Nesta quadra importante do desenvolvimento político-institucional do Poder Judiciário, vários temas vêm ocupando os noticiários, mas muito pouco se tem discutido sobre princípios norteadores das relações internas do Poder Judiciário. Pouco ou nada se discute sobre a vigência da lamentável legislação, de ilegítima concepção, que rege a vida funcional dos magistrados, sua inadequação principiológica em face da Constituição de 1988 ou a falta de democracia interna resultante.
Dispomos de uma Loman que desconhece os órgãos do Poder Judiciário em sua composição atualizada e ignora a existência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), não fixando limites ao mesmo (o CNJ fixa seus próprios limites). Tão grave ou mais é o fato dessa mesma legislação contemplar um relacionamento vertical entre tribunais e instâncias judiciárias, sem acesso de conhecimento ou contribuição do juiz às decisões administrativas mais importantes, que impõe a prevalência da antiguidade nos tribunais como critério de disputa de funções administrativas, em detrimento de outros critérios de caráter meritocrático próprios da vida republicana democrática.
Sessões secretas, não recepcionadas e inteiramente incompatíveis com o regime constitucional vigente, ainda são previstas para procedimento de perda do cargo de juiz; há expressa previsão de iniciativa probatória ao relator, que terá a faculdade de ordenar provas à conveniência de suas convicções (teoricamente, poderia tornar-se, simultaneamente, julgador e acusador ou julgador e defensor do magistrado cujo procedimento de perda de cargo relata, suprindo falhas da acusação ou da defesa, em flagrante violação do cânone da imparcialidade); a sessão de julgamento e o escrutínio têm previsão de realização em segredo, nada que possa sobreviver a uma análise superficial de um iniciante na graduação em direito.
Dentre outras tantas ilegitimidades e desatualizações, confrontando o juiz na sua faina diária de assegurar a democracia a todos, encontram-se dispositivos que vedam que os mesmos princípios sejam praticados no âmbito do acesso a funções administrativas de comando do Judiciário. Para concorrer às funções administrativas da presidência, de uma vice-presidência, de membro do órgão especial ou de corregedor-geral, todas com enorme influência nos destinos do Judiciário ou dos magistrados, não há necessidade de qualquer forma de consulta à primeira instância, de declarar aos juízes planos de enfrentamento das questões mais tormentosas que comprometam o desempenho da função judicante ou que atinjam o cotidiano de sua vida social e até mesmo familiar.
É certo que muitos dos anacronismos técnicos e ideológicos da Loman foram superados pelos fatos e mesmo por resoluções emanadas do CNJ, tal como ocorre com o dever imposto aos tribunais de elaboração de planejamento estratégico ou ainda pela flexibilização da composição do órgão especial, impondo que fração dos componentes seja eleita. Ainda assim, diversos dispositivos carecem de interpretação que os compatibilize com o direito vigente e inúmeros outros não foram recepcionados ou foram revogados, transformando dita lei em documento irreconhecível para a finalidade de disciplinar a magistratura brasileira.
Urge o debate sobre a democratização das relações internas no Poder Judiciário, se estamos contentes com o modelo vigente ou necessitamos alterações (mais ou menos profundas) no ordenamento, o que isto importa em termos constitucionais ou legais. Para tanto, algumas perguntas devem ser formuladas, ainda que a alguém pareçam inconvenientes ou desagradáveis: somente os desembargadores mais antigos do tribunal devem ter o direito de candidatar-se à presidência ou vice-presidências?; o colégio eleitoral deve ser composto apenas por desembargadores?; a “politização” da magistratura, ampliado o colégio eleitoral à primeira instância, seria um benefício ou um malefício?; um corregedor-geral, eleito com votos da primeira instância, estaria inibido de atuar em face de conduta dolosa de algum juiz?; a magistratura deve assegurar democracia à cidadania sem preocupar-se com o tema no Poder Judiciário?
Todas estas indagações, e outras tantas, aguardam respostas que o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal hão de dar, seja a partir da iniciativa de anteprojetos de lei como de propostas de emendas à Constituição, caso se chegue à conclusão da necessidade de levar à magistratura o sabor de democracia que a cidadania conhece há mais de vinte anos, desde a eleição de Tancredo Neves.
(*) Presidente da Amagis