Carlos Roberto Loiola
Magistrado em Minas Gerais

Testemunhei a genialidade de Charles Darwin nos anos incríveis, ao descobrir por acaso o segredo escondido de uma trava-mente, um desses jogos de adivinhações que fascinam crianças e jovens.

Como todos os meninos bisbilhoteiros das coisas das ciências, seguidor do não menos genialíssimo e bem humorado Professor Pardal, gostava, nos anos incríveis, de resolver charadas, quebra-cabeças, jogos de adivinhações et cetera e achava uma patacoada a resposta que forneciam-me certos matadores de charadas acerca de uma famosíssima, consistente em responder quem surgiu primeiro, o ovo ou a galinha?

Aconteceu algo de espetacular naquele dia de descoberta da resposta da agudeza, ao acaso, ao assistir a um documentário da BBC de Londres, pela TV Cultura, sobre a viagem do genial pai da ciência natural que resultou nas elaborações da teoria da evolução das espécies. Além de encontrar a resposta do jogo de adivinhação, descobri, mesmo sem a consciência da grandeza desse novo saber, só mais tarde adquirida, que a genialidade surge, quase que de regra, no dissenso, no contrassenso, quando existem os que pensam de forma diversa, extravagante, tal como foi o pensamento de Charles Darwin, em sua época.

Recentemente vi pela televisão curiosa entrevista concedida a Roberto D`Ávila, pelo fotógrafo italiano Olivieri Toscani, que também se expressou no sentido de que o consenso é uma ponte bastante segura para a mediocridade, para a falta de criatividade. Nelson Rodrigues dizia que “toda unanimidade é burra” (talvez por não conhecer como o tal bichinho é genioso), frase sempre repetida pelo Ministro Marco Aurélio de Mello, da Suprema Corte, em incontáveis de seus votos.

Fazendo ciência com muita arte esses articuladores culturais extremamente conectados com o seu tempo nos provam que, seja na elaboração de normas, seja na sua interpretação, jamais seremos medíocres, pois analisando o princípio da inocência estampado no art. 5º, inciso LVII, da Constituição da República, é possível constatar apenas muito dissenso e criatividade, a exemplo do que ocorreu no dia 05 de junho de 2014, no julgamento do RE 591.054, com repercussão geral reconhecida, na qual, após os votos de quatro Ministros do Supremo Tribunal Federal em um sentido e de outros quatro em sentido oposto, houve a suspensão do julgamento, ficando o assunto para ser deliberado somente após o preenchimento da vaga deixada pelo Ministro Joaquim Barbosa, autor do pedido de vistas.

Os que me propunham a tal trava-mente infantil antes referida talvez nunca tenham tido conhecimento da teoria da evolução das espécies, na sua agudeza genialíssima e a resposta que me forneciam era sempre o mesmo círculo vicioso que muitos já conhecem...

Mas, de repente, apareceu-me um matador de charadas com a resposta certa ao calemburgo, sem rodeios, sem lero-lero, diferentemente de todos os demais e chegou quebrando num átimo o círculo vicioso da unanimidade que não resolvia nada, só travava a mente.

Nesse precitado documentário da BBC de Londres tomei conhecimento de que o próprio Charles Darwin foi chamado de charlatão, por renomados cientistas de sua época, após a publicação de A Origem das Espécies, em 1859. Aprendi, além de tudo, que no jogo de interesses da vida, nem sempre a ciência busca realmente a verdade, porquanto a ciência também é um instrumento na guerra desses interesses.

Mais tarde descobri que Charles Darwin pagou elevado preço por ter sido genial, considerado charlatão só pelo fato de ter sido incompreendido por alguns, ao seu tempo. Num tempo em que, mesmo numa academia de ciência, o mais importante não era a busca da verdade, mas a afirmação da verdade preconcebida e que não poderia ser questionada (o nosso atual copia e cola). Ainda que a verdade fosse, de fato, só aleivosia; quiçá, um dogma.

