Mas não seria Salvador Dalí, o gênio a receber tal incumbência, a não deixar, no resultado final, também a sua marca. A boa notícia é que os desenhos do artista espanhol, que em sua trajetória também retratou outras obras da literatura (de André Breton ou Miguel de Cervantes, por exemplo), chegam esta semana aos olhos dos belo-horizontinos.
“Dalí – A Divina Comédia” – que estreou em julho de 2012 no Rio de Janeiro, passando posteriormente por Curitiba, Recife, São Paulo e Salvador – será aberta no próximo dia 18, na Academia Mineira de Letras, onde permanece até o dia 17 de agosto, com entrada franca.
Oriundo de uma coleção privada da Espanha, o acervo chega à capital mineira com o desafio de conduzir o público “a uma viagem a partir desse diálogo enriquecedor entre literatura e artes visuais”.
A proposta visual da exposição respeita a estrutura sequencial dos cantos do poema sagrado de Dante. Assim, a primeira sala é dedicada ao Inferno, com 34 imagens; um segundo espaço corresponde ao Purgatório, e o terceiro ao Paraíso, com 33 quadros cada.
Curadora da mostra, Annia Rodriguez lembra que a coleção nunca havia sido emprestada. A iniciativa de agora, acrescenta, é fruto de um trabalho de confiança mútua. “E para a gente, tem sido um grande prazer levar essa mostra não só aos circuitos mais tradicionais (referindo-se ao eixo Rio-São Paulo), mas também a praças como Salvador e Recife”, cidades, que pontua ela, tradicionalmente costumam ficar um pouco mais relegadas a segundo plano no cronograma das exposições internacionais que aportam no Brasil.
Artista não se subordina ao texto escrito por Alighieri
Annia Rodriguez, a curadora da mostra “Dalí – A Divina Comédia”, ressalta o fato de, apesar de as gravuras que aterrissam agora na cidade terem sido frutos de uma encomenda para a já citada edição comemorativa – “e apesar de ser também um exercício de ilustração” – é possível encontrar, nos traços espalhados pelos 100 desenhos, traços da personalidade de Salvador Dalí refletidos no conjunto.
“Ou seja, o artista não se subordina ao texto escrito. Nesta coleção também aparece o, digamos assim, ‘Dalí típico’, e, ainda, o posterior do manifesto mítico nuclear. Em síntese, diferentes momentos de sua vida como pintor e artista estão recolhidas nesta coleção. O público vai se encontrar com a obra de Dante Alighieri e também com a de Salvador Dalí”, enfatiza.
Annia acredita ser uma “feliz coincidência” o fato de o Brasil estar concomitantemente abrigando outra mostra dedicada a Salvador Dalí – no caso, a maior já dedicada ao pintor catalão por estas plagas.
A exposição em questão traz pinturas, desenhos, gravuras, fotografias e documentos do pintor surrealista, e está em curso no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) Rio de Janeiro (leia mais na retranca, abaixo). “Quem tiver a oportunidade de conferir às duas iniciativas, poderá confrontar duas versões do Dalí. No caso da exposição que chega a Belo Horizonte, o público confere ao Dalí ilustrador, mas que se faz presente na versão de uma obra literária. É um recorte”, explica.
No caso da mostra em cartaz até setembro na capital fluminense, prossegue ela, “é um recorte curatorial distinto”. São 150 obras do artista. Só desenhos, são 80, além de 29 pinturas. “No caso da mostra referente à obra de Dante, não é que o público vá se deparar com um Dalí totalmente diferente (do esperado), ou que não vá reconhecer o Dalí. Vai, sim, encontrar a iconografia surrealista, na qual Dalí coloca sua marca, em características como o corpo mole. Há mesmo, ali, uma amostra de seu fazer artístico, desde o inferno até um lado mais místico, e menos conhecido do público, que são as obras concentradas na parte do Paraíso”.
“Dalí – A Divina Comédia” – Abertura dia 17/7, para convidados. Abertura para o público: dia 18. Visitação: quarta a domingo, de 9 às 19h, na Academia Mineira de Letras (Rua da Bahia, 1466). Entrada gratuita. Classificação: livre. Mais informações: 3222-5764
A mostra em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro (Rua Primeiro de Março, 66, Centro – site: ccbbrio@bb.com.br) segue, em outubro, para o Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo. Na verdade, trata-se da exposição que se tornou fenômeno na capital francesa, há quase dois anos, quando aportou no Centre Georges Pompidou – o Beaubourg. Lá, atraiu mais de 800 mil pessoas e se desdobrou em lembrancinhas como o rinoceronte de pano que fez sucesso na lojinha do museu.
Mas o que faz de Salvador Dalí – recentemente vivido nas telas do cinema por Adrien Brody, no filme “Meia-Noite em Paris”, de Woody Allen – foco de tanto interesse?“Sua obra é uma provocação, fala de magia e mistério”, diz Montse Aguer, uma das curadoras da mostra na cidade maravilhosa, orçada em R$ 9 milhões. “São maneiras distintas de olhar para a realidade, o desejo insatisfeito do homem diante de uma beleza convulsiva”, completa ela.
Um dos raros artistas de sua geração a conquistar fama e fortuna em vida, Dalí usou quase todo o dinheiro que ganhava com presentes extravagantes para a mulher, que aparece em algumas telas da exposição brasileira.
Mas Gala é uma presença mesmo nos quadros em que não é retratada. Num dos trabalhos mais fortes da exposição, Salvador Dalí pinta uma cama vazia, com os contornos deixados por um corpo e um formigueiro em seu lugar.
É um quadro em que ele primeiro retratou a paisagem marítima de Cadaqués, nos anos 1920, e depois, no fim da década seguinte, criou outra camada, acrescentando a cama e uma cadeira vazia no estilo surrealista que o consagraria.