* Juiz Nelson Missias de Morais

Houve um tempo em que um poder tiranizava os outros, não havia democracia nem direito. Era um Estado de exceção: um só poder sobre todos os outros, sobre as instituições, a sociedade e, principalmente, o cidadão. Este nada representava e nem era representado. Não se tinha liberdade de expressão, direito de ir e vir, de escolha dos representantes, de fazer oposição, de discutir as leis ou a Constituição, de julgar com liberdade e exercer o direito de defesa. É uma página, triste e cruel, mas virada de nossa história. Vade retro!

Vivemos hoje o direito à ampla defesa e ao contraditório. Estamos melhor? Sim, mas não basta. A democracia é um estado de evolução, no qual o cidadão busca a si mesmo e passa a pertencer a uma instituição até ver-se nos poderes constituídos. Cidadão e povo civilizados formam, com efeito, uma nação civilizada.
Na representação republicana desse Estado, o Executivo administra os recursos e faz deles benefício social; o Legislativo o fiscaliza e regula suas ações; e o Judiciário, sob a égide da legalidade, corrige e equilibra a correlação de forças, restabelecendo o direito. O juiz é o garantidor do Estado democrático de direito. Aliás, uma profissão de fé. Para isso, ele precisa ter a liberdade de julgar conforme, principalmente, sua consciência, moldada na lei e no contexto social do qual faz parte.

Esse é um posicionamento que deve ser respeitado; quem dele divergir, deve ter também ampla liberdade de recorrer à instância superior. Se determinada matéria é ambígua, com certeza, o arcabouço legal não está posto satisfatoriamente, o que é, constitucionalmente, prerrogativa de outro Poder. Por isso é que se busca no Judiciário a prestação jurisdicional, que é monopólio do Estado – de modo imparcial, mediante a aplicação racional de normas gerais –, exatamente para se evitar excessos. O magistrado não pode ser aviltado na sua liberdade e direito de julgar, sob pena de ferir a Constituição. Onde isso ocorrer, a entidade representativa da classe deve agir em defesa dessa prerrogativa.

Não são gratuitos os consecutivos ataques ao Judiciário. Afinal, ele é a principal barreira contra a barbárie, o crime organizado, a devastação do meio ambiente, a ganância estatal, além de ampliar as conquistas da cidadania. O Judiciário é criticado especialmente por não julgar com a mesma pressa daqueles que se esquecem que o esforço e o compromisso são pelo direito constitucional de defesa e de ser presumidamente inocente aquele que se submete a julgamento. Esquecer isso é voltar ao paredão daquelas páginas viradas do estado de exceção. Quando um poder é colocado na berlinda, todas as instituições democráticas correm risco. É, no mínimo, inquietante a presença de seis Poderes na República: três constituídos e mais três de fato. Esses, aos olhos do povo, sobrepondo e execrando aqueles.

O magistrado julga com imparcialidade, respeitando o direito ao contraditório, à ampla defesa e os direitos individuais, base fundamental da democracia. Enquanto cidadão, ele deve ter também garantido o direito de ser julgado. Se acusado, não deve ser execrado, nem condenado antes mesmo de se defender.
Se um juiz erra, deve responder pelo seu erro com os mesmos direitos de defesa que até os criminosos confessos têm. Tão triste e cruel quanto o Estado de exceção são os juízos equivocados, muitas vezes, trombeteados em 30 segundos de manchetes. O tempo do direito é outro.

Presumir que um juiz deixa de ser honesto e probo pelo fato de apenas conversar com advogados, ou de conviver com eles, é ignorar sua condição humana e profissional. É desconhecer a classe, seu trabalho e as dificuldades. Atacam a morosidade do Judiciário como se fosse de sua natureza ou atestado de descompromisso, mas se esquecem das leis mal formuladas, do rito processual recheado de manobras e das armações de advogados.

Seja qual for a instância, da primeira à última, o Judiciário sempre foi e é o guardião maior das leis e do direito do cidadão, apesar dos interesses políticos e econômicos que gravitam em torno de sua atuação. Acima do corporativismo, acreditamos nos magistrados e nos cidadãos que eles também o são. Aqueles que falharam precisam responder pelos seus atos, mas devem ter a oportunidade de provar que a nossa crença neles e na democracia não foi em vão.

* Presidente da Amagis

Artigo publicado no Jornal O Tempo do dia 7 de junho de 2007