Pois foi este homem que disseram-me ser carrancudo, mas cuja leitura é extremamente gentil, até para adolescentes, que na genialidade de sua teoria da evolução, convenceu-me definitivamente que antes surgiu o ovo, porque os dinossauros, nascidos de ovos, já viviam na terra há milhões de anos e, muito depois, com a evolução, surgiram as aves. Portanto, o ovo surgiu antes da galinha.

Com o passar dos anos descobri o segredo de muitos outros jogos de adivinhações, charadas, adivinhas, ditos de espírito, enroscadas, labirintos, calemburgos, enigmas, chalaças, agudezas, subtilezas, jogos dos sete erros, o que é o que é, facécias, enfim, dessas pegadinhas de fausto do pensar coerente que existem por aí. Talvez até tenha sido por gostar desses refinados exercícios de lógica e ilusão que apaixonei pelo Direito, porque é no Direito, com certeza, que todas essas trava-mentes grassam com toda a força do espírito humano, muitas das vezes sob o pomposo nome de hermenêutica.

Com efeito, a hermenêutica nada mais é do que um dito de espírito, apenas com o distintivo de que o fundamento está numa norma jurídica. Máximas do direito nada mais são que ditos refinados de espírito de algum jurisconsulto.

Mas num país onde devem existir mais normas legais do que pessoas, automóveis e motocicletas juntos, é evidente que convivam as mais diversas formas de pensar o mesmo fenômeno. O dissenso criativo.

Vejam, pois, uma trava-mente genial que circula nos meios jurídicos há muitos anos, cuja solução suprema, mas certamente não derradeira, foi suspensa no dia 05 de junho de 2014, no julgamento do RE 591.054, e que, para mim, tem tudo a ver com jogo de adivinhação, com a charada cuja resposta encontrei, em juventude, na teoria da evolução, já citada.

Está escrito na Constituição da República Federativa do Brasil, no art. 5º, inciso LVII que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. É a consagração, em nosso Direito Constitucional, do princípio de que as pessoas são inocentes, até serem condenadas, ou seja, até serem julgadas culpadas.

Tudo seria muito simples, muito óbvio, acho, se a redação do artigo fosse essa: as pessoas são inocentes, até serem condenadas.

Contudo, ao invés de escrever isso, simplesmente, o constituinte preferiu dar uma redação mais arrojada, despojada, pois uma só pena na cabeça não identifica o cacique, que deve ter um cocar inteiro delas; muitas delas.

A redação do princípio, ao que se constata, ficou então a cargo de um exímio charadista trapalhão que muito provavelmente também não conhecia a teoria da evolução de nosso ativista cultural Charles Darwin, ou cochilou, ou era inocente, na acepção de estar impregnado de ingenuidade, ou era um inocente, mas agora no sentido científico que ele próprio pretendia dar ao vocábulo, ou seja, estava é muito mal intencionado mesmo. Vai ver nem era um charadista, mas um queima-campo.

Para os da urbe que não sabem o que significa esta expressão capialesca, porquanto ela não aparece em qualquer dicionário, Cornélio Pires, jornalista, escritor, folclorista, empresário e outro genial ativista cultural, consagrado autor de livros e de canções, explica que queima-campo é o caipira que se intromete numa conversa, ‘assunta o causo’ que se discute e aparece logo com outro causo, muito mais espetacular e estrambótico, quase sempre uma patacoada inacreditável, causo que pode ser confirmado também por outra testemunha que o presenciou, testemunha essa conhecida dos presentes, mas infelizmente já falecida, ou por outra muito famosa e viva, mas totalmente inacessível aos presentes. Esse queima-campo é ou não é genial?

Se o redator do indigitado dispositivo constitucional era um charadista ou um queima-campo à moda de Cornélio Pires, ou quais eram as suas intenções, isso já não vem ao caso nesse momento. O fato é que se criou um verdadeiro imbróglio hermenêutico sobre os quais debruçam muitos operadores do direito, desde 1988.

Aí está a charada constitucional à moda do caipira queima-campo: a expressão “trânsito em julgado” existente no referido art. 5º, inciso LVII, de nossa Constituição da República é ovo ou é galinha? Quem surge primeiro, o juízo de culpabilidade ou o trânsito em julgado?

