A teoria da decisão judicial é atravessada por uma aporia incontornável: se, de um lado, parece idílico, no atual estágio da arte, exterminar por completo a discricionariedade da decisão judicial, embora não se desista; de outro, o estado de natureza hermenêutico (Streck), que torna o é-porque-é fonte do Direito por excelência, torna a atividade judicante um jogo que requer dos seus jogadores destreza, estratégia e sorte, elementos que passam ao largo do ensino jurídico professado nas escolas de graduação.

Essa discricionariedade (inautêntica) acaba por se tornar obstáculo à concretização de direitos e de garantias constitucionais, fazendo com que esta problemática, que está no epicentro da teoria da decisão judicial, atrite-se também com as teorias críticas do Direito de viés interdisciplinar, com a hermenêutica jurídica e com as teorias constitucionais da argumentação jurídica e do garantismo. Os dramas que envolvem a construção de uma teoria da decisão judicial estão presentes tanto nas (i) narrações do fenômeno jurídico feitas em âmbito acadêmico, quanto na narratividade que é materializada na (ii) atividade judicante, por todos que participam do processo judicial (desde a narração do Poder Legislativo, passando pela prática narrativa dos profissionais que atuam representando as partes nos processos, até a narratividade dos julgadores nas decisões judiciais).

Na academia se digladiam diferentes narrações do fenômeno jurídico que oferecem um manancial de instrumentais teóricos acerca da decisão judicial que prometem, de lado a lado, o controle (ou amenização dos efeitos) da discricionariedade. Na práxis judicial, o drama da discricionariedade se materializa tanto por conta do solipsismo e da ignorância do senso comum teórico dos juristas, que efetivamente não ancoram suas decisões em nenhuma teoria por absoluto desconhecimento; quanto pela utilização retalhada das propostas de interpretação e aplicação presentes nas teorias contemporâneas da decisão judicial, que, invariavelmente, não são capazes de inserir a condicionante da pré-compreensão que se antecipa ao dilema da discricionariedade na atividade jurisdicional.

Esse conhecido dilema foi o mote para que o jurista espanhol José Calvo González, estudioso da intersecção Direito e Literatura, utilizasse a teoria literária para fazer com que a decisão deixasse de, paranoicamente, buscar Verdades Maiúsculas, para, a partir das narrações produzidas de lado a lado no jogo do processo, se pudesse extrair não Verdades, mas verossimilhanças narrativas.

A Teoria Narrativista do Direito proposta por José Calvo González está inserida na dimensão interdisciplinar de estudos de aproximação entre o Direito e a Literatura e se filia à noção de um Direito ondulado, que intenta amenizar a rigidez do Direito por meio de propostas de inserção de características como a flexibilização (Carbonier) e a ductibilidade (Zagrebelsky). Ela se situa precisamente dentro de um dos sintagmas gramaticais que, segundo Calvo, funcionam como pontes capazes de articular o jurídico e o literário. Muito embora se possa contemplar as perspectivas do Direito na Literatura e do Direito da Literatura, é o Direito como Literatura que aproxima a narratividade literária da decisão judicial, pois apresenta os produtos jurídicos como criações literárias (literatura legislativa, judicial, doutrinária, etc.) e submete a perspectiva metodológica de cânone literário à análise crítica e compreensiva dos discursos, experiências, critérios interpretativos e construtivos jurídico-dogmáticos.

Essas novas virtudes revelam a elasticidade, a adaptabilidade e a fluidez como propriedades ou condições das formas figuradas do Direito contemporâneo. Para Calvo, essas novas características “destacaram parâmetros figurativos do Direito que a purificação do normativismo jurídico kelseniano havia ocultado e, desde logo, impedido. Foi nesse ponto, precisamente, que a linha reta do Direito começou a riçar-se, de modo a formar uma linha ondulada”.[1]

