O relatório Justiça em Números 2014, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), fornece farto material para a reflexão cuja urgência tenho tentado demonstrar. O sistema de Justiça necessita de maior atenção da sociedade brasileira. O fato de termos mais faculdades de Direito do que a soma de todas as outras existentes no restante do planeta não nos converteu na República mais justa sobre a face da Terra. Mas produziu quase 100 milhões de processos, numa judicialização da vida inexistente em qualquer outra nação.
São Paulo, espaço privilegiado para toda espécie de pesquisa, pois concentra expressões de primitivismo, de medievo, de modernidade e de pós-modernidade, é eloquente em seus dados. O Tribunal de Justiça (TJSP) recebeu orçamento de R$ 7.658.857.221, ou 0,49% do PIB, num decréscimo de 1,4% em relação a 2012. Tais recursos se destinam ao custeio de pessoal, numa redução de 4,2% no cotejo com 2012. O total de servidores é de 65.937, considerados os efetivos, os cedidos, requisitados, terceirizados e estagiários.
Servem diretamente a 441 magistrados de segundo grau e a 1.944 de primeiro grau, responsáveis por 21.030.402 processos em curso. A taxa de congestionamento é de 82,4%. Mas as execuções fiscais têm uma taxa de congestionamento de 91%. E todos sabem que cobrar dívidas da União, do Estado e do município não deveria ser atribuição do Poder Judiciário. Este carrega o fardo de receber milhões de certidões de dívida ativa, grande parte oriunda de cadastros mal elaborados, e não consegue fazer o Parlamento enxergar a situação e liberar a Justiça desse encargo que só impede a celeridade na solução dos conflitos.
A Justiça Estadual, a mais prejudicada, representa 69,2% de todo o Judiciário brasileiro. Concentra 55% das despesas e 78% dos processos. Mas está sobrecarregada também por suprir competência da Justiça Federal. Se o TRF da 3.ª Região é o maior do Brasil, o segundo tribunal federal em números é o TJSP, em razão dos processos federais - execuções fiscais e previdenciários - que julga como se Justiça Federal fora. Sem compensação, sem entrar na partilha dos recursos que a União reserva à sua Justiça.
Compreende-se que o governo tenha de atender a outras necessidades e que o orçamento ideal precisa curvar-se à reserva do possível. Mas a situação paulista é emblemática. A população clama por mais comarcas e mais juízes. Estes reivindicam mais servidores. Mas enquanto o orçamento geral do Estado cresceu 97% nos últimos sete anos, o orçamento destinado ao Judiciário cresceu apenas 54%. Inicia-se o ano com déficit e até obrigações que tiveram a participação dos dois outros Poderes restam sem condição de atendimento. É o caso da gratificação cartorária e do adicional de qualificação, benefícios criados no final de 2013 mediante projetos de lei que foram aprovados pela Assembleia Legislativa e promulgados pelo Executivo, sem a devida provisão de recursos orçamentários.
O caminho é a informatização. Esta caminha a passos largos, já atingiu toda a segunda instância, mas na primeira esbarra na lentidão da Segurança Pública. O inquérito policial ainda é elaborado em papel. As varas criminais e as cumulativas, que recebem processos tanto cíveis como penais, não podem ser informatizadas inteiramente. O trabalho híbrido é dificultoso e cria embaraços ao público interno - servidores e juízes - e também ao público externo - os demais profissionais da área jurídica.
Outra possibilidade ou alternativa relevante é uma gestão mais inteligente. O universo da Justiça permaneceu autista e desvinculado das conquistas da tecnologia - bem aproveitadas, aliás, por outros setores. A tramitação das ações judiciais ainda é submetida a procedimentalismos estéreis, a uma burocracia invencível e a uma nítida resistência a abdicar de ortodoxias que impedem o Judiciário de acertar o passo com a contemporaneidade.
O CNJ deveria propiciar estímulo para que boas práticas sejam disseminadas, oferecer modelos de gestão já validados pela experiência, fortalecer a criatividade e monitorar projetos-piloto destinados a implementar a fruição do direito à razoável duração do processo. Espera-se que essa gestão direcione o colegiado a se tornar um verdadeiro Ministério do Planejamento do Judiciário, mais do que feitor das iniciativas locais. Na prática, os tribunais tiveram de improvisar razoáveis estruturas para responder aos ofícios e requisições do CNJ, com isso dificultando o atendimento às prioridades e metas estabelecidas por esse mesmo conselho.
O Supremo Tribunal Federal poderia contribuir para desafogar as Cortes locais se encarasse a missão de indicar à Nação o que vale e o que não vale na legislação presumivelmente vigente. As repercussões gerais represam nos tribunais centenas de milhares de processos. O clamor é geral e a parte não entende por que uma ação iniciada tantos anos atrás não chega ao término.
O Parlamento poderia ao menos racionalizar o quadro caótico de uma Justiça de quatro instâncias e mais de 80 possibilidades de reapreciação do mesmo tema, num labirinto recursal que alegra quem não tem razão e, portanto, não quer que o processo acabe.
E a sociedade nacional, diante dessa melancólica situação, poderia conscientizar-se de que litigar não é a solução. Talvez seja mais nefasto do que transigir em parte e chegar a um acordo. Assumir a pacificação como meta, protagonizar o encaminhamento de seus problemas por meio do diálogo, da discussão e da argumentação e deixar a sofisticação Judiciária para uma complexidade que nem sempre está no volume patológico de ações em curso por todos os tribunais e instâncias brasileiras.
Sem essa conjugação de vontades o que se avizinha para o Brasil em termos de Justiça convencional é algo que pode assustar mais que reacender a esperança em dias melhores.
* José Renato Nalini é presidente do TJSP
Fonte: Estadão