RIO — A vida de um preso é feita de espera. O dia do julgamento, o dia da visita, o tempo de pena a cumprir, os benefícios a que tem direito: tudo é uma longa espera — e o relógio de quem está preso bate devagar. D.S., de 26 anos, sabe disso. Um dos quase 600 internos da Penitenciária Lemos Brito, no complexo de Gericinó, ele divide uma cela de cinco metros quadrados com mais um detento. Por estar em regime fechado, é nesse cubículo que D.S. passa a maior parte do tempo. Mas ele já poderia ter sido transferido para o semiaberto. Está à espera disso desde que o benefício venceu, em 17 de dezembro de 2013. Os oito meses de atraso dão uma ideia da lentidão a que presidiários, defensores públicos, promotores e advogados estão acostumados sempre que precisam da Vara de Execuções Penais (VEP), do Tribunal de Justiça do Rio.
— A Defensoria Pública pediu esse benefício em janeiro, logo após o recesso. Passados mais de quatro meses, não houve apreciação. Tivemos que entrar com um pedido de habeas corpus na segunda instância do TJ para fazer o processo andar, mas ele está parado desde junho — conta Felipe Almeida, coordenador do Núcleo do Sistema Penitenciário (Nuspen) da Defensoria Pública do Estado, que atende 90% da população carcerária fluminense. Com mais de dez anos atuando na área, Almeida convive com essa morosidade diariamente. — Para se juntar uma petição aos autos, às vezes temos que esperar 45 dias. Infelizmente, quando o assunto é preso, ninguém tem pressa.
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NÚMERO DE SERVIDORES ENCOLHEU
‘Infelizmente, quando o assunto é preso, ninguém tem pressa’
- Felipe Almeida, coordenador do Núcleo do Sistema Penitenciário da Defensoria Pública do Estado
A VEP funciona no terceiro andar do edifício Lâmina II, no Fórum da capital. Para lá são mandados os processos de todos os condenados nas quase cem varas criminais do estado. Apesar de sua importância para o Judiciário, a VEP do Rio é filha única, com apenas cinco juízes responsáveis por 38 mil detentos, a terceira maior população carcerária do país. Mas, se todos os processos que circulam lá forem somados — uma contagem inédita está em andamento e deve acabar em um mês e meio —, as pilhas e mais pilhas hoje espalhadas por estantes, mesas e até mesmo pelo chão chegariam a pelo menos 110 mil ações, um pesadelo para qualquer juiz.
Chama a atenção a estrutura acanhada da VEP, especialmente porque, nos últimos cinco anos, o número de presos no Rio subiu 164% — foi o sétimo estado a ter o maior aumento. Para acompanhar a carga de trabalho, a Defensoria Pública passou a contar com 43 defensores na execução penal (antes, eram 35). O Ministério Público também reforçou seus quadros e hoje tem 17 promotores na área. Só a VEP não cresceu. Ou melhor, encolheu. Embora a vara continue com cinco juízes, o número de servidores responsáveis pelas tramitações nela caiu de 103 para 80.
ENTIDADE DEFENDE DESCENTRALIZAÇÃO
Presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro (Cperj), entidade fundada em 1924, a advogada Maíra Fernandes luta para que os poderes da VEP sejam descentralizados. Ela se apoia em recomendações que o próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem dado ao TJ fluminense desde 2011. Recentemente, o Cperj e a OAB/RJ enviaram ofício ao CNJ reforçando um pedido, já feito antes pelo Ministério Público estadual, por mais varas de execução penal. O documento solicitou a criação de mais três VEPs: uma no Norte Fluminense — onde há três mil presos em quatro unidades — e duas na capital, dedicadas apenas a medidas alternativas e de segurança, assim como já ocorre em outros estados.
— Não é razoável que uma vara tenha superpoderes como a VEP. O TJ não para de crescer, portanto o problema passa longe da falta de recursos. Se uma rebelião acontecer em Campos, o juiz vai demorar pelo menos cinco horas para chegar lá. E, como os presídios têm mais presos do que vagas, a lentidão da VEP acaba agravando a superlotação nas unidades — afirma a advogada.
Dados oficiais do sistema prisional revelam que, na última semana de julho, 32 dos 50 presídios do Rio tinham mais detentos do que sua capacidade. O excesso é de 27%, e os piores casos estão no regime semiaberto. No Instituto Penal Vicente Piragibe, por exemplo, havia 2.787 internos, quando o limite é de 1.444.
