Desembargador Cláudio Costa - Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Minas
Há tempos ocorreu-me chamar o professor Antônio Anastasia de político da Renascença. A frase pode ter soado ambígua, porque, como na metáfora de Maquiavel, o exemplo do poder, naquela época, reclamava leões e raposas. Contudo, o meu propósito era o de correlacionar os atributos intelectuais dele aos dos humanistas, que revalorizaram a dignidade humana frente ao conceito da soberania do Estado, que ali nascia.
Assim o vejo porque ele me afigura o homem político em plenitude. É de vê-lo em ação. Tem domínio de todas as situações, discernimento e coragem, reflexão e resolução, senso comum e singularidade. A multiplicidade de aspectos com que se move na cena política lembra-me o que Erasmo disse de Thomas Morus: omnium horarum hominem, a saber, homem para todas as horas, capaz de enfrentar as astúcias da sorte, ou, como se vê na peça de Robert Bolt, homem para todas as estações.
A inteligência apta a se desembaraçar dos sobressaltos da fortuna, sobretudo dos desafios políticos, resulta de flexibilidade intelectual, que conduz a ação e permite ao estadista a compreensão dos múltiplos embates que depara e que lhe cumpre vencer. É o homem de todas as estações. Deveres institucionais levaram-me ao convívio de nosso governador. Já conhecia o intelectual, o jurista, o professor. Aproximei-me do homem político.
No trato dos problemas do Poder Judiciário, que reclamavam resposta sua, nunca vacilou em decisões de suporte à dignidade moral e material do colégio da magistratura, ocasiões em que pude entrever seu cuidado na preservação do equilíbrio de eventuais conflitos de interesse, naturais na dinâmica da condução política do estado. Em sua visão não há maioria ou minoria, em corporações ou lobbies. O jogo democrático é um concurso de iguais, uma razão igualitária, cujo conteúdo é o interesse comum. Tal é o sítio em que ele se move.
Mas não é só isso. Ele é partícipe dos esforços do Judiciário na difícil questão social do nosso tempo, que é a da execução penal. Conhece o tema não somente pelos livros, mas pela vivência do drama, em razão de sua constante presença. Sua intervenção sempre ocorrente é um arrimo poderoso. O Judiciário mineiro é um dos protagonistas, no Brasil, do esforço de efetivar a execução penal à luz do método Apac. O governador está nisso. O Programa Novos Rumos, de fundamental importância nesse tema, tem também o seu concurso. Em suma, ele está engajado na busca das soluções desse problema social que é a nossa vergonha de cada dia.
Longos anos na judicatura e o atual exercício da Presidência do Tribunal de Justiça deram-me alguma experiência na leitura de homens e fatos. Deram-me também certa angústia de tanto ver o Brasil desprezar, prodigamente, seu capital humano. Lafayette, no império, não teve meios de ação, como o reclamava seu gênio, nem condições de conservar o gabinete que formara, para protagonizar a cena política. Na república, San Tiago Dantas foi rejeitado para o cargo de primeiro ministro, quando poderia com sábia ação parlamentar ter conduzido o Brasil a destino que ainda buscamos. Um e outro, no seu tempo, eram as maiores expressões do saber jurídico, da ilustração humanística e do descortino político, contudo foram impedidos de exercer o poder, com a necessária amplitude, como se o conhecimento implicasse a perdição da carreira política.
O governador Anastasia é um intelectual. Espero que esse predicado, no seu futuro político, apto a galvanizar o país, não lhe seja patíbulo, para aplacar leões e raposas. Acredito, com Robert Dahl, “que as perspectivas da democracia a longo prazo são ameaçadas mais seriamente pelas desigualdades nos recursos, posições estratégicas e poder de barganha advindos não da riqueza ou da posição econômica, e sim do conhecimento especializado.” Esse mestre de Yale acena com a “visão das pessoas governando a si mesmas como iguais políticos e de posse de todos os recursos e instituições necessários para fazê-lo”. O ponto a reter é o da expressão “iguais políticos”.
Meu contraponto é a indagação sobre se a lei, que é norma de organização e conduta, resultante, sobretudo da expressão da vontade dominante, ao influxo das maiorias partidárias, de si só, produz “iguais políticos”. A resposta talvez seja negativa. A racionalização da realidade mostra que a justificação de um governo, pelo só império da lei, não bastaria, porque implicaria ideia de sistema. Toda norma aspira à permanência e só se efetiva sistematicamente. Entretanto, a ação política é contínuo movimento. A vida, mesmo, é assistemática. Igualdade e maioria são termos que se opõem. Naturalmente, a lei é a fronteira que conforma o espaço para o debate político, mas não lhe dita a vontade que, inclusive, pode alterar-lhe a extensão e o império.
Governar é se meter em contrato, sob constante discussão e negociação, como na lição de Leon Blum. É o movimento contínuo. É a dialética do transitório e do permanente, sem etapas duradouras e sem soluções peremptórias. As experiências educacionais confirmam a asserção de Dahl. A perspectiva da democracia, a longo prazo, se correlaciona à questão do conhecimento, como tema dominante. O passo decisivo para a igualdade política só se efetiva com a disseminação das atividades críticas e dialogais, que impulsionam a intérmina renegociação, com a qual o governo e povo transitam do estranhamento à identificação. O resto vem a reboque, inclusive o progresso econômico.
A instrução, tal como a entendeu a Renascença, foi a revalorização do humano. Era um método, um instrumental, não uma ideologia. Daí a sua feição atemporal, com seu conteúdo sempre renovável. É construção, que reclama inteligência múltipla, aptidão para mudanças contínuas. Busca liderança de quem se faça presente em todas as estações, é dizer, omnium horarum hominem. Daí a significância da presença de um humanista no governo de nosso estado.
Se o saber, pois, é valor essencial da dignidade humana, o governo de iguais políticos não se faz sem ele. O estadista moderno há de ser um homem da Renascença, munido das ideias e intuições do tempo presente. Ao chamar o governador Anastasia de político da Renascença, soava em minha mente a percepção de que sua ilimitada presença política estimulara em mim uma grande esperança no destino. Ao término do período de minha presidência no Tribunal de Justiça mineiro, ordem de consciência me faz realçar o traço mais significante de seu perfil e o dever de expressá-lo, levam-me a esta despedida pública. É o meu modo de lhe dizer adeus.
Artigo publicado no jornal Estado de Minas, no dia 15 de maio de 2012