Magistrados, membros do Ministério Público, policiais e auditores fiscais estão unidos em torno de uma pauta comum.

As associações de classe dessas categorias ajuizaram ações no STF (Supremo Tribunal Federal) nas quais questionam pontos da nova lei de abuso de autoridade que consideram inconstitucionais.

Foram protocoladas seis ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) por sete sindicatos, apontando supostos problemas em 20 artigos da nova lei, que entra em vigor em 3 de janeiro de 2020 e especifica condutas que devem ser consideradas abuso de autoridade, além de prever punições.

ministro Celso de Mello, relator dessas ações, rejeitou duas delas, por considerar que a Anafisco (Associação Nacional dos Auditores Fiscais de Tributos dos Municípios e Distrito Federal) e a Anfip (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal) não têm legitimidade para ajuizar esse tipo de processo. Os outros quatro questionamentos tramitam na corte.

Nas ADIs que estão sob análise de Celso de Mello, as associações reconhecem a importância da nova lei, mas dizem que alguns artigos trazem problemas que afetam a atuação de agentes públicos no combate ao crime.

 

A ação das associações de membros do Ministério Público, por exemplo, diz que a nova norma criminalizou "diversos comportamentos relacionados ao exercício da atividade-fim de órgãos públicos”. “Alguns, inclusive, com funções constitucionais de soberania, contexto no qual o Ministério Público foi gravemente atingido”, afirma.

O artigo 43 da nova lei de abuso de autoridade é o único a ser contestado em todas as ações que entraram no STF. Ele torna crime a violação das prerrogativas dos advogados, com pena que varia de três meses a quatro anos de prisão.

Prerrogativas são direitos específicos para uma profissão. Um exemplo de prerrogativa do advogado é a garantia do sigilo de sua conversa com o cliente ou com outro advogado ao tratar da defesa.

Já havia previsão de punição para a violação das prerrogativas dos advogados, mas ela se dava de forma administrativa.

O presidente da Ajufe (Associação de Juízes do Brasil), Fernando Mendes, diz que criminalizar uma conduta como essa causa distorção. “Esse dispositivo torna o advogado um profissional com poderes que nenhum outro tem. É uma distorção”, diz Mendes. 

“O juiz já pode ser punido de forma administrativa, por meio do CNJ [Conselho Nacional de Justiça]. Se você transforma em crime, dá ao advogado uma proteção exclusiva, o que é um absurdo”, acrescenta.

A delegada federal Tânia Prado, diretora regional da ADPF (Associação dos Delegados da Polícia Federal), diz que o dispositivo transformou em crime algo que já era punível disciplinarmente na polícia. Para ela, a nova lei provoca um efeito nocivo em investigadores.

“A lei de abuso de autoridade promove uma inversão de valores, porque intimida os que enfrentam criminosos, sobretudo aqueles que estão na linha de frente”, diz Prado.

“A ADPF ajuizou a ação para que seja declarada a inconstitucionalidade de alguns dispositivos da lei que afetam diretamente a atividade dos delegados e da própria polícia judiciária.”

Outros pontos atacados pela Ajufe são o artigo 9 da nova lei, que torna crime decretar prisão “em manifesta desconformidade com as hipóteses legais”, e o artigo 36, que torna crime “decretar a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte”.

Ambos preveem detenção de um a quatro anos e pagamento de multa.

“O artigo 9 está muito aberto e subjetivo”, diz Fernando Mendes. “Há critérios claros para a prisão preventiva ou cautelar, como a existência de risco à ordem pública e econômica. Agora, se o juiz considerar que há risco à ordem econômica e depois sua decisão for reformada, ele poderá ter que responder em ação penal. Isso vai criminalizar a atividade judicial de decidir”, analisa o presidente da Ajufe.

Aprovada pelo Congresso em setembro, a nova lei tramitou com rapidez após a divulgação pelo site The Intercept Brasil de conversas por mensagem entre integrantes da Lava Jato.

Os diálogos indicaram, por exemplo, que o então juiz do caso, Sergio Moro, orientou a Procuradoria a juntar documentos e indicou provas contra réus, além de determinar a ordem das fases da investigação. Procuradores requisitaram documentos sigilosos da Receita sem ordem judicial.

Houve forte reação contra a lei por parte de associações de magistrados, membros do Ministério Público e policiais. O próprio Moro, hoje ministro da Justiça, se opôs à nova legislação, classificada como um ataque ao combate à corrupção.

Essas entidades de classe foram até o presidente Jair Bolsonaro pedir que ele derrubasse artigos da nova lei. O presidente vetou 19 artigos, sendo 14 integralmente e cinco de forma parcial. Os artigos 9, 36 e 43 estavam entre os rejeitados por ele.

Durante a análise dos vetos presidenciais pelo Congresso, a Lava Jato avançou em direção a dois parlamentares.

Policiais federais fizeram uma operação de busca e apreensão dentro do Parlamento. O alvo era o senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), líder do governo Bolsonaro no Senado, e seu filho, o deputado federal Fernando Coelho Filho (DEM-PE).

A medida, autorizada pelo ministro Luís Roberto Barroso, do STF, gerou intenso debate político.

A aprovação da lei e a derrubada de vetos do presidente Bolsonaro foram vistas como um recado para a Lava Jato. As entidades, então, recorreram à Justiça.

A Ajufe contratou o escritório de Grace Mendonça, que de 2016 a 2018 foi advogada-geral da União, no governo de Michel Temer (MDB). A entidade também encomendou parecer do ex-ministro do STF Ayres Britto (2003-2012) para reforçar suas teses.

O ex-procurador-geral da República Aristides Junqueira (1989-1995) está defendendo os interesses de três associações de membros do Ministério Público. 

Fonte: Folha de S. Paulo