Controversa alteração no Código Penal brasileiro dá o direito aos autores de crimes de pequeno e médio poder ofensivo a possibilidade de responderem em liberdade e, de acordo com desembargador e juiz mineiro, fazer valer a Constituição Federal

No próximo dia 05 de julho entra em vigor no país uma das mudanças mais polêmicas do Código do Processo Penal brasileiro. Pelo menos 100 mil indivíduos presos provisoriamente em presídios de todos os estados poderão pedir a revisão da prisão preventiva por conta da nova legislação que cria uma série de medidas cautelares. A novidade inclui, por exemplo, determinar que o suspeito apanhado com uma pistola 9mm não deixe a cidade. O problema é quem vai vigiar o cumprimento da norma muito eficaz na Europa, mas distante de nossa realidade.

As restrições deverão ser colocadas em prática antes de se decidir pela manutenção do encarceramento. A novidade vale para todos os crimes cuja pena não seja superior a quatro anos. Para representantes do Ministério Público que militam na área criminal, hoje existe a tendência da Magistratura brasileira aplicar somente pena mínima, o que permitirá, a partir das mudanças, que suspeitos de roubo que tenham invadido casas armados, criminosos apanhados em flagrante com fuzis, ou mesmo homicidas comuns, fiquem livres até o fim do processo.

Defensor da medida, o desembargador mineiro Herbert Carneiro afirma que a mudança trará benefícios a milhares de presos cujos processos se arrastam por anos. Juiz há três décadas e desembargador há dois anos, Carneiro é uma das referências em todo o país no assunto. Em entrevista à Vox Objetiva, o desembargador reconhece que a nova lei 12.403 deverá ser acompanhada de uma Justiça mais rápida e mais transparente.

VOX: Essa modificação no Código Penal foi determinada por quem? Ela foi discutida com a sociedade?
CARNEIRO: É uma mudança do Código de Processo Penal que altera o título das prisões de liberdade provisória. A medida foi objeto de muita discussão. Ela é originária do Império, do projeto de lei 4.208, que já estava tramitando em longa data. Eu mesmo tive a oportunidade de participar de alguns debates. Naturalmente ela teve uma tramitação mais demorada no Congresso Nacional.

O Supremo Tribunal Federal participou dessa discussão?
Ao que me consta, não. Eu tenho ciência de algumas audiências públicas feitas, discussões no âmbito acadêmico e espaços jurídicos, mas não tenho notícia do envolvimento do STF na discussão dessa matéria.

As mudanças acabam com a prisão preventiva?
Não, isso é um equívoco. As prisões preventivas estão preservadas até com mais uma hipótese no caso de descumprimento das medidas cautelares impostas. O que alterou é que você não pode mais impor prisão preventiva para aqueles crimes cuja pena máxima não seja superior a quatro anos. São os crimes chamados de pequeno e médio potencial ofensivo. Crimes que muitas vezes você faz uma transação penal ou se sujeita a uma suspensão do processo no juizado especial. Ou crimes entre dois e quatro anos de prisão que o juiz, ao aplicar a pena, a substitui por uma restritiva de direito, uma prestação de serviços à comunidade, uma prestação peculiária, se o cidadão atender aos pré-requisitos do artigo 44 do Código Penal. Hoje, muitos dos autores desses crimes se sujeitam à pena privativa de liberdade. Às vezes, cumpre um tempo considerável de privação de liberdade, e o juiz, ao final da sentença, substitui a pena privativa de liberdade por uma restritiva de direito. Além disso, outro fator que possibilitou a não aplicação da prisão preventiva é o número exagerado de presos provisórios que o Brasil tem hoje. São quase 100 mil, segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça. Alguns deles com condição de, ao final do processo, ter a pena substituída. Não quer dizer que não se imponha nada ao cidadão que se vê obrigado a responder um processo por crimes de médio e pequeno potencial ofensivo. Não! Foi criado no título dez as chamadas medidas cautelares. Uma delas eu citaria, por exemplo, a possibilidade do cidadão ficar sob o compromisso de comparecimento perante ao juiz assim que intimado. Se não comparecer, o juiz pode converter essa medida cautelar em pena privativa de liberdade até que ele chegue ao final do processo. A possibilidade do cidadão ficar sob prisão domiciliar monitorado eletronicamente é outra medida cautelar prevista na lei.