Inocentes de todos os gêneros, ou pusilânimes diante da obviedade da constatação do absurdo, ou só despreocupados em resolver a charada segundo princípios científicos, lógicos, metodológicos (a lógica maior), partem muitos operadores do direito de um falso argumento (a lógica menor) em busca da verdade como certeza de um critério racional (a crítica do conhecimento) e acabam por encontrar soluções sem sentido, carentes de lógica. O resultado é o Direito sendo aplicado segundo o que convém para caso concreto, ao sabor das ventanias, não das leis; menos da lógica. A própria negação do Direito como Ciência. O Direito pelo avesso.

Sabemos que, para haver uma sentença penal condenatória, pré-existe uma sequência dialética estabelecida pela lei penal, pela qual o magistrado deve necessariamente percorrer, para chegar à conclusão, qual seja, a de que o acusado deve ser condenado. Para condenar alguém o magistrado deve necessariamente analisar com antecedência lógica, se o fato praticado pelo agente é típico, antijurídico e culpável. Crime é fato típico, antijurídico e culpável. O agente só pode ser punido criminalmente se cometer um fato previsto na lei como sendo um crime, que este fato seja contrário ao ordenamento jurídico, e, finalmente, que o agente seja culpável. Não é possível nenhuma condenação criminal se o magistrado não passou por essa sequência lógica, quase matemática, estabelecida pela lei penal.

Para chegar à sentença penal condenatória, o processo passa por uma natural evolução de atos, para continuar utilizando de nossa salvadora teoria da evolução, com o exame analítico e dialético desses três elementos do crime, que são todos eles pressupostos para aplicação de uma pena, na medida em que não há pena sem crime e não há crime sem esses três elementos. E mesmo depois da sentença penal condenatória o processo continua evoluindo, pois que essa sentença está sujeita a eventual recurso e somente depois de muito evoluir a sentença transita em julgado.

O trânsito em julgado, assim, é uma fase muito posterior ao juízo que se faz acerca da conduta do agente processado, muito posterior ao juízo de culpabilidade, que naturalmente antecede a própria sentença penal condenatória ou com ela é, pelo menos, temporalmente coincidente, incontinenti; jamais subsequente.

Portanto, ao condenar alguém, num processo criminal, o magistrado já afirmou, com a antecedência lógica estabelecida pelo seu raciocínio, que o fato praticado pelo agente é típico, antijurídico e culpável. O Estado, na pessoa do juiz, já afirmou: o agente não é inocente; está impregnado de culpabilidade.

Com efeito, não existe condenação criminal válida se o fato praticado pelo agente não for culpável, como verbi gratia, se o agente não tinha dezoito anos na data do fato por ele praticado, na medida em que ter 18 anos é um (dentre outros) elemento da culpabilidade criminal. Para condenar alguém, antes disso o magistrado já afirmou que o fato é culpável, com todos os seus elementos constitutivos. O Estado, na pessoa do magistrado, já formou o juízo de culpabilidade do agente.

Então, a resposta da charada do queima-campo só pode ser: o “trânsito em julgado” referido no art. 5º, inciso LVII, da Constituição da República é galinha, não ovo. O ovo é a culpabilidade, que naturalmente antecede o juízo de desvalor pessoal da ação, como elemento normativo da reprovabilidade.

Ocorre que a redação do dispositivo constitucional em testilha, como visto, contém uma verdade juridicamente barroca, logicamente inconciliável, coisa do queima-campo: aquilo que deveria suceder, seguir, vir depois (que é o trânsito em julgado), precede o próprio juízo de desvalor pessoal da ação, o juízo da culpabilidade, na medida em que está expresso no dispositivo: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, ou seja, somente depois do trânsito em julgado pode haver um juízo de culpabilidade.