A Teoria Narrativa do Direito desloca a ênfase geralmente dada à decisão judicial, que se preocupa, antes, com uma coerência de caráter normativo, e não com a coerência das narrativas feitas pelos concernidos/jogadores. Dito de outro modo: Calvo percebe a overdose de teorias acerca da norma jurídica e a carência de análise dos fatos do processo judicial. Assim, a coerência narrativa dos fatos no processo judicial é o produto jurídico extraído a partir do uso da narratividade, que é um instrumento originariamente literário. A necessidade de alternativas para o dilema da discricionariedade nas decisões judiciais pode ser considerada efeito do falacioso constructo da segurança jurídica. É pela necessidade de conhecimento prévio sobre os efeitos da aplicação da norma, que o ideal de segurança jurídica ainda sustenta — mesmo que de modo subliminar — as principais teorias da decisão. O misoneísmo como instinto psíquico de negação do novo, encontra no ideal de segurança jurídica um aliado.

Como uma fábrica de relatos, a análise da produção dos textos elaborados pelo Poder Judiciário e da narratividade aí embutida, segue a trilha das demais teorias da decisão, já que pretende, igualmente, constituir-se como tentativa de controle do poder de arbítrio do julgador.

Ainda que parcialmente conhecida no Brasil (André Karam Trindade, Lenio Streck, Luis Olivo Cancellier, Germano Schwartz, Alfredo Copetti etc.), a hipótese da justificação judicial a partir do conceito de coerência narrativa se transformou ao longo da obra de Calvo. Inicialmente, na obra Derecho y Narración, o autor afirma que a coerência narrativa se relaciona com a teoria da argumentação jurídica, para proporcionar o desenvolvimento da atividade jurisdicional como teste de verdade ou probabilidade nas questões de fato ou dos fatos controversos que carecem de uma prova diretamente observável. Uma vez que “a verdade não pode ser dada”, cabe ao produtor da verdade a tarefa da redescrição, como sugere o filósofo Richard Rorty, dado que a linguagem, além de nos sustentar no mundo, dá sustentação ao próprio mundo. Rorty se aproxima de Calvo tanto pela similitude que a proposta de redescrição tem com a de narratividade, quanto pelo fato de que Rorty, assim como Calvo, percebe que a cultura literária, muito mais do que a ciência, oferece uma multiplicidade de alternativas para ampliar os vocabulários capazes de redescrever e narrar os fatos, estejam eles ou não dentro do espectro jurídico. Além disso, quando Calvo elogia a verossimilhança como pressuposto de validade da coerência narrativa nas decisões judiciais[2], também se aproxima de Rorty, para quem a redescrição é a narração fragmentada de uma verdade que está condenada à parcialidade de quem a descreve.

Calvo sustenta que “um enunciado fático acaba sendo discursivamente coerente como resultado, também, do influxo de subsistemas de sentido como são a memória individual ou os imaginários sociais.” [3] Assim, para que se possa aprofundar o amplo espectro do conceito de coerência narrativa na decisão judicial e para que também seja possível colocá-lo à prova, faz-se necessário confrontá-lo com o conceito de consistência narrativa[4], uma vez que este busca identificar os elementos precedentes ao fato, situados na pré-compreensão de quem, depois, os narrará no processo judicial. E disse complexo processo se faz decisões, embora não se saiba, na maioria das vezes.

--------------

Fonte: Conjur - Alexandre Morais da Rosa e Paulo Ferrareze Filho

---------------
[1] GONZÁLEZ, José Calvo. O Direito Curvo. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2013.

[2]GONZÁLEZ, José Calvo. El discurso de los hechos. Editorial Tecnos: Madrid, 1993, p. 75-77.

[3] GONZÁLEZ, José Calvo. O Direito Curvo..., p. 38.

[4]Conforme GONZÁLEZ, José Calvo. O Direito Curvo..., p. 38, “[...] é claro que para a Teoria Narrativista do Direito, também no estudo das estruturas e estratégias narrativas sobres os fatos (e as normas), o problema da consistência narrativa é relevente, se talvez não for o primeiro que deveria ter sido posto.”