre o ponto de vista dogmático da Vitimologia, na tentativa de servir de provocação à busca de outras faces desta interessante parte das Ciências Penais, e que, em muito, colabora para a aplicação do Direito.

É certo que as vítimas foram as grandes olvidadas por grande parte do Sistema Penal ao longo da história, e também de seus operadores, especialmente durante o período tecnicista e positivista. Parte disso se deve ao próprio fascínio que a figura do criminoso, e do crime em si, exerce sobre a natureza humana, que leva a sociedade a querer entender o delito, suas razões, e, até mesmo, seus detalhes mais sórdidos.

Por outro lado, o esquecimento da vítima também se deu pela tradicional relação fundamental que se estabelece no Direito Penal e no Direito Processual Penal: a relação entre Estado e delinquente, entre o direito de punir (ou de perseguir a punição) e a reafirmação da norma perante aquele que decidiu quebrá-la. Esquece-se que a vítima também tem interesse na punição, ainda que hoje esta seja exercida pelo Estado.

É verdade, assim, que por muito tempo, o Direito deixou de tecer grandes considerações pelo contexto da vítima. Isso, é verdade, levou a um desenvolvimento técnico de alguns conceitos fundamentais do sistema penal/punitivo, já que afastados os conteúdo de liame emocional. Todavia, o racionalismo puro nunca é verdadeiro, visto que as emoções aparecem independentemente de nossa escolha, como diria o neurocientista português Antônio Damásio, em seu livro “O erro de Descartes”.

“Obviamente, o combate à criminalidadenão deve ser orientado pelo discurso das vítimas que, por estarem envolvidas no delito, possuem tom emocional, mas é importante reconhecermos que elas também possuem interesse na persecução penal”

Nota-se, contudo, nas últimas décadas, grande resgate da influência da Vitimologia sobre as Ciências Penais. Ora, se uma das funções do Sistema Penal é justamente a proteção de bens jurídicos, há que se reconhecer a tarefa de atender à própria situação da vítima, que, muitas vezes, é justamente a titular destes bens.

Pode-se dizer que a Vitimologia é produto de diversas linhas ideológicas e científicas paralelas ao Direito Penal o que, sem a menor dúvida, ampliou o alcance da pesquisa sobre a delinquência de diversas maneiras. Autores como Antonio Beristain, Myriam Herrera, Tamarit Sumalla, Cornelius Prittwitz, entre outros, resgataram o reconhecimento de que a vítima, além de mero meio de prova processual penal, é um ente de grande importância, pois ajuda na compreensão do crime, e, especialmente, possui um papel na sua prevenção.

Obviamente, o combate à criminalidade não deve ser orientado pelo discurso das vítimas que, por estarem envolvidas no delito, possuem tom emocional, mas é importante reconhecermos que elas também possuem interesse na persecução penal. No seio da dogmática jurídico-penal, Bernd Schünemann já introduzira critérios vitimológicos que, a seu entender, deviam influenciar as ideias de merecimento e necessidade de pena. Frisch e Hassemer também possuem contribuições na formulação de critérios semelhantes.

A Vitimologia é tão presente em nossa lida diária que, na própria Parte Geral reformada de nosso Código Penal, o artigo 59 já faz referência ao próprio comportamento da vítima como uma das balizas fixadoras da pena-base, o que, a meu ver, demonstra a existência de preocupação com questões empíricas em relação à vítima.

São tantas as contribuições deste campo de estudos que é impossível esgotá-las nestas breves considerações: temos, por exemplo, a ideia de vitimização secundária, terciária e até quaternária, exercida pelo processo, sociedade e, até mesmo, as mídias sociais; o fenômeno chamado de “etiquetamento inverso”, onde a vítima acaba se sentindo culpada pelo delito; entre diversas outras questões que ultrapassam a dogmática jurídico-penal para temas como a Sociologia Criminal, Criminologia e Política Criminal.

Como dito no início destas breves linhas, minha ideia foi apenas trazer à reflexão o conceito dogmático da Vitimologia e, talvez, provocar a curiosidade em quem teve a paciência de ler tais conceitos, à busca de conhecimentos que, certamente, contribuirão para o aperfeiçoamento do Sistema Penal. Espero, ainda que de forma modesta, ter conseguido exercer a provocação pretendida.

(*) Desembargador do TJMG e Doutor em Direito Penal e Processual pela Universidade de Sevilha (Espanha)