Estudo mostra de que forma as lições com instrumentos moldam cérebro dos mais jovens
RIO - Uma das características típicas dos seres humanos — dentre aquelas que nos diferenciam dos demais animais — é a nossa capacidade praticamente única na natureza de criar, tocar e apreciar música. Dos esquimós, no Ártico, passando por habitantes dos desertos africanos, até tribos indígenas no meio da floresta Amazônica, homens são capazes de compor, tocar, cantar e dançar (bem, quase todos, pelo menos). Mas, como costuma dizer o neurocientista Oliver Sacks (autor de “Alucinações musicais”), a música não é apenas uma forma pela qual nos conectamos e criamos laços. Ela, literalmente, molda os nossos cérebros. Um novo estudo divulgado ontem não só reforça a máxima de Sacks como constata que a música é também capaz de aprimorar as nossas funções cognitivas.
De acordo com o novo trabalho, crianças que recebem aulas de música regularmente ampliam suas capacidades cerebrais pelo resto de sua vida adulta. A pesquisa publicada na “PLOS One” mostrou que crianças que recebem aulas particulares de música por pelo menos dois anos revelam maior atividade cerebral nas áreas associadas às suas funções executivas — ou seja, os processos cognitivos que permitem aos seres humanos processar e reter informações, resolver problemas e regular comportamentos.
— Como o funcionamento executivo do cérebro é um forte indicador das conquistas acadêmicas que as pessoas podem vir a ter (mais ainda que o tradicional QI), acreditamos que nossas descobertas têm implicações educacionais importantes — afirmou a principal autora do estudo, Nadine Gaab, do Laboratório de Neurociência Cognitiva do Hospital Infantil de Boston (EUA). — Enquanto muitas escolas estão cortando os programas de música e gastando mais tempo e dinheiro em testes preparatórios, nossas descobertas sugerem que o aprendizado musical pode, de fato, ajudar as crianças a alcançarem metas acadêmicas mais ambiciosas.
Atividade cerebral cresce
O novo estudo comparou 15 crianças de 9 a 12 anos que tinham aula de música a um grupo de 12, da mesma idade, sem nenhum treinamento. Além disso, foram estudados dois grupos de adultos, divididos entre músicos e não músicos. Os pesquisadores observaram diversos fatores demográficos, como educação, status profissional e QI e descobriram que as funções cognitivas (medidas por uma bateria de testes) e a atividade cerebral (registrada por meio de imagens de ressonância magnética funcional) eram melhores tanto em adultos quanto em crianças que tocavam algum instrumento.
— O estudo dos efeitos da música no cérebro já tem mais de dez anos, mas poucos grupos se dedicam a ele — constata o neurocientista Jorge Moll, do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino, no Rio de Janeiro. — É difícil saber por que os padrões sonoros são tão engajantes, já que não dependemos da música para sobreviver. Mas há várias evidências de que a música modula fortemente o aprendizado, estimulando a capacidade cognitiva e a relação interpessoal. A percepção de um ritmo influencia o sistema de atenção, induz ao movimento e otimiza o metabolismo e a performance física.
A explicação, segundo Oliver Sacks, um dos maiores especialistas mundiais no tema, está no fato de a música ser uma linguagem tão poderosa quanto a da comunicação verbal: “A atividade musical envolve várias funções do cérebro (emocional, motora e cognitiva), muito mais do que as que usamos para o outro grande feito humano, a linguagem. Por isso, a música é uma forma tão eficaz de nos lembrarmos e de aprender. Não é por acaso que ensinamos às crianças pequenas com rimas e músicas.”
A mesma percepção tem a professora e doutora em Educação Andrea Ramal, autora de diversos livros sobre aprendizado.
— Aulas de música ajudam no aprendizado da criança ao longo da vida por diversas razões. Tanto assim que a música se tornou disciplina obrigatória nas escolas — constatou Andrea. — Além disso, a participação num conjunto musical desenvolve a disciplina na criança, a capacidade de trabalhar em grupo e outras competências que serão necessárias até no mercado de trabalho. Também trabalha habilidades motoras e aumenta a concentração, que é essencial para o aprendizado.
Mais música, menos erros
O novo trabalho vem se somar a um grupo cada vez maior de estudos que revelam a importante relação entre música e cérebro. Uma pesquisa divulgada em novembro do ano passado, por exemplo, revelara que os adultos que tocaram instrumentos quando eram crianças (mas não tocavam há décadas) tinha respostas cerebrais mais ágeis. Outro estudo, de setembro de 2013, mostrou que indivíduos que sabiam tocar um instrumento também eram capazes de detectar erros de forma mais rápida e acurada do que os não músicos.
Um dos mais importantes trabalhos sobre o tema foi publicado também na “PLoS ONE”, em fevereiro de 2008. Nele, cientistas da Johns Hopkins revelaram que, quando músicos de jazz tocam de improviso (uma característica frequente desse tipo de música), seus cérebros “desligam” áreas ligadas à autocensura e à inibição e ativam aquelas que deixam fluir a autoexpressão. Ou seja, ao desligarem a inibição, eles davam espaço à criatividade e acabavam conseguindo tocar uma música inédita.
Por todas essas características, especialistas acreditam que a música possa servir também como mecanismo terapêutico. Como cita o próprio Oliver Sacks, “a música penetra tão profundamente em nosso sistema nervoso que, mesmo em pessoas que sofrem de devastadoras doenças neurológicas, ela é, comumente, a última coisa que perdem.”
— Nossos resultados têm implicações também para crianças e adultos que lutam com problemas nessas funções do cérebro, como hiperatividade ou demência — afirmou Nadine. — Novos estudos determinarão se a música pode ser usada como ferramenta de intervenção terapêutica.
Fonte: O Globo