Evandro Cangussu Melo
Juiz da 2ª Vara Criminal, Precatórias Criminais e da Execução Penal de Sete Lagoas -TJMG
Membro da Comissão da AMAGIS que estuda a nova lei de execução penal no legislativo
Já tive oportunidade de escrever sobre o futuro papel do conselho da comunidade na nova LEP-Lei de Execuções Penais (vide artigo no jornal Estado de Minas, caderno Direito & Justiça, no dia 11/07/2014, cujo conteúdo encontra-se inserido em publicação também da AMAGIS–Associação dos Magistrados Mineiros no site www.amagis.com.br acerca da nova LEP).
O tema deste novo artigo é outro. O foco é a situação atual dos conselhos da comunidade sob a égide da LEP atual. Não sob os aspectos de estrutura ou atribuições legais, apenas quanto à questão da gestão e da responsabilidade social, ou da irresponsabilidade social em curso nos nossos conselhos e da efetiva possibilidade da mudança desse cenário.
É sabido que o conselho da comunidade é um dos órgãos necessários para a boa execução penal.
Trata-se de um órgão previsto nos artigos 80 e 81 da Lei das Execuções Penais–LEP (Lei 7.210/84) composto, no mínimo, por um representante da associação comercial ou industrial, um advogado indicado pela Seção da Ordem dos Advogados do Brasil e um Assistente Social, indicado pela Delegacia Seccional do Conselho Nacional de Assistentes Sociais, sem prejuízo de outros vários representantes da sociedade organizada.
A determinação para a criação dos conselhos da comunidade remonta há muito tempo. Somente na LEP em vigor, vem desde 1984, ou seja, está aí há mais de trinta anos.
Quando se vê alguma comarca com excelência na execução das penas ou mesmo com uma boa qualidade desta, quase que invariavelmente tem-se que há naquela comarca e comunidade um conselho da comunidade atuante, sólido e perene.
O contrário também é verdadeiro e, quando não o é, vê-se que há um ou alguns poucos abnegados que trabalham pela causa, sem estarem inseridos em tal órgão, às vezes inseridos numa pastoral carcerária, numa APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados), num patronato (também órgão da execução penal, hoje quase inexistente) e, invariavelmente, num juiz vocacionado para a matéria ou com sensibilidade social suficiente para tal mister.
Desconheço a estatística oficial sobre o número de conselhos da comunidade existentes no país. Os números deveriam coincidir com o mesmo número de comarcas no país, ou seja, alguns milhares, segundo prevê a LEP. Acredito que se formos a fundo passaríamos vergonha ao conhecer os números reais, principalmente se o critério estatístico for o da efetividade.
Embora os juízes e juízos de execução esmerem-se para conseguir a instalação dos conselhos, estes, quando de fato instalados, revelam-se, em sua maioria, inoperantes ou quando começam a funcionar, motivados por determinado juiz ou por alguns poucos voluntários vocacionados, esvaem-se em pouco tempo no desânimo da causa, fadados à inoperância ou a mero registro formal.
O fato é que não adianta os juízes estimularem a formação de conselhos ou mesmo esforçarem-se para a reativação dos conselhos existentes, se a comunidade não quiser olhar a questão da execução da pena de verdade. A comunidade precisa enxergar mais e mais o que vem a ser a execução penal. Precisa querer compreender e entender o que é essa tal execução penal.
A execução da pena é a ponta final da justiça criminal. Quem quiser viver em paz, ainda que guarde algum preconceito com aquele que feriu a lei e vai ser punido pelo Estado, tem, necessariamente, que saber que o crime não acaba com a sentença condenatória do juiz. Vai além, vai até mesmo depois da pena, vai até o estigma que carrega o egresso do sistema prisional.
Ainda que a pena aplicada seja em meio aberto, ou seja, sem o encarceramento prisional tradicional, há que se entender que quem tem dívida com a justiça, somente a quita, se cumprir a pena, ainda que em meio aberto. Essa é a lei.
Mesmo que o cidadão não tenha particular interesse em saber como a pena está sendo cumprida e ache que isso seja responsabilidade da justiça, do ministério público, do defensor ou do poder executivo que acautela o preso, provavelmente, vai querer saber que a execução da pena é da sua conta porque está convivendo diuturnamente com o cidadão que cumpre pena e, talvez, nem se dê conta disso. Como já dito popularmente, a resolução ou vem pela dor/amor ou pela razão. Você leitor é quem escolhe o caminho.
Isso mesmo, todos nós diariamente convivemos com quem cumpriu, cumpre ou vai cumprir pena. É da conta de todos saberem disso. Provavelmente, quem está lendo estas linhas, terá se encontrado, apenas num dia comum como hoje, com pelo menos uma dezena de condenados e ex-condenados. Isto mesmo você convive diariamente com dezenas de reeducandos, que digam isso os servidores das varas de execuções penais que relatam encontros diários com os apenados em todo tipo de lugar.
