Gustavo Câmara Corte Real*

Encarceramento em massa precisa ser repensado no País

E m 1942 o criminologista britânico Hermann Mannheim predisse que “os dias do aprisionamento como método de tratamento em massa de infratores da lei acabaram”. Poucas décadas depois, o mundo pós-industrial observava, passivamente, um aumento exponencial de sua população carcerária. A experiência brasileira não foi diferente. O País vem gradativamente incorporando, em seu sistema penal, um ideal de abandono da política reabilitadora da pena, com forte retorno ao encarceramento em massa. O País passou a adotar, desde 2006, uma codificação em relação ao combate ao narcotráfico que contribuiu decisivamente para o aumento do número de presos (passamos de uma população carcerária de 361 mil, em 2005, para 841 mil, em 2018).

As estatísticas relativas a esse sistema mostram que as prisões brasileiras são ocupadas por um grupo particular e bem definido: homens (75%), jovens (74% até 34 anos), com características étnico- -raciais circunscritas (em sua grande maioria negros e pardos), baixíssima escolaridade (apenas 9% possuem o ensino médio completo; o ensino superior menos de 0,3%) e situação profissional precária (apenas 5,5% são segurados da previdência e fazem jus ao recebimento de auxílio reclusão). A partir desses elementos, conclui-se que a punição envolve, além do mero caráter dissuasivo e incapacitante, um verdadeiro diálogo através da personificação de símbolos e rituais aflitivos. Acaba- -se penalizando um objeto e não um sujeito. A punição é dirigida a um perfil e não a um indivíduo, em uma clara estrutura de objetivização.

Essa discussão vai muito além daquela entre o Direito Penal do Fato e do Autor. Quando se fala em Direito Penal do Fato, restringe-se a análise conclusiva sobre o processo aos fatos que foram narrados e, eventualmente, comprovados. Afasta-se a condição do sujeito nesse processo punitivo, garantindo-lhe, assim, um julgamento propriamente justo. Tenta se afastar, em especial, os antecedentes e a sua condição pessoal.

O Direito Penal do Objeto, por outro lado, compreende o estado penal como integrante de um sistema muito mais amplo de controle. Reinsere o aparato punitivo (cortes judiciais, polícia e prisão) na discussão sociológica, não meramente penal. A prisão não é compreendida somente como uma ferramenta de contenção, mas sim de controle. Como define Loïc Wacquant, de uma “marginalidade urbana avançada”, fruto de uma fragmentação simbólica do trabalho remunerado, de uma pulverização das relações de emprego, com ênfase na temporalidade e transitoriedade (em um crescente movimento de uberização da economia pós-industrial).

Com efeito, a própria prisão moderna foi concebida, em sua origem, como uma forma de conter “vagabundos” e “ociosos” (os marginais urbanos do séc. XVIII) como bem define David J. Rothman na clássica obra The Discovery of the Asylum. O objetivo não era reprimir a prática de crimes, mas sim lidar com uma crescente população de “inadequados sociais”, em especial os “sem trabalho”.

Em ambas as experiências (séc. XVIII ou XXI), tenta-se desesperadamente conter uma massa de indivíduos em estado de não conformidade com a ordem socioeconômica vigente. Ocorre que esse imaginário permanece até os dias atuais. A figura do “vagabundo” foi substituída pelo “traficante”, justamente o indivíduo com as características étnico-raciais já apontadas.

Deve-se, assim, repensar o papel da prisão enquanto principal método punitivo, afastando-se do ideal existente de que se trataria, unicamente, de uma forma de contenção de criminalidade, mas sim de um instrumento de incapacitação de um grupo específico, os marginais urbanos, excluídos de um processo produtivo cada vez mais exigente, restrito e fator de insegurança social. A defesa, portanto, é pela abordagem de um Direito Penal do Sujeito e não meramente objetivador.

(*) Juiz Auxiliar da Comarca de Vespasiano (Grande BH). Mestre em Direito Comparado pela Cumberland School of Law, Samford University, EUA