Desembargador Doorgal Borges de Andrada*
“Quando os nazistas levaram os comunistas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era comunista. Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era social-democrata... ”. “Quando levaram os judeus, eu não protestei, porque, afinal, eu não era judeu. Quando eles me levaram, não havia mais quem protestasse". Pastor Martin Niemoler
Publicada em dezembro/2011, a proposta para um novo Regimento Interno do TJMG merece estudo e reflexão de cada membro do TJ e cada ponto polêmico não pode ficar imune a uma análise crítica construtiva e aberta.
A expectativa entre os advogados, servidores e magistrados era de uma proposta com modernização administrativa. Mas, na prática, não foi bem assim.
Vejamos seis tópicos, como uma modesta contribuição:
1 - Diferente dos direitos dos membros do Ministério Público , dos membros da Procuradoria do Estado, da Polícia Civil e da Defensoria Pública, o projeto traz – estranhamente – uma restrição não prevista em nenhum outro Tribunal. O desembargador ou desembargadora, assim como juízes de 1º grau, que tirar licença maternidade, licença para se casar, licença para estudar fora (mestrado, doutorado) etc. quando retornar da licença deverá trabalhar o dobro do que os colegas, recebendo processos de modo a compensar os dias licenciados (uma verdadeira punição e desestímulo! ). (art. 163 da proposta).
Tal proposta fere direitos e regras da LOMAN e até garantias individuais da Carta Política de 1988, esquecendo-se de que trabalhar em dobro sem a remuneração levará ao ‘enriquecimento ilícito do órgão patronal’.
2 - O projeto ignorou que o Judiciário mineiro é composto de 950 juízes de direito no 1º grau e de 20 mil servidores, pois cria inúmeras comissões futuras no TJMG com o objetivo salutar de analisar e deliberar sobre temas do Judiciário: comissão de orçamento; de salário; de estudos de promoção; de instalação de varas e reformas de prédios; de administração etc. Mas, curiosamente, nenhuma delas contempla a presença de um juiz de direito ou de um servidor para darem sua contribuição e relatar a experiência.
Lembro-me agora – surpreso - que há pouco, muitos dos membros da atual comissão eram ainda juízes e, no Fórum Lafayette, lamentavam que os desembargadores daquela época não os ouviam. Portanto, concluíam que o Judiciário era mal administrado, pois a ‘base’ era ignorada. Isso é curioso, pois bastou que se transformassem em desembargadores para agirem de igual modo, como agiam os que eles criticavam em passado recente. De fato, afirmam que a história se repete: mudam-se apenas os personagens.
Não haverá mudanças quanto a uma participação mais aberta na gestão. Após séculos, o modelo de administração desde os tempos do Brasil Colônia continuará e juízes e servidores permanecerão excluídos de comissões, sugestões e manifestações.
3 - Nessa mesma linha - sutilmente - o projeto também afasta a Direção do TJ (presidente, vices e corredor-geral, ou seus representantes) nas futuras comissões.
Portanto, parece, data venia, pouco sensato ou contraproducente criar comissões sem uma participação mínima dos que dirigem e administram o Tribunal, de quem tem a responsabilidade de gerenciamento, execução e detém as informações e o dever de enfrentar os problemas administrativos.
Poderá se instalar uma anormalidade: a direção do Tribunal, decidindo por um caminho gerencial, e uma eventual comissão - sem ouvir a direção - querer na direção oposta, levando o TJ ao imobilismo ou caos administrativo. Será a caricatura de um Poder.
Aliás, há uma curiosidade na proposta: a criação de uma comissão de promoções com seus membros eleitos, porém vedada injustificadamente a eleição e participação de membros da Corte Superior, justamente os que votam as promoções. Isso nos leva a imaginar a criação de uma Corte paralela, bem próprio de um confronto ou desrespeito. (art. 9, IX, letra K).
E tais comissões serão formadas somente por membros eleitos pelo pleno sem considerar a representatividade dos órgãos fracionários do TJMG, como as Câmaras e/ou Grupos de Câmaras, e o quinto constitucional. Poderemos ter comissões, por exemplo, de 7 ou 10 membros, sem representante de Câmaras Criminais e de desembargador oriundo do quinto, numa falha irretocável.
A experiência no Legislativo, que reparte os membros das comissões entre todos os segmentos fracionários da Casa (partidos), obrigatoriamente e de modo proporcional, para acolher todas as correntes e ambientes de trabalho e de pensamento. Data venia, isso é mais inteligente e dá maior legitimidade às decisões.
4 - Estranhando a todos, a preocupação e a importância dada ao ‘membro suplente’ da Corte Superior. O titular só poderá disputar uma reeleição, limitando o tempo da sua atuação em dois mandatos consecutivos (2 anos cada). Porém, ao suplente - incoerentemente - o projeto permite a sua participação na Corte de modo ilimitado. Ele poderá participar indefinidamente, permanentemente, e ser reeleito suplente quantas vezes quiser, jamais se afastando.