Se o leitor, por exemplo, hoje, frequentou um fórum criminal de qualquer comarca do país, a mais modesta que seja ou mesmo, compareceu a algum órgão público, aqueles que recebem apenados, certamente, entrou em contato, ainda que nos corredores ou nos balcões de atendimento, com presos em execução de pena, no mínimo em meio aberto ou no semiaberto (regime aberto, livramento condicional, prisão domiciliar, com ou sem monitoramento eletrônico, regime semiaberto com saída temporária ou prestador de serviços à comunidade ou prestador de prestação pecuniária).
Se hoje você comprou um sanduíche, consertou o seu carro, comprou algum objeto, recebeu alguma encomenda, realizou um serviço em casa, enfim, fez qualquer tarefa por mais banal que seja, precisou da atuação de um trabalhador ou de um serviço e, assim, necessariamente, interagiu com um apenado. São nos locais mais inusitados e que não exigem currículos elaborados é que estão as oportunidades dos apenados, isto quando estas surgem. Alguns destes trabalhadores, nos trabalhos mais diversos, podem estar em cumprimento de pena, tudo é uma questão de oportunidade ou mesmo de uma segunda chance. Se não sabia, fique sabendo agora.
Nosso sistema é progressivo, assim diz a Constituição e as leis pertinentes. Milhares presos cumprem pena no regime fechado, ou seja, trancados, mas, inexoravelmente, com o passar dos meses e anos, vão migrar para o semiaberto e, vão começar a sair. Esse processo é diário. Essa é a essência da reintegração social da execução penal.
Ao sair vão retornar para casa. E casa não é necessariamente a mesma moradia que vivia e cuja família já nem reside ali mais, na maioria das vezes. Casa é o locus onde o preso convivia com os seus entes queridos e amigos. Casa, no sentido da execução de pena, são as ruas da cidade, são os bairros, são os lugarejos das memórias e dos fatos vividos, por vezes, até a mesma casa-moradia, onde o fato-crime aconteceu.
A sociedade tem que ter esta clara noção. Essa é a realidade. O preso, mais cedo ou mais tarde, volta pra casa. Volta a conviver com a sociedade que lhe gestou. E, nessa volta, pode cruzar o caminho de nós todos, nossos pais, nossos filhos, nossos familiares, nossos amigos, nossos concidadãos. Com quem nós, sociedade, estamos plantando para encontrarmos amanhã? Quem nós imaginamos que vamos encontrar amanhã nas nossas casas-cidades?
Milhares de presos cumprem penas no regime semiaberto e tem as saídas temporárias, segundo a lei, de até de trinta e cinco dias por ano. Portanto, para a ressocialização, milhares saem para trabalhar ou mesmo para buscar trabalho nas nossas cidades. Também estes tem que comparecer perante as autoridades de cada comarca para se apresentarem nas saídas temporárias enquanto deslocam-se de cidade a cidade, quando cumprem pena em local diverso da residência.
Há, ainda, os presos em livramento condicional, que tecnicamente cumprem penas, sujeitas a algumas condições. Se, temos centenas de milhares presos condenados no país, certamente, temos algumas vezes mais, portanto, milhões de presos, em execução de pena em meio aberto, nas mais diversas situações já exemplificadas. O sistema progressivo prevê o retorno para a casa, essa é a realidade. Essa é a lei.
Há situações outras que fazem os presos circularem no nosso meio, todas com respaldo legal, como é o caso dos tratamentos médicos, da prisão domiciliar, do monitoramento eletrônico, dos salvo-condutos para velórios, resolução de problemas documentais, etc.
Não é demais lembrar a todos que o ciclo do crime somente acaba num tempo além do final da pena. Ledo engano quem pensa que, preso o indivíduo em flagrante, tudo esteja terminado. Tudo na realidade inicia ali. Desta forma, é sim, da conta de todos, a execução da pena, quer você concorde com isso ou não.
Se a esmagadora maioria dos cidadãos almeja viver numa cidade melhor, sob o aspecto da segurança e da não criminalidade, invariavelmente, tem que pensar com que tipo de concidadão vai cruzar pelas esquinas, praças, espaços públicos, fechados ou abertos. Com aquele que quer emendar-se, na busca da ressocialização ou com aquele outro, mais embrutecido, que pós doutorou-se na prática do crime de forma que nenhum jurista é capaz de imaginar ou naquele que fez um networking seletivo nas celas da vida? É a pergunta que não quer calar. A quem queremos encontrar ou vamos continuar a nos encontrar, querendo ou não, nas esquinas da vida?
E o conselho da comunidade? O que é que tem a ver com tudo isso? Tudo.