Dessa forma, um algo indefinido e indecifrável transita em julgado (que na ordem natural darwiniana do dispositivo jamais pode ser um juízo de culpabilidade), para somente depois disso, desse algo sem conteúdo e misterioso transitar em julgado aparecer a figura do juízo de culpabilidade. Só depois da consequência é que aparece o pressuposto! A galinha antes do ovo. O filho que nasce antes do pai.

No referido documentário da BBC sobre Charles Darwin, nosso genial matador de charadas chega a ser mostrado como sujeito mal humorado, carrancudo. Jornais da época chegaram a divulgar caricaturas do gênio no corpo de um chipanzé. Pois imagino que se pudesse ele ter tido contato com este curioso espécime de calemburgo brasileiro envolvendo sua teoria da evolução o quanto não teria achado graça. O documentário teria outra versão...

Sobre essa aberração da ordem natural das coisas, na qual o filho nasce antes do pai, foi publicada a súmula 444, do Eg. STJ, que consagrou o entendimento segundo o qual “é vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base”.

A expressão “ações penais em curso” passou a ser entendida, com base no texto constitucional, como sentenças penais condenatórias ainda não transitadas em julgado, inclusive pelo STF. Moral da história natural brasileira: sem o trânsito em julgado de sentença penal condenatória o sujeito deve ser considerado sem culpa, inocente. Tenho dito: gente boa.

Não bastasse o só fato de ter um número cabalístico, à moda de Malta Tahan, outro grande ativista cultural e genial matador de charadas, essa famigerada súmula se choca com os mais comezinhos princípios de dialética, de sistema e chega mesmo a inviabilizar a solução de jogos de adivinhações geniais. Uma pena na charada de ovos e galinhas. Cria o dessistema, a lógica do “é assim porque o chefe disse que deve ser assim”; a réplica do “foi Deus que quis assim”, o “considerando que o tema já está sumulado, deixo de raciocinar sobre o assunto” et cetera. Desestimula o uso da inteligência, do dissenso e cria uma unanimidade sem criatividade, preguiçosa, a exemplo do que são, de resto, quase todas as súmulas. Um prêmio à ociosidade no pensar criativo.

Súmulas, na maior parte das vezes, servem mesmo para criar unanimidades preguiçosas (o burro, acreditem, é um animal deveras genioso), na medida em que praticamente coíbem o dissenso, o contrassenso criativo. O fim de soluções de charadas geniais... O túnel no final da luz...

Para os que pretendiam dar um efeito suspensivo ao juízo de culpabilidade, para outros processos do mesmo agente, se é que isso seria possível, bastaria uma simples reforma do disposto no art. 59, do Código Penal, retirando-se dele a análise dos antecedentes. Só isso. Embora um tanto estranho, o sistema ainda teria um mínimo de lógica. Contudo, nossas leis também sofrem da famigerada síndrome de cacique. Elas não se contentam em ser apenas índios; querem todas ser caciques, normas constitucionais, ainda que aberrantes, à queima-campo.

Aí começam a surgir os alquimistas da lógica natural das coisas, os que veem no dispositivo constitucional aberrante poderes mirabolantes só vistos por eles. E para nos convencerem desses poderes, citam convenções internacionais, declarações de direitos humanos, começam a nos lançar em distinções as mais barrocas, assistêmicas e inimagináveis, partindo da premissa menor inconciliável com a lógica. Tudo para demonstrarem o que a obviedade da teoria da evolução não conseguiu explicar-lhes.

Ocorre que a norma em questão deve ser aplicada em uma infinita gama de situações fáticas. A dinâmica da vida que a tudo envolve e que é tão bem explicada por Darwin: a relação que existe em tudo. E a gambiarra hermenêutica feita para conciliar um caso concreto aqui, acolá se mostra desastrosa. Aparecem as trava-mentes, como a demonstrada perspicazmente pelo Ministro Gilmar Mendes, no seu substancioso voto proferido no próprio RE 591.054, acima citado: a Suprema Corte afirma que uma condenação penal não transitada em julgado não pode ser considerada para fins de antecedentes. Contudo, a simples existência de um pressuposto de prisão cautelar justifica o encarceramento do sujeito.