Portanto, o desembargador que vier a ganhar a eleição (titular) ficará com uma participação limitada a 4 anos. Já aquele que perde a eleição (suplente) fica premiado podendo participar das Sessões sem ter uma limitação.
Cria-se no TJMG a figura do suplente ‘biônico’. Aquele que vota, mas que não teve votos. É ilógica essa inovação, é pouco republicana. Uma fórmula que parece individualista ou direcionada a interesses pessoais, longe de atender ao elevado interesse de democratizar o Poder.
Pior. O projeto ‘inventa’ mais poderes ao suplente. Ele passará a ser suplente de todos os titulares e não apenas suplente do seu titular. Enquanto o membro titular ocupa apenas uma vaga, o seu suplente poderá ocupar a vaga de todos titulares na Corte. (art. 14, parág. 1º e 2º.)
5 - Por cerca de meio século, a Segunda Instância, em Minas Gerias, foi dividida em Tribunal de Justiça e Tribunal de Alçada. Para ser promovido ao TJ era preciso antes fazer um ‘estágio’ de 5 a 10 anos no extinto TA.
De tanto alegar que a divisão entre TJ e TA não se justificava, pois todos eram membros de um mesmo 2º grau e a divisão criava um juiz de 1ª e de 2ª
classes, dentro de uma segunda instância.
Cabia ao TJMG analisar as matérias com repercussão nas políticas públicas, ou seja, o chamado direito público. Alegava-se que magistrados mais competentes, com visão, experientes e preparados, poderiam participar desses julgamentos.
Com a extinção do TAMG, a luta passou a ser pela busca da competência igualitária, sem distinção. Mas, para espanto geral, o projeto prega agora um retrocesso, uma volta ao passado. Hoje, 40 desembargadores examinam direito público. O projeto, ao contrário de ampliar, quer reduzir a missão de julgar a matéria para as mãos de um “clube de 1º classe” (denominada de 1ª Seção).
Estando proibido recriar a denominação de Tribunais de Alçada (a Constituição impede), então serão nominados de 2ª e 3ª Seções os ‘de fora’ da 1ª classe. Na prática, formalmente, quase ressuscitaremos TA’s, porque os futuros membros dessas 2ª e 3ª Seções terão jurisdição bem próximas dos antigos Alçadas. (art. 27 e 28)
Ora, se o direito público é mais importante e delicado, melhor seria então abri-lo, permitindo maior acesso, participação, mais transparência e impessoalidade, dividindo com maior número possível a responsabilidade de tais decisões e da sua jurisprudência. Diferentemente, a chamada Seção de Direito Público do TJSP abriga mais de 100 desembargadores. Um exemplo de modernidade!
No âmbito criminal, sob a liderança do desembargador Adilson Lamounier, um abaixo-assinado impediu na raiz que a proposta dividisse a área criminal do TJ em desembargadores de 1ª e 2ª classes (duas Seções). Uma teria poder de julgar crimes de competência originária e a outra Seção, o restante dos crimes.
Enfim, na prática, retrocendendo à década de 1960 – meio século atrás – formalmente, o projeto traz a recriação de modelos típicos dos antigos TJ e TA.
6 - Em matéria de administração e gerenciamento dos Tribunais, a magistratura, em geral, sempre reclama do seu despreparo para a missão executiva. Na última pesquisa feita com todos os magistrados mineiros, em 2008, pela FGV (gestão do presidente Sérgio Resende) cerca de 75% desaprovaram a administração.
Agora, quando os juízes são chamados a ‘legislar’– em muitos aspectos – o resultado parece até mais fraco que as Casas Legislativas – e que são criticadas pela sociedade em geral. É que vícios e interesses pessoais, sutilmente embutidos na proposta do regimento, se revelam.
Mas, como a esperança é imortal, os que se sentirem prejudicados pelo futuro regimento, ou se ele tornar ingovernável o TJMG, certamente, na condição de cidadãos comuns os juízes de 1º grau (sem vez nem voz no Judiciário), desembargadores e servidores, poderão buscar a última esperança no Legislativo estadual – onde certamente poderão ser ouvidos – e solicitar, através de Emenda Constitucional à Carta Estadual, ou emendas à futura LODJ, uma natural correção de eventuais equívocos de um regimento que, de algum modo, se anuncia excessivamente conservador, concentrador de poder e pouco eficaz.
Porém, interna corporis, é tempo de renovar e mudar, de debater, de melhorar.
Reflitamos sobre a proposta em discussão sem paixões. O que todos desejam e esperam é o aprimoramento do nosso regimento interno.
*Integrante da 4ª Câmara Criminal do TJMG e ex-presidente da Amagis.