Com essas alterações, o flagrante deixa de existir?
Não. O flagrante está previsto na legislação e na forma do artigo 310. O juiz terá que examiná-lo sobre a sua regularidade e sendo regular ele terá que relaxar a prisão. O que diferencia é que podendo, o juiz converterá o flagrante em prisão preventiva.

Nós temos a impressão que quanto mais a justiça dá benefícios, quanto mais se coloca presos no semi-aberto ou outra forma de acompanhamento, mais os índices de criminalidade aumentam. Há alguma relação?
Os benefícios têm fundamento na Constituição Federal. Eu diria na própria questão da ressocialização e do reconhecimento da dignidade da pessoa humana. Uma coisa que o cidadão preso não deixa de ter. O sistema das nossas leis penais no que diz respeito ao sistema punitivo é o sistema progressivo de pena com contemplação meritória de condição ao cidadão de passar do regime fechado para o regime semi-aberto. Precisamos melhorar a qualidade do nosso sistema punitivo. Nós não podemos ter cadeias superlotadas, sem a mínima condição de humanização e de condição de ressocialização dos cidadãos. E mais do que isso, precisamos de uma estrutura fiscalizatória competente. Não adianta eu conceder ao cidadão a possibilidade de um trabalho externo ou de uma saída temporária e não fiscalizar. Ele sai e, naturalmente, se não existir alguém que o fiscalize, ele simplesmente não volta.

Há promotores da área criminal que afirmam que essa mudança no Código do Processo Penal vá não só levar a um sentimento de impunidade, mas impunidade a criminosos que cometem até homicídio, por exemplo.
Eu ouso discordar dos promotores nesse aspecto, porque para mim o que moveu o legislador na alteração na legislação do processo penal foi exatamente para os crimes de médio e pequeno potencial ofensivo. Especialmente os de médio potencial ofensivo entre dois e quatro anos de pena, o que não é o caso, definitivamente, do homicídio. Para esses casos, havendo a necessidade, desde que o juiz faça de maneira fundamentada, ele pode, sim, decretar preventivamente a prisão do cidadão que responde ao processo criminal. A preocupação fundamental, na minha modesta visão, foi retirar a possibilidade de prender-se preventivamente grande parte dos cidadãos que se encontram presos preventivamente sob a alegação mais usada, de violação da ordem pública porque, por exemplo o cidadão cometeu o crime por mais de uma vez ou cometeu com algum grau de violência ou ameaça. Acredito que a 12.403 vai possibilitar, no primeiro momento, que a prisão deixe de ser regra no Brasil, que tem sido lamentavelmente, para passar a ser regra a liberdade.

Se uma pessoa for pega em flagrante e todas as provas para uma futura condenação estarem anexas ao processo. Neste caso, a prisão preventiva não se aplica?
Pode se aplicar. Por exemplo: se o juiz vislumbrar que o cidadão irá fugir a instrução criminal, que irá ameaçar uma testemunha, não irá comparecer para responder ao processo, ele poderá continuar a determinar a preventiva desde que encontre dados e fatos concretos que a justifiquem.

Pela nova lei, temos a possibilidade de que presos sejam beneficiados com a soltura. Isso não é um processo perigoso? A sociedade vai entender isso?
Nas situações de crimes de médio potencial ofensivo, não é justo o cidadão receber uma pena de dois anos e seis meses com uma restritiva de direito, com uma prestação de serviços à comunidade, e ficar na cadeia um ano aguardando essa sentença. Exemplo, o cidadão esta respondendo por um furto, mesmo feito em flagrante. Reconhecendo o juiz que não há motivos para prendê-lo reventivamente, ele vai substituir a pena privativa de liberdade por uma medida cautelar. O cidadão vai para a casa, às vezes até monitorado, e responde ao processo. Se ele não comparecer quando solicitado, o juiz pode decretar a prisão preventiva dele. Agora se ele responder regularmente ao processo, ao final ele não receberá uma pena privativa de liberdade, mas sim uma pena restritiva de direito.