Assim, o juízo cautelar, que é provisório, precário e visa tão somente a garantir a efetividade do provimento jurisdicional ao final, garantia do processo, no sistema que ignora a teoria da evolução, passa a ter mais força que o próprio juízo de mérito, o juízo de proteção social, que é o fim do Direito Penal! Vejamos:

“Já se firmou a jurisprudência desta Corte no sentido de que a prisão cautelar não viola o princípio constitucional da presunção de inocência, conclusão essa que decorre da conjugação dos incisos LVII, LXI e LXVI, do art. 5º da CF.” (HC 71.169, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 26-4-1994, Primeira Turma, DJ de 16-9-1994.) No mesmo sentido: HC 68.037, Rel. Min. Aldir Passarinho, julgamento em 10-5-1990, Segunda Turma, DJ de 21-5-1993; HC 68.499, Rel. p/ o ac. Min. Néri da Silveira, julgamento em 18-6-1991, Segunda Turma, DJ de 2-4-1993; RHC 93.123, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 19-2-2009, Plenário, DJE 1-7-2009. (outros julgados no mesmo sentido: HC 95.009, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 6-11-2008, Plenário, DJE de 19-12-2008.) E mais: HC 96.577, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 10-2-2009, Segunda Turma, DJE de 19-3-2010. Vide: HC 97.028, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 16-12-2008, Segunda Turma, DJE de 14-8-2009.

Então, chegamos à seguinte conclusão: o sujeito, mesmo sem juízo de culpabilidade formado, mas com o precário juízo cautelar, provisório, meramente de garantia do processo, este pode ser preso, cautelarmente. Autoriza-se a prisão daquele que a Constituição da República afirma ser presumivelmente inocente, para garantia de um bem maior, o juízo de proteção social, que é o fim do Direito Penal. Contudo, após o juízo de culpabilidade, revelado pela condenação, esta não pode ser levada em conta para fins de se dizer que o condenado não possui a circunstância da culpabilidade em seu desfavor. Deve ser considerado em pé de igualdade a um inocente. Aqui não vale mais o juízo de proteção social, o fim do Direito Penal.

A estripulia da charada constitucional à queima-campo extrapola os limites do direito penal, como não poderia deixar de ser, pois há uma ligação em tudo. Julguei recentemente um caso bastante curioso em que um policial militar, após fazer uma simples transação penal, nos Juizados Especiais, pediu sua remoção para a inativa, com a promoção para o cargo imediatamente superior, por satisfazer a todos os requisitos da Lei que instituiu tal benefício.

Apesar da remoção para a inativa ter sido concedida, o Estado negou ao militar sua pretendida promoção ao cargo superior, ao argumento de existir um ordenamento no Estado (desses curumins que se julgam caciques!) que estabelece que o policial respondendo a processo criminal somente pode ser promovido se ele provar a inocência. Isso mesmo, se ele provar a inocência! Nem mesmo a extinção da punibilidade por prescrição ou por quaisquer outros motivos que não fosse a declaração expressa de inocência poderia ensejar a tal promoção.

O caso tornou-se pitoresco porque alguns dias antes eu havia proferido uma sentença penal condenatória de um indivíduo que ostentava extensa ficha criminal, com algumas condenações anteriores, mas todas pendentes de trânsito em julgado. Então o imbróglio estava armado: para sujeito já sentenciado, inclusive a vários crimes graves, no momento de fixação da pena-base eu havia sido obrigado a afirmar que ele era gente boa, porque nenhuma das condenações anteriores havia transitado em julgado. Mas ao pobre do policial, para este pobre coitado que havia feito uma simples transação penal, para ele o próprio Estado dizia: você não é gente boa, não merece promoção, porque fez uma transação penal com o Ministério Público.

Ao julgar procedente o pedido do policial à sua pretendida promoção, por sentença agora confirmada pelo Eg. TJMG, de virada, pelo placar de dois a um, afirmei:

Para bandido, nem condenação sem trânsito em julgado é capaz de macular sua “inocência”. Para policial condecorado, só a existência de um TCO, ainda que extinta a punibilidade por transação (que é instituto descriminalizador já reconhecido pelo próprio STF) basta para provar que o cara não é inocente. Não é gente boa. E dane-se ele para provar que é inocente, sem poder fazê-lo, porque a transação o impede disso.

