"Imagine que você, caro leitor, tenha algum dinheiro a receber. Esse crédito lhe é reconhecido por meio de uma decisão judicial definitiva, constituindo o que em direito se chama algo líquido, certo e exigível. Portanto, basta que você chame seu devedor, por meio de uma ação de execução, a arcar com a responsabilidade que a ele cabe e fim de história. Certo?
A resposta é: mais ou menos. Isso porque, quando o devedor é o poder público (seja a União, sejam os Estados, sejam os municípios), a história não é bem assim. Aliás, ela é muito mais complicada, para não dizer triste e injusta.
Quando quem deve é o Estado, atento leitor, o seu crédito, chamado de precatório, entra no final de uma enorme fila, organizada por ordem cronológica, para que só então lhe seja providenciado um futuro e incerto pagamento. Salvo raríssimas exceções, sabe-se lá quando você ou os seus herdeiros, mesmo após anos e anos de contenda jud icial, verão a cor desse dinheiro.
E essa situação, em que o Estado é quem deve, é extremamente comum e aflige milhares de brasileiros. São aposentados, pensionistas, empresas, servidores públicos ou cidadãos que, de alguma forma, foram vitimados ou lesados pelo poder público ou por seus agentes, mas que se veem de mãos atadas por não encontrarem meios jurídicos efetivos para garantir aquilo que lhes é reconhecidamente devido por sentença judicial.
O Poder Legislativo poderia ter dado um basta nesse perverso e desrespeitoso sistema de pagamento de débitos pelo poder público. Poderia, mas não o fez. É que, ao cair da noite do último dia 1º de abril, o Senado aprovou a proposta de emenda constitucional nº 12/06 e contribuiu para sacramentar mais uma dificuldade imposta ao cidadão comum que é credor do Estado. E, bem ao contrário do que a data de aprovação possa sugerir, tal ato não se tratou de um chiste.
Ao longo de um único dia, o Senado, em notório e louvável excesso laborioso, convocou nada menos do que três sessões extraordinárias consecutivas para que os prazos regimentais fossem formalmente cumpridos e aprovou a famigerada "PEC do calote", que é como tem sido chamada essa inovação legislativa. Lamentavelmente, a repentina aprovação de um projeto que tramitou naquela Casa durante mais de três anos não refletiu nenhum ganho para a sociedade.
A aprovação da PEC nº 12/06 traz injusto descrédito à imagem do Poder Judiciário, uma vez que limita a eficácia das decisões judiciais e consagra o famoso adágio "ganhei, mas não levei". Além disso, interfere na autonomia e na independência que devem pautar a coexistência entre os Poderes da República, porque a mesma mão estatal que, por um lado, condena, por outro, está a isentar o devedor da sua obrigação de imediato pagamento. Ela institucionaliza o calote de dívida pública e, o que é pior, submete a parte mais fraca, que é o credor, a um constrangedor "leilão" de sua dívida, em que é o próprio poder público inadimplente quem oferece o lance de quanto e como quer pagar.
O Judiciário, mais uma vez, se vê na berlinda por uma situação a que não deu causa. Isso porque, aos olhos do cidadão comum, pode parecer que a demora no pagamento se deve a algumas das limitações, por vezes tão evidentes, que afligem esse Poder. Entretanto, desta feita, é necessário esclarecer que a responsabilidade única e exclusiva para o pagamento de precatórios cabe ao Poder Executivo, que é quem administra as finanças estatais em seus diferentes níveis e detém a chave do cofre. Responsabilidade agora compartilhada com o Poder Legislativo, ao aprovar proposta com tal conteúdo.
Na semana em que os representantes dos três Poderes assinaram em Brasília o segundo pacto republicano de Estado por um sistema de Justiça mais acessível, ágil e efetivo, o S enado deu sua contribuição em sentido diametralmente oposto. A PEC segue, agora, para o crivo da Câmara dos Deputados, onde depositamos nossa profunda confiança de que o grave e imoral erro do calote público será contornado."