A advocacia está passando por mudanças no Reino Unido e a culpada é a crise econômica. Se de um lado o setor recebe ajuda constante do governo para superar as dificuldades financeiras, do outro, o mesmo governo passa de aliado a inimigo. Os cortes drásticos impostos na assistência judiciária — que, frise-se, é exercida por escritórios particulares — têm tornado a vida das bancas ainda mais difícil.
Em entrevista exclusiva concedida para a Consultor Jurídico, a presidente da Law Society of England and Wales — a Ordem dos Advogados britânica —, Lucy Scott-Moncrieff, contou que a crise tem feito os advogados trabalharem sob constante pressão. Os jurisdicionados também estão sendo afetados. Como na Inglaterra ninguém precisa contratar um advogado para ir à Justiça, Lucy avalia que o número de pessoas que vão aos tribunais sem ser assistidos por um defensor profissional vai aumentar bastante e, quem sabe, arrastar junto a eficiência da Justiça.
“Um relatório divulgado pelo governo mostra que mais erros são cometidos nos processos que tramitam sem o auxílio de um advogado”, conta a presidente. Ela fala com propriedade sobre assistência jurídica. Lucy traçou uma longa carreira em defesa dos carentes. Especializou-se em defender os direitos daqueles com problemas mentais, tenham eles condições ou não de pagar pelos serviços de um advogado.
Diferentemente do seu antecessor na entidade, o advogado John Wotton, Lucy não se mostra tão otimista com abertura do mercado jurídico para investimento externo. Ela aprova o surgimento das chamadas ABS (escritórios de advocacia com sócios que não são advogados), mas reluta em dizer que o novo modelo pode ser a saída para a advocacia britânica. “Acredito que cada escritório vai procurar o modelo mais conveniente para o seu negócio”, diz.
Lucy Scott-Moncrieff fundou seu próprio escritório, o Scott-Moncrieff and Associates LLP, em 1987. Ela é uma dos muitos advogados que têm apostado nas novas tecnologias como aliadas no oferecimento mais igualitário de assistência jurídica. Além das tradicionais reuniões com clientes, o escritório de Lucy também oferece auxílio jurídico por telefone e mesmo por e-mail. Em julho do ano passado, ela assumiu a Presidência da Law Society of England and Wales para um mandato de um ano.
Leia a entrevista:
ConJur — Não dá mais para negar que a crise econômica, que tem levado o governo britânico a fazer cortes drásticos na assistência jurídica, está afetando os escritórios de advocacia. Quem está sofrendo mais: as bancas pequenas ou as grandes?
Lucy Scott-Moncrieff — Os desafios enfrentados pelas bancas pequenas e grandes são diferentes, mas eu acho importante lembrar que não é apenas o tamanho do escritório que conta. Já tem muito escritório pequeno se envolvendo em transações internacionais, por exemplo. Muitos escritórios já foram severamente afetados pela difícil situação econômica pela qual estamos passamos. Mesmo com toda a habilidade dos advogados de se adaptar às mudanças, os escritórios têm sofrido muita pressão.
ConJur — A senhora acredita que o novo regime de ABS, que permite que os escritórios recebam investimento externo, vá ajudar a impulsionar o mercado jurídico?
Lucy Scott-Moncrieff — A abertura para investimento externo cria oportunidades de expandir os serviços prestados como, por exemplo, aumentar o horário de funcionamento, introduzir novas práticas de atendimento ao cliente e mesmo fornecer novos serviços. Mas é claro que esses mesmos avanços podem ser alcançados pelos escritórios que se mantiverem dentro do padrão tradicional, sem se transformar em uma ABS. Eu acredito que cada escritório vai procurar o modelo mais conveniente para o seu negócio. É difícil prever qual modelo será o mais adotado pelas bancas.
ConJur — Uma das apostas do governo britânico para impulsionar a advocacia é atrair negócios internacionais para o foro inglês. O Reino Unido também vem lutando para que o mercado jurídico de países em desenvolvimento se abra para os advogados britânicos. A senhora acha possível globalizar a advocacia? Qual é o papel dos advogados no mundo globalizado?
Lucy Scott-Moncrieff — O comércio internacional tem se tornado cada vez mais importante para muitos países. As empresas precisam de suporte jurídico quando saem à procura de oportunidades em mercados estrangeiros. Estreitar os laços entre as jurisdições é um passo crucial para apoiar o comércio internacional. Fica mais fácil para as empresas formar parcerias internacionais ou mesmo exportar e importar quando os advogados nos diferentes países podem trabalhar juntos.