Não concordo com a súmula cabalística 444, do STJ, que se choca com o princípio da individualização da pena e com o princípio de que os documentos públicos devem gozar da presunção de serem verdadeiros; de revelarem uma verdade, pelo menos até prova em contrário, pois mesmo sem o trânsito em julgado o sujeito pode ser preso. A lógica da cabala: pode ser preso, mas deve ser considerado inocente!

Há mais: por que o sujeito vai se esforçar para se recuperar se o próprio Estado está dizendo que ele é gente boa?

Essa súmula nega que uma sentença penal condenatória sem trânsito em julgado contenha uma verdade: a de que o condenado não é inocente. Retira a lógica de tudo. Transforma ciência em cabala. Joga sobre magistrados, promotores, delegados, policiais, enfim, todos os que trabalharam até o ato da sentença a presunção de que todos erraram, tudo em prol do bandido condenado, que deve ser considerado inocente até que essa sentença seja revista lá pelas instâncias superiores. “Prenda-o, mas considere-o inocente!”

Essa famigerada súmula tem me tirado até o sono. Provocado pesadelos. Outro dia tive um. Cabalístico como os números de Malba Tahan, que também me roubam sonos matemáticos. Sonhei que Fauzi Trevic havia sido convocado pelos Ulemás a se explicar acerca de uma certa frase que havia colocado numa de suas sentenças: jus ars boni et eaqui. Havia causado mal-estar. Lá no grande palácio do Ulemá, viu ele humildemente alguns Cádis em reunião informal e que um deles reclamava para o colega que havia descoberto que seu filho adolescente estava fazendo coisa errada. Assim: -“descobri que meu filho fez mal-feito, mas quando perguntei a ele, o jovem me jurou que não tinha feito nada daquilo”. O segundo Cádi o acalmou, com um tapinha nas costas, à brasilis: -“você é que é feliz: outro dia isso também aconteceu lá em meu modesto palácio; ao mostrar para meu filho o mal feito já descoberto ele me respondeu que não havia provas contra ele”. Nisso interveio o Grande Ulemá, senhor das jurisprudências mais sábias, da paz e da prosperidade dos povos, e foi logo dizendo sua sentença: –“vocês dois estão muito rigorosos com seus filhos! Outro dia descobri que minha filha de dezessete anos, da sétima concubina, está namorando um sujeito de vinte e sete anos, sujeito este com uma ficha criminal de trinta e sete pergaminhos; quando mostrei para Iasmin a ficha desse sujeito ela alegou que já sabia disso, mas que não era para eu me preocupar, pois seu namorado havia garantido que nenhuma das quarenta e sete condenações criminais daquela ficha ainda havia transitado em julgado; e ela tinha razão”, concluiu o Grande Ulemá: -“nossa súmula 444 não permite que desconfiemos de ninguém, até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Uassalã!”. Acordei. Era só mais um pesadelo cabalístico!

Aplico essa (familiadegenerada e cabalística) súmula 444, quando julgo casos criminais, para não ter o desgosto de ver minhas trabalhosas sentenças sendo reformadas.

Contudo, também não posso concordar com essa exegese aqui revelada, em que um policial condecorado (em quem o povo brasileiro se acostumou a jogar pedras) é severamente punido, não sendo promovido, pela presunção de que a aceitação de uma transação penal vale mais que uma condenação criminal transitada em julgado.

O presente caso trata de discriminação hedionda em desfavor de agente público que fere os mais comezinhos princípios republicanos da presunção de inocência, da não culpabilidade, do devido processo legal, da razoabilidade, da isonomia (vejam só: da isonomia do policial ser tratado pelo menos como os bandidos são pelo Estado garantista, que garante sumularmente a impunidade num país em que o número de homicídios não julgados é maior do que em muitos países em guerra civil).