Conselho da comunidade é, e assim tem que ser um órgão que pensa grande, que saia da mesmice, que trabalha com início, meio e fim, que busca criar uma estrutura perene, factível, solidária para a real socialização dos concidadãos, que fiscaliza efetivamente a execução da pena, que visita os cárceres e todos os locais de cumprimento de pena, fechados ou abertos e, finalmente, que planeja e articula com o judiciário e a sociedade organizada uma sinérgica atuação estruturada e contínua.
A existência efetiva do conselho da comunidade é uma prova real e viva do que uma sociedade projeta para si no futuro em termos de segurança pública lato sensu. Se há conselho, proativo, efetivo, eficaz e perene, há futuro. Se não há conselho nesses moldes, sem chance, pois a sociedade não quer ter futuro, pelo menos no plano macro da segurança pública e da justiça criminal. A chave é o conselho da comunidade. É o órgão gestor e planificador
Caro cidadão, se apenas a repressão for a sua única bandeira, o conselho não é este o seu espaço. O espaço do conselho da comunidade é para quem tem olhar holístico para a vida em comunidade e para a execução da pena, como elo indissociável da segurança, da justiça e da paz social que todos almejam.
O espaço do conselho da comunidade é para quem sabe valorizar a participação e se preocupa em cuidar da perenidade e efetividade da vida na sociedade. É para quem tem zelo, é para quem se sente dono das ruas e praças da cidade, das matas, das estradas e das montanhas, de quem preza o planejamento, a gestão e a organização da vida social.
O conselho é o espaço de quem executa política social no seu mais alto grau de acepção, sem intenções político-partidárias e, está disposto, a trabalhar voluntariamente para a última das prioridades de qualquer ente organizado: a execução penal. A execução penal, que é o “patinho feio” das prioridades das políticas públicas sociais, precisa de você.
Passo a fazer um convite a você cidadão. Isto mesmo, você cidadão, que tem saudades de andar tranquilo na rua à noite ou mesmo de dia. Você tem esta saudade porque já sentiu esta sensação ou mesmo este sonho, porque não sabe o que é isso.
O “piano” da execução penal é pesado. Não é para os fracos. O “piano”, essa coisa grande, volumosa, pesada, de difícil pega, somente é pesado porque quase todos abdicaram de carregá-lo lá atrás, porque não enxergaram além. Não seja mais um daqueles que acha que isto é problema do governo, da justiça ou dos outros, menos seu. É problema nosso e do governo sim, mas é problema seu também. É problema de quem tem planos, sonhos e metas.
Nós que cuidamos da execução penal somos passageiros sim, porém, a insegurança, a desesperança e a sensação de impotência não podem instalar-se em definitivo no nosso meio. Corremos este risco. Achar que não tem jeito. Tem jeito sim.
Abre-se agora nova oportunidade de participação. Na realidade, ela sempre esteve aberta. Talvez você cidadão aposentado ou da ativa, simples trabalhador da vinha ou graduado na vida ou pela lida, não sabia desse canal de possibilidades e dessa interface da execução penal com o seu dia a dia.
Você que não tem medo de planejar, de participar e nem de pensar. Você que não se desanima, ainda que tudo diga para desanimar. Você que tem esperança viva. Participe do conselho da comunidade da execução penal da sua cidade, da sua comarca, ainda que não saiba tocar o “piano” da execução, mas sabe que a música da paz social é para todos.
O conselho não resolverá tudo não, todos sabem disso. Não há almoço grátis. No pain, no gain (sem dor, sem ganho). Há trabalho à vista, e árduo. Contudo, com planejamento, administração e gestão é possível realizar um trabalho em longo prazo, com olhos fulcrados na inexistência do gargalo de todo trabalho coletivo, os recursos.
Importante é que as portas estão abertas para os conselhos da comunidade no plano financeiro. Há a possibilidade de disporem dos recursos para os projetos estruturantes oriundos das prestações pecuniárias e das transações penais da Lei 9.099/95, disciplinados em Minas Gerais pelo Provimento Conjunto 27/2013 da CGJ do TJMG e pela Resolução 154 do CNJ. Esse é o caminho, basta seguir os regramentos para obterem tais recursos com planejamento e gestão.
Há outras frentes de batalha na busca da paz e da justiça sociais, mas, é um grande começo, pois se alguém cuida da última das prioridades, outros carregadores de “piano” surgirão para carregarem outras questões de complexa resolução também, como é o caso da questão ambiental, da saúde, da educação, da limpeza pública, do transporte, etc.
Venha participar você que tem esperança. Informe-se na sua cidade e comarca junto aos fóruns criminais. Não deixe que aqueles que militam na execução penal esmoreçam, junte-se a nós. Seja um indignado corajoso em busca da paz social. Temos que ser um pouco visionários.
Por fim, fica o apelo, àqueles que têm esperança, com a citação do lema que carrego e tento viver ao máximo na minha vida, pois, como diria Santo Agostinho de Hipona: “A esperança tem duas filhas lindas: - a indignação e a coragem; - a indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão e, - a coragem, a mudá-las”.