ConJur — Qual é a posição do sistema jurídico do Reino Unido nesse mercado globalizado?
Lucy Scott-Moncrieff — O Reino Unido tem uma excelente reputação internacional de Justiça correta, feita por juízes imparciais e independentes. A jurisdição da Inglaterra e do País de Gales é frequentemente a primeira escolha para a resolução de disputas internacionais.
ConJur — No ano passado, a Law Society firmou uma parceria com a Ordem dos Advogados do Brasil. Como é essa parceria? Ela vai ajudar advogados do Reino Unido a atuar em solo brasileiro e vice-versa?
Lucy Scott-Moncrieff – Com a parceria, a OAB e a Law Society vão desenvolver uma série de atividades juntas, como treinamento para seus associados e programas de intercâmbios para advogados recém-formados. O volume de negócios entre Reino Unido e o Brasil tem aumentado. Nós estamos animados tanto em ajudar novos membros a desenvolver negócios no Brasil como em trabalhar com advogados brasileiros que venham para a Inglaterra.
ConJur — Mesmo com a crise, a profissão de advogado ainda é uma boa opção para os jovens?
Lucy Scott-Moncrieff — Mesmo com a crise econômica, a área jurídica ainda é uma carreira atraente. Prova disso é que, só no ano passado, mais de 6 mil novos advogados entraram no mercado de trabalho da Inglaterra e do País de Gales.
ConJur — Com os cortes na assistência judiciária, muitas pessoas não vão mais poder contar com a ajuda de um advogado para ir aos tribunais. A senhora acredita que essas pessoas vão conseguir defender os seus direitos tão bem quanto se estivessem assistidas por um advogado?
Lucy Scott-Moncrieff — Com os cortes, sem dúvida que o número de pessoas que se auto-representam nas cortes vai aumentar. Eu acho que isso é motivo de preocupação sim. Um relatório já divulgado pelo governo mostra que mais erros são cometidos nos processos que tramitam sem o auxílio de um advogado. Também sabemos que, sem um advogado, o trabalho dos juízes e dos seus assessores é maior e, consequentemente, aumenta a demora dos julgamentos.
ConJur — No ano passado, a Corte Europeia de Direitos Humanos decidiu que a comunicação entre um advogado e seu cliente nem sempre é confidencial. Na França, os advogados são obrigados por lei a informar às autoridades se eles ficarem sabendo que seu cliente está envolvido em lavagem de dinheiro. Faz parte da função do advogado colaborar com o combate ao crime?
Lucy Scott-Moncrieff — Sim. Lavagem de dinheiro é um problema social muito sério. Acho errado dizer que os advogados não têm obrigação nenhuma de ajudar a combatê-la. Na Inglaterra e no País de Gales, os advogados também têm o dever de informar as autoridades de transações suspeitas conduzidas por seus clientes. A minha única objeção é que a maneira como esse dever está desenhado é oneroso e não ajuda a combater a lavagem de dinheiro. É preciso pensar outros meios para atingir essa mesma meta.
ConJur — Há algum tempo, o governo britânico disse que o marketing jurídico pode ser um dos responsáveis pelo que no Brasil nós chamamos de indústria das indenizações. A senhora concorda?
Lucy Scott-Moncrieff — O objetivo do governo de combater pedidos de indenização fraudulentos e exagerados é sensato, mas eu não acredito que muitos casos sem sentido cheguem aos tribunais. Nos pedidos de indenização, os advogados trabalham no esquema no win, no fee, o que quer dizer que não ganham nada se o pedido fracassar. Eles não têm, portanto, qualquer incentivo para levar à Justiça processos fadados ao fracasso. A publicidade feita pelos advogados é uma iniciativa boa, pois ajuda a alertar as pessoas sobre os seus direitos. A minha única preocupação é sobre os anúncios feitos por recrutadores de clientes, que não estão sujeitos aos mesmos limites éticos que os advogados e podem acabar atraindo casos que não têm chances de sucesso.
ConJur — Em março deste ano, o Parlamento britânico aprovou projeto de lei que amplia os casos de julgamento secreto, dos quais nem as partes podem participar. Qual a opinião da senhora sobre os julgamentos sigilosos?
Lucy Scott-Moncrieff — Os julgamentos sigilosos podem minar fatalmente o justo funcionamento da Justiça cível, uma vez que acabam com um princípio fundamental da Justiça, que é o direito das partes de tomar
conhecimento e questionarem todas as provas apresentadas ao tribunal.
Fonte: Conjur