Destruímos o conceito de nação solidária (CR, art. 3º) em prol do namoro de Iasmin. (TJMG. 1.0024.11.066990-0/001 ou 0669900-29.2011.8.13.0024 (1), Publicação do acórdão que confirmou a sentença: 23.04.2014).

Charles Darwin pode ter sido até um cara mal humorado e carrancudo, para seus ‘adversários de ciência’, pois é realmente muito difícil revelar para dogmáticos a ordem espantosa subjacente ao mundo natural. Contudo, a genialidade pressupõe o dissenso e a criatividade está muito longe da unanimidade.

Não sejamos inocentes, contudo, ao ponto de acreditar que o julgamento do RE acima citado, provisoriamente suspenso, colocará uma pá de cal na problemática. Estando o placar do jogo quatro a quatro, seja na prorrogação, seja nos próximos jogos, para cada Ministro que ingressar na Suprema Corte haverá um novo questionamento da questão, quiçá um novo placar. A teoria da culpabilidade haverá de passar por um longo processo evolutivo, no completo dissenso, para colocar a presunção de inocência no seu devido lugar. A presunção de inocência que deveria ser apenas uma cláusula pétrea, só, mas que não estava autorizada a jogar uma pedra na lógica da Ciência do Direito.

Até lá, muitos ovos terão sido quebrados, pois que o queima-campo, criador de aves domésticas e caçador das silvestres, exímio chef que é, usa de todos os ingredientes para elaborar suas requintadas omeletas com recheio de aves raras, em suas patacoadas, porque esse espécime de inocente de todo gênero, como nossos novelistas, ele adora mesmo é redigir constituições.

Nesse ambiente de biodiversidade cultural, de dissenso e contrassenso, que se espera respeitoso, deleitoso, criativo e saudável, em que as omeletas são indispensáveis à própria sobrevivência de nossa espécie, é que haverá de surgir um novo Charles Darwin salvador, talvez não necessariamente mal humorado nem carrancudo, mas bem humorado, simpático e igualmente genial, talvez, quem sabe, à moda do nosso querido galinho Professor Pardal, de memoráveis jornadas épicas dos anos incríveis, herói de Patápolis, para quem o queima-campo é um arqui-inimigo declarado, por razões genealógicas óbvias, a nos brindar com uma novíssima invenção, uma geniosa máquina desimbramadora de patacoadas criadas por queima-campos, salvadora da sua gene e que ponha fim às patadas de todos os gêneros, e nos mostrar, não através da teoria da evolução, esta ainda incapaz para isso, mas através da evolução da teoria, a resposta da charada constitucional do caipira queima-campo, colocando o famigerado “trânsito em julgado”, as galinhas, os ovos, o próprio queima-campo em seus devidos lugares. Para felicidade geral da nação, para que possam os pais sonhar o sonho dos justos, tranquilos com os namoros de suas Iasmins e para evolução de todas as espécies.

Uassalã!

Bibliografia:

Barroso, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Rio de Janeiro. 1993.

Carvalho, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional Didático. Belo Horizonte. Del Rey. 1996.

Dotti, René Ariel. Curso de Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro. Forense. 2003.

Filho. Manoel Gonçalves Ferreira. Curso de Direito Constitucional. São Paulo. Saraiva. 1990.

Grecco, Rogério. Direito Penal. Belo Horizonte. Gráfica e Editora Cultura Ltda. 1998.

Moraes, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada. São Paulo. Atlas. 2005.

Pires, Cornélio. As Estrambóticas Aventuras de Joaquim Betinho – O Queima-Campo. São Paulo. Imprensa Methodista. 1924.

Silva, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo. RT. 1990.

Tahan, Malba. O Homem que Calculava. São Paulo. Record. 1995.

Tavares, Juarez. Teoria do Injusto Penal. Belo Horizonte. Del Rey. 2000.

Toledo, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. São Paulo. Saraiva. 1994.

Zaffaroni, Eugênio Raúl, et autri. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. São Paulo. 1997.