A separação de funções é um imperativo do Estado Democrático de Direito. É uma técnica engenhosa de contenção do poder, de modo a evitar abusos. Cada função tem uma organização própria, separada em corpos administrativos, para que “o poder controle o poder”. Aquele que concentra poderes, sem freios nem contrapesos, tende irresistivelmente a abusar dele.
O devido processo legal é também um modo de contenção do poder. Inspirado para colocar limite e regular o modo do exercício do poder do rei sobre a liberdade dos súditos, na Inglaterra do início do século XIII, espraiou-se pelo mundo e desenvolveu-se sob a égide da segurança e da preservação da liberdade e dos bens dos cidadãos. A privação da liberdade e dos bens deve obedecer, rigorosamente, ao que se apure em processo. Somente quando as provas produzidas não deixem margem à dúvida, podem embasar uma decisão condenatória do Judiciário.
O exercício de parcela de autoridade, no Estado Democrático de Direito, faz-se com respeito a esses princípios e regras conquistadas árdua e em lutas históricas pela cidadania. São garantias de civilidade, doa a quem doer!
Assegura-se a defesa amplamente, para que o cidadão participe ativamente da formação da convicção do juiz. Isso, em alguma medida, evita o abuso e garante que a decisão judicial aplique o direito a todos, sem discriminações de qualquer ordem.
Para que isso possa acontecer, todavia, os juízes têm que ser imparciais. Não têm neutralidade, porque são seres humanos constituídos histórica e socialmente. Nessa condição, alimentam valores e fazem opções quanto a algum modo de vida. A par disso, porém, assumem a grave missão, atribuída constitucionalmente em um momento de ampla mobilização da sociedade civil organizada, de zelar pelo Direito e pela Justiça. Para isso, devem guardar eqüidistância dos interesses em conflito.
No desiderato de efetividade dessas garantias e fortalecimento dessa cultura de civilidade, de zelo pelo ideal de imparcialidade, ao Judiciário são garantidas a inamovibilidade, a livre convicção motivada e a vitaliciedade. Longe de se constituírem em privilégios dos juízes, essas garantias têm como destinatário o cidadão. Essas prerrogativas são a garantia constitucional de respeito à dignidade humana. Independe, por isso, de valores, condutas, etnia e orientação sexual da pessoa envolvida.
Todos os cidadãos devem ser considerados, em sua dignidade humana, como iguais, não obstante as diferenças e desigualdades. Não cabem rótulos nem estereótipos discriminatórios, sob pena de se converter o servidor público em algoz, o investigante em perseguidor. Hannah Arendt nos lembra, na obra Origens do Totalitarismo, que os perseguidores nazistas eram bons pais de família, bons burgueses. Arvoraram-se, no entanto, em justiceiros. Legaram-nos a lição de como não devemos fazer...
A outros servidores do Estado, como os membros do Ministério Público e membros dos Tribunais de Contas, dada a importância social de suas funções, são estendidas as garantias próprias da Magistratura. Isso assegura uma atuação livre de influências e ingerências, possibilitando a independência funcional.
Busca-se afastar a influência perniciosa dos poderosos de plantão e dos governantes passageiros. Eximem-se os Magistrados da exigência de popularidade, de agradar a opinião pública quase sempre mobilizada pela grande mídia televisiva. Mídia manipulada pelo poder econômico que influencia o poder político.
Tenho defendido, já há algum tempo, uma medida que poderia aprofundar a democracia: a extensão dessas garantias à Polícia Judiciária. A importante missão constitucional de investigação de delitos está mais próxima, funcionalmente, do Judiciário e do Ministério Público.
A investigação se faz no inquérito, sigilosamente (ou pelo menos assim deveria ser), e essa peça é enviada ao Ministério Público, para que seja proposta ação penal contra o indiciado. Somente depois de recebida a denúncia do Ministério Público, inicia-se o processo e pode-se falar de acusado, porque já houve juízo prévio de admissibilidade. Evitam-se, com isso, as malfadadas perseguições. Tolhe-se o abuso. Aperfeiçoam-se as garantias constitucionais.
Ao Judiciário incumbe fazer o juízo de condenação ou absolvição, após regular processo. Atua, no processo, pautado pelas garantias constitucionais, independente dos clamores populares, dos impropérios de supostos “justiceiros”, da pressão da mídia. Atua desse modo, porque é independente. É independente, porque é imparcial. É imparcial, porque as garantias tornam viável a eqüidistância.
Se fossem estendidas essas garantias à Polícia Judiciária, poderiam ser afastadas possíveis interferências dos governantes passageiros, que precisam acudir a demandas eleitoreiras. E tantas vezes, para disfarçar a corrupção de alguns governantes, a Polícia Judiciária é chamada a atuar sob as luzes da mídia, violando o sigilo da investigação, prejudicando a intimidade de supostos “criminosos”. Supostos porque não houve ainda essa comprovação em processos judiciais.
Atente-se para a advertência: ainda que fossem estendidas as garantias à Polícia Judiciária, não teriam seus membros isenção para julgamentos dos delitos. Não é possível investigar e, ao mesmo tempo, julgar. Isso porque quem promove a investigação apaixona-se pela causa. Assume posição que compromete a isenção necessária no ato de julgar. Corpos separados, exatamente para contenção de possíveis abusos. Em uma palavra: o investigador não tem imparcialidade.
Quando de possíveis excessos da Polícia Federal, em tempos recentes, membros do Judiciário local, embora não concordassem com a atuação pirotécnica, nada escreveram nem se manifestaram na mídia. Isso apenas porque guardaram o respeito e a consideração àqueles membros da corporação que lutam por independência e esforçam-se por atuar de modo independente, apesar da subordinação administrativa ao governante da hora e das influências que alguns insistem até em negar.
Guardemos todos, portanto, nossas diferenças, respeitando o cidadão em sua dignidade, ainda quando o próprio cidadão não tem auto-respeito nem respeita os outros. Isso se chama civilidade e é algo que não se compra nem se aprende em definitivo na escola, nem mesmo em faculdades. É um bem coletivo que se constrói no culto do respeito ao outro e na elevada compreensão de sua qualidade essencial de ser humano.
O pressuposto da civilidade e do respeito é indispensável para os que querem conviver em uma democracia. É indeclinável para os que exercem parcela de autoridade. Não cabe a qualquer cidadão o epíteto de “deus”, nem o de “bandido”, muito menos o de “monstro”. São todos seres humanos livres. Diria Kant: livres para escolher e assumir as conseqüências de seus atos... Mas ainda assim, na mais completa desgraça da delinqüência e do crime, simplesmente ser humano, com todas as possibilidades e contingências que essa condição significa...
Richardson Xavier Brant – Juiz de Direito e Professor Universitário