O jornal Estado de Minas publicou, nesta segunda-feira, 13, no caderno Direito e Justiça, artigo produzido pela juíza Ana Paula Caixeta, intitulado "Conciliação X cultura do litígio". Leia abaixo o texto na íntegra.


O Poder Judiciário, a partir da Constituição Cidadã de 1988, e do Código de Defesa do Consumidor (CDC) de 1990 vêm recebendo uma avalanche de processos. Cada tipo de ação exige um procedimento próprio. Alguns mais céleres, outros mais demorados. Para que todos os processos tenham início e tramitação regular, é imprescindível a presença do advogado, do juiz e, em alguns casos, do representante do Ministério Público. Ocorre que para a tramitação e movimentação dos processos também são essenciais os serventuários da Justiça. É uma engrenagem complexa.

Prima-se pela observância dos princípios constitucionais da publicidade dos atos judiciais, acesso ao Poder Judiciário, do contraditório e ampla defesa. Tudo isso voltado para a garantia do Estado democrático de direito e consequente segurança das relações jurídicas. Com a implementação de políticas público-privadas no país, surgiram diversos novos temas submetidos ao Poder Judiciário, sendo certo que o número de processos para exame e julgamento se avoluma a cada momento. Anualmente, há um esforço concentrado do Poder Judiciário a nível nacional para obter uma conciliação entre as partes.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) tem exercido papel importantíssimo na operacionalização das centrais de conciliação e implementação de mutirões, visando justamente diminuir o tempo de duração do processo, tanto que honrosamente foi premiado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no ano passado, com o 2º prêmio “Conciliar é legal”. Em 2011, a Semana Nacional de Conciliação ocorreu de 29 de novembro a 2 de dezembro. A maior parte dos processos enviados para conciliação em Belo Horizonte, em matéria cível, versava sobre pedidos de revisão de contratos firmados entre consumidores e instituições financeiras para financiamento de bens móveis, notadamente veículos.

Houve nos últimos anos aumento do crédito. Milhares de veículos foram colocados no mercado pelas indústrias automobilísticas. Milhares de consumidores tiveram acesso ao financiamento de automotores diversos. De posse dos almejados bens de consumo (veículos, motos, caminhões), quer para o lazer ou para o trabalho, muitas centenas de consumidores resolveram questionar em processos judiciais os juros e encargos praticados pelos bancos/financeiras. O volume deste tipo de ação é preocupante e crescente nos últimos três anos.

Fato é que os consumidores supostamente insatisfeitos ajuízam as ações, continuam de posse dos veículos, não pagam os boletos mensais, não depositam os valores em conta judicial garantida e não comparecem na data marcada para as audiências visando à conciliação, por si ou por seus advogados. Questionam o valor das prestações fixas do financiamento. Assumem a condição de devedores. Não fazem proposta para pagamento. Assim, nessa semana de conciliação, apesar de todos os esforços dos juizes, serventuários, conciliadores e advogados dos credores, infelizmente, muitos advogados que atuam para os consumidores boicotaram a Semana de Conciliação. Defenderam silenciosamente a cultura do litígio.

Na maioria das audiências, esses profissionais não compareceram e, como a intimação é por publicação na imprensa oficial, sequer comunicaram aos seus clientes/devedores sobre o ato. O fomento do crédito é uma realidade, mas a conta dos financiamentos que não é saldada vem sendo paga pela sociedade que honra os compromissos em dia. Preocupa-me no caso relatado o uso do Poder Judiciário de forma equivocada. Aparentemente, não há uma ilegalidade no ajuizamento da ação, mas passa a haver uma conduta absolutamente antiética no curso do processo diante da ausência de seriedade do consumidor insatisfeito e do advogado que o representa, o qual alega excesso de encargos, continua usando o produto financiado e não paga sequer o valor do capital mutuado.

Há uma distorção no uso do Poder Judiciário na medida em que a ação deveria ser usada para obter declaração do suposto excesso de encargos, mas acaba dando guarida para o calote. Ao que parece se ganha tempo para usar um bem que o consumidor não tem condições de manter. Não estou a defender a diminuição do crédito e nem da oferta dos bens de consumo, mas o uso ético das vias de acesso ao Poder Judiciário. Cria-se uma massa de consumidores que acreditam que podem comprar tudo e usar sem pagar. Diferente daqueles que, sentindo-se lesados, depositam em conta judicial os valores constantes dos boletos em uma atitude responsável que gera credibilidade no exame de sua pretensão. Apurado o excesso, o banco/financeira procede ao levantamento do valor correto e o restante é devolvido para o consumidor.

Concluo, portanto, que a cultura da conciliação somente é possível quando as partes e profissionais envolvidos são portadores de valores morais e éticos sólidos, cientes de que para cada direito existe uma obrigação correlata. Para estes é que o Poder Judiciário precisa ser mais célere, o que não tem sido possível diante do abarrotamento de processos envolvendo litigantes e advogados sem responsabilidade processual e social. Que possamos construir uma sociedade mais justa, que possamos viver em uma sociedade mais harmônica, que possamos extirpar de nosso cotidiano o jeitinho brasileiro de levar vantagem.

*Ana Paula Nannetti Caixeta é juíza da 33ª Vara Cível de Belo Horizonte.

Fonte: Estado de Minas – Caderno Direito e Justiça