* Desembargador Doorgal Borges de Andrada
Nos países civilizados, ocidentais-cristãos, a prisão decorrente de uma condenação criminal — que não se confunde com a cautelar (flagrante, temporária, preventiva) — somente é possível depois de esgotada a ampla defesa e o contraditório. Portanto, após o trânsito em julgado da decisão. Não se trata de modernidade do direito, mas resultado da luta da humanidade, através dos séculos, contra injustiças e sofrimentos.
Nossa Constituição descreve dentre as cláusulas pétreas, como garantias e direitos fundamentais, o inciso LVII do artigo 5º: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, equiparando-a ao patamar do direito à ampla defesa, contraditório, à inviolabilidade da vida privada, entre outras.
Antes de 1988, não existia o Superior Tribunal de Justiça, e, das decisões de 2º grau, os eventuais recursos iam direto para o Supremo Tribunal Federal. A Constituição de 1988 inovou e criou o STJ como 3ª instância, colocando o STF como uma 4ª instância, diferentemente da maioria dos países ocidentais que adotam apenas duas instâncias.
Prova dessa distorção está na comparação do STF, que julga aproximadamente 100 mil processos/ano, com o dos Estados Unidos, que julga apenas 100, muito embora eles tenham quase o dobro da população. Esse excesso de julgados no STF (100 mil) e no STJ (400 mil) deriva dessa opção recursal com 3ª e 4ª instâncias. Se nos outros países, temos a decretação da prisão logo após a decisão do 2ª grau é porque não possuem a 3ª e a 4ª instâncias.
Temos exemplos: Alemanha: Vigora o modelo federativo. Existe, como na maioria dos países europeus, a separação entre justiça comum e a administrativa, e, em cada estado-membro, a 2ª instância é praticada pelos Tribunais Estaduais Superiores (Tribunal Regional Superior), como uma instância final para a grande maioria dos processos.
Portugal: Os processos criminais, após julgados em 1ª instância, podem ser revistos nos Tribunais da Relação (5 tribunais). Os recursos para o Supremo Tribunal de Justiça são exceções, que não aprecia matéria de fato, e, em determinados casos, nem mesmo matéria de direito. É na 2ª instância (Tribunal da Relação) que os julgamentos transitam em julgado.
Estados Unidos: A Justiça Estadual norte-americana não é uniforme como no Brasil, pois cada um de seus 50 estados regulamenta sua estrutura jurídica e processual com forte autonomia federativa. Via de regra, os estados têm um Tribunal de Apelação (Court of Appeals), onde o processo é decidido em último grau.
França: A 2ª instância criminal é formada pelos Tribunais de Apelação. Acima deles, existe a Corte de Cassação (Court de Cassation) que não reexamina o mérito da matéria, mas apenas determina que outro Tribunal de Apelação julgue novamente a apelação. Na 2ª instância, portanto, ocorre o trânsito em julgado na quase totalidade.
Entre nós, melhor seria se tivessem alterado a legislação penal-processual de modo a limitar, reduzir ou impedir recursos aos Tribunais Superiores, tal como fez a Lei 9.099/95, que criou a Turma Recursal como instância última-única (2º grau), ao invés de se dar uma interpretação a permitir que o réu seja preso antes de estar condenado.
Essa garantia do réu está na Declaração Universal Direitos Humanos, no Pacto de São José da Costa Rica e na Constituição Federal, e até mesmo na lei ordinária: “artigo 283 do CPP – Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva” (Redação dada para a Lei 12.403/11).
No passado distante, o povo ia para as ruas aplaudir as crueldades penais praticadas pelo poder estatal, dentre outros exemplos citamos dois: o martírio de Jesus Cristo e o enforcamento de Tiradentes, sem falar das práticas da Inquisição. E, depois, o nazismo e comunismo. No Brasil do século XX, tivemos ainda prisões sem motivação e/ou sem defesa, na ditadura de Getúlio Vargas e na vigência do AI-5 no governo militar.
Ora, o direito penal não pode ser instrumento a socorrer a vontade dos gritos nos bares, das ruas e/ou suas fantasias, nem resultado da pressão da mídia, ou, do eventual desejo intolerante da maioria, nem fruto da demagogia jurídica ou de decisões casuísticas em busca de aplausos ou de manchetes de jornais.
Ao contrário, a justiça penal e a processual são a garantia do cidadão sempre apequenado diante do poder estatal, das forças econômicas e da mídia, porque, no estado democrático de direito, as decisões não podem acolher imposições/desejos antijurídicos, ilegais, desconsiderando a ampla defesa e o contraditório. O Direito é uma ciência, e o juiz, um profissional que trabalha com a técnica jurídica, compromissado com a Constituição e o Direito.
Lembramos que foi necessária uma sangrenta Revolução (francesa de 1789) para que o direito à liberdade do inocente, a ampla defesa e contraditório fossem respeitados. E, nas democracias, as inovações e transformações jurídicas/legais são feitas pelos representantes do povo — o Parlamento. O Judiciário, como poder-técnico, garantirá a segurança jurídica e a estabilidade social-legal, como define a Constituição e o direito.
Vivenciamos a ‘judicialização da política’ — de modo pouco elogiável. Não devemos, agora, estar a protagonizar a ‘politização da justiça ou dos julgamentos’ (e/ou, o trabalho do Ministério Público), a causar ampla desconfiança e descrença nas instituições.
Nenhuma decisão pode ferir direitos e garantias fundamentais nem o senso de justiça, sob o argumento de se fortalecer a efetividade da lei. Assim, a prisão de quem ainda se defende (recorrendo), sem uma condenação definitiva, é ilegítima. “O direito penal do cidadão exige que se olhe o direito processual penal como o direito por excelência dos inocentes” (O Direito Penal do Cidadão /in: O Direito Penal do Inimigo e o Terrorismo, p. 49, Manuel Valente - Ed. Almedina - Portugal).
* Desembargador Doorgal Andrada (TJMG) e ex-presidente da Amagis
(Artigo publicado no site Consultor Jurídico)