Além do Rio, apenas Goiás (12 mil presos) e Pernambuco (30 mil internos) têm uma única VEP. Um dos estados onde a execução penal está mais avançada é o Espírito Santo. Lá, oito varas são responsáveis por cerca de 15 mil presidiários, cerca de um terço da população carcerária do Rio. Em Minas Gerais, o modelo é diferente: uma única vara funciona na capital, mas os juizados criminais do interior (divididos em 296 comarcas) ficam responsáveis pela execução das penas.
Apesar de todas as reclamações, a VEP vive uma nova esperança desde que o juiz Eduardo Oberg, de 55 anos, assumiu há três meses como titular. Disposto a dialogar e com um currículo admirável (primeiro lugar no vestibular, no concurso de juiz e na prova de mestrado), o professor de direito da PUC-Rio, que trabalhou com Darcy Ribeiro nos anos 80, recebe elogios mesmo dos críticos da VEP. Ele aceitou o convite feito pela desembargadora Leila Mariano, presidente do TJ, a três anos de se aposentar. Sua família não quis que ele deixasse a Vara de Órfãos e Sucessões para trabalhar com presos pela primeira vez na vida. Mas ele não se arrepende.
— O trabalho é massacrante, pois cada processo é um drama humano. São 12, 13 horas de trabalho diárias. Despachamos, todo mês, cerca de oito mil processos. O número de benefícios concedidos subiu, hoje são 60 por dia. O problema não é falta de juiz. Se eu fizer mil despachos diários, os servidores não terão condições de processar isso tudo — afirma. — Mas eu não desisto. Sabia que seria assim no dia em que fui convidado. Cabe a mim reivindicar rapidez, e a presidente tem me dado todo o apoio.
NOVO SOFTWARE VAI SER DESENVOLVIDO
Oberg levou consigo um grupo de cinco servidores com quem já havia trabalhado: entre eles, especialistas em sistemas e reformas administrativas. Diante da dificuldade em contratar mais funcionários, decidiu apostar no aumento de estagiários de direito. Eram 40, hoje são 70, e o número chegará, ainda este ano, a 110. Em breve, após etiquetar cada um dos processos, a VEP passará por uma etapa de informatização: o sistema utilizado pela vara, até hoje, é o primeiro do TJ e tem mais de 15 anos. Um novo software será desenvolvido e guardará todo o histórico de cada processo.
— Pode ser que eu fique com uma vara mais leve e enxuta depois da informatização. Não posso concluir que é preciso descentralizar antes disso e de saber exatamente quantos processos temos aqui — diz ele. — Temos que correr. E muito.
A VISÃO DE FELIPE ALMEIDA, COORDENADOR DO NÚCLEO DO SISTEMA PENITENCIÁRIO (NUSPEN) DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO
A VEP enfrenta um processo de sucateamento, e uma das provas disso é a redução do número de servidores ao longo do tempo. Existem bons servidores lá, mas são poucos para a demanda de trabalho. Aumentou o número de processos, de presos, de promotores e de defensores públicos: só a estrutura da VEP diminuiu. Temos 43 defensores dedicados exclusivamente a atender 90% dos presos. Do outro lado, são apenas cinco juízes. Eles têm que administrar o caos, e a concessão de benefícios sempre sai com atraso, nunca em dia. Juntar uma simples petição aos autos pode demorar de 30 a 45 dias, dependendo da época. Não existem soluções fáceis, mas, de imediato, o Norte Fluminense precisa ter uma célula da vara, pois existem três mil presos cumprindo pena em Campos e Itaperuna. O advogado que mora lá está a quase 300 quilômetros da capital. Se um cliente for condenado, ele terá que vir ao Rio para despachar com o juiz da VEP. Ele pode protocolar qualquer pedido em Campos mesmo, mas demora tanto para ser juntado aos autos que ninguém faz isso. Mas não se pode esquecer que se prende muito no Brasil, e se prende mal. São inúmeros os casos de pessoas mantidas provisoriamente na prisão (40% dos detentos no país são presos provisórios, e no Rio o percentual é similar) que depois são absolvidas. Minas Gerais e Espírito Santo repensaram seu modelo de cumprimento de pena e conseguiram reduzir a reincidência no crime. No Rio, a preocupação é apenas prender.
FONTE: JORNAL O GLOBO
FOTO:DOMINGOS PEIXOTO/O GLOBO