Frederico Mendes Júnior
Presidente da AMB

Neste cenário em que as relações humanas se encontram cada vez mais mediadas por tecnologias da comunicação, a desinformação converte-se em instrumento eficaz de ataque ao Estado Democrático de Direito: descontextualizam-se números, manipulam-se percepções e omitem-se os reais desafios enfrentados pelo poder público.

No caso do Judiciário, tornou-se comum a repetição de um discurso calcado na mistificação de que juízes são privilegiados e a Justiça não funciona, que interessa tão somente a quem teme uma prestação jurisdicional autônoma e apta a proteger os direitos dos cidadãos ao mesmo tempo em que pune as transgressões.

Tal retórica da ineficiência ignora os gargalos estruturais que retardam o andamento das ações: a quantidade limitada de servidores, as precárias condições de trabalho, os sucessivos recursos previstos em lei e as tentativas frequentes de manipulação de prazos para adiar o cumprimento de sentenças.

A verdade é que o Brasil tem um dos Judiciários mais demandados do mundo. Apenas em 2024, até novembro, de acordo com dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), 35,6 milhões de novas ações haviam sido protocoladas. Já o total de processos julgados nesse período chegou a 40,8 milhões - o que demonstra, cabalmente, que os juízes dão conta da crescente procura e ainda resolvem mais causas do que recebem, com a consequente diminuição do estoque acumulado.

Para se ter uma ideia do quadro, conforme o relatório Justiça em Números 2024, também do CNJ, a produtividade dos juízes cresceu 6,9% em 2023. Cada magistrado julgou, em média, 8,2 processos por dia, culminando em um crescimento de 30% da produtividade nos últimos três anos. 

Todos esses avanços ocorreram apesar da conjuntura adversa, como evidenciou a pesquisa Perfil da Magistratura Latinoamericana - produzida pelo CPJ da AMB (Centro de Pesquisas Judiciais da Associação dos Magistrados Brasileiros), em parceria com a FLAM (Federação Latinoamericana de Magistrados) e o Ipespe (Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas). 

O estudo destacou um dado alarmante: 50% dos magistrados do país já sofreram ameaças à vida ou à integridade física. As conclusões indicam a suscetibilidade da magistratura a represálias, especialmente no caso de juízes que atuam no combate ao crime organizado, em processos de corrupção e em causas de grande impacto social. 

E o risco não é só estatístico, porquanto se traduz em realidades concretas: juízes coagidos precisam alterar rotinas, viver sob escolta policial e restringir sua liberdade pessoal para continuar exercendo a função. 

Os efeitos da atividade jurisdicional também se refletem na saúde dos magistrados. A mesma pesquisa revelou que, para 77% dos juízes, o estresse hoje é maior do que no início da carreira —e 51% já precisaram de tratamento médico ou psicológico devido às pressões do cargo. 

O cotidiano de homens e mulheres que julgam milhares de processos todos os anos não se limita a decidir com base nas leis, pois envolve uma carga emocional intensa, atravessada pelas vivências das partes, que esperam a melhor resolução de seus conflitos.

A necessidade de equilibrar o rigor técnico com a responsabilidade de afetar diretamente a vida de muitas pessoas gera um ônus que, somado às ameaças e à exposição pública, tem provocado altos índices de esgotamento mental.

Semelhantes aspectos são esquecidos no debate público. Em vez de se discutir o aperfeiçoamento dos serviços oferecidos pelo Sistema de Justiça, opta-se por resumi-los a cifras descontextualizadas, exploradas de modo a ensejar a falsa impressão de que há excessos.

Os ataques fazem parte de um movimento de descredibilização do Judiciário, que reduz juízes a meros burocratas, em uma estratégia destinada a minar a confiança da sociedade na Justiça - e, assim, facilitar a vida daqueles que violam as leis. 

O que está em jogo não é simplesmente a percepção pública sobre a magistratura, mas a solidez de um dos pilares fundamentais do Estado Democrático de Direito. Afinal, precisamos de um Judiciário independente, produtivo e imune a interferências externas - e, sobretudo, de juízes que atuem sem medo de retaliações.

O Brasil possui um Judiciário que se empenha ininterruptamente para responder à demanda social - e que exerce um papel central na salvaguarda de direitos. Fortalecer a magistratura é fortalecer a cidadania. A narrativa que transforma juízes em vilões só é conveniente para quem pretende se beneficiar de um Judiciário incapaz de distribuir justiça.

Artigo publicado nesta sexta-feira, 28/2, no UOL.