E o caso das vitimas? É justo ver um criminoso, um assaltante solto, depois de roubar pessoas, por exemplo?
Claro que o lado da vítima deve ser visto. Mas o próprio legislador já criou meios de reparar os danos dos crimes patrimoniais às vítimas. Acho que nós temos que sentar e fazer uma grande discussão, até mesmo para fortalecermos no Brasil o instituto da justiça restaurativa, que recompõe a situação do criminoso e essa grande gama de cidadão condenados no Brasil hoje - são mais de quinhentos mil que se acham presos. Que nós repensemos os nossos institutos. Será que tão somente aplicar a pena privativa de liberdade também resolve? Será que a sociedade se compraz e acredita que o senso de justiça está feito a partir do momento em que o cidadão vai para a cadeia?
Eu tenho certo receio em relação a isso. Se nós não melhorarmos a qualidade do nosso sistema penitenciário, garantindo a efetividade das penas, não adianta impor pena, pois o cidadão vai continuar cometendo crimes.

Não teria sido melhor, ao invés de mudar a prisão preventiva, ter alterado o tempo de julgamento dos processos, fazendo com que a justiça agisse com mais rapidez?
Há no presente momento no Congresso Nacional um projeto de lei visando alterar o código de processo. Há até mesmo por parte do presidente do STF, uma PEC – chamada PEC dos Recursos – que visa sintetizar, tornar mais célere e mais eficiente o nosso processo penal. Hoje, realmente, mercê de uma séria de dificuldades estruturais, de possibilidades de recursos, os mais variados, a tramitação processual no Brasil pode ser considerada lenta. Para isso, nós estamos acompanhando, junto ao Congresso Nacional, esse projeto que visa alterar o processo penal brasileiro dando a ele mais celeridade e mais efetividade.

A mudança na lei abre agora a possibilidade para que os delegados determinem até a questão da fiança. Não é perigoso entregar às polícias em todo país, esse tipo de decisão?
Houve uma alteração desse particular que, aliás, já existia. O que aumentou foi a possibilidade quanto à imposição da fiança. É preciso ficar claro que nós estamos em um país que prima por um processo penal constitucional onde se garante a ampla defesa, e judicialização do processo. Então, qualquer ação do delegado tem que ser levada imediatamente ao conhecimento do juiz, ao crivo judicial para regular com relação a sua legalidade e constitucionalidade.

Esse processualismo da nossa justiça, não torna as decisões judiciais muito distantes do que deseja a população? Nós não poderíamos buscar outra forma de justiça que permitisse ao juiz agir mais fora do processo, dentro de uma decisão que atendesse ao clamor da população?
Discute-se muito a judicialização do processo brasileiro, tanto o penal como civil. Também as questões de saúde e educação que são encaminhadas para a justiça. Nós estamos em um momento em que, mais do que nunca, precisamos trabalhar três situações diferenciadas: primeiro é preciso investir mais na questão da conciliação. O brasileiro precisa aprender mais a praticar o processo conciliatório, resolver os problemas sem necessariamente levar todos à justiça. Aí vale dizer mediação, arbitragem, a própria justiça restaurativa que é uma maneira mais informal e menos judicializada de resolver um problema, recompondo a situação conflituosa reiterando a reivindicação de condutas. É preciso reformular a nossa legislação do processo penal. Modernizar o nosso processo, o tornar mais célere e mais efetivo. Por último, eu diria a tendência é de virtualização, é de eletronização do processo. Para que no país exista mais pacificação social, este deverá ser o nosso caminho.

Entre as dez instituições brasileiras mais conhecidas e pesquisadas pela Fundação Getúlio Vargas, a Justiça está em 7° na aprovação popular. O senhor acha justa essa reprovação do judiciário brasileiro?
Acho que há uma má informação da sociedade quanto ao papel do judiciário. Penso que o judiciário tem amadurecido, tem evoluído. Na medida do possível, tem sido uma instituição do nosso tempo. É preciso continuar aprimorando a atividade judiciária do Brasil. É preciso que tenhamos leis feitas de maneira mais responsável, não achar que somente a aplicação de uma lei penal vai resolver o problema. Isso tem se mostrado ineficiente no combate à criminalidade. É preciso investir no judiciário, dar a ele mais independência, autonomia funcional para que seja uma instituição que responda aos interesses da sociedade. Mais do que isso, que cumpra seu papel institucional e seu papel legal. Agora, é necessário ter consciência. A sociedade precisa se debruçar cada vez mais sobre essa ação de cidadania e entender que o judiciário no Brasil tem cumprido o seu papel, ainda que com as limitações que apresenta.


Fonte: Revista Vox Objetiva