O projeto de lei (PL) 3.792/15, que cria o Depoimento Especial, um sistema de garantias para crianças e adolescentes que sejam testemunhas ou vítimas de violência, foi sancionado no dia 4 de abril pelo presidente Michel Temer. Com isso, os Tribunais de Justiça de todo o País terão um ano para se adaptarem à legislação e criar salas especiais para colher os depoimentos.
De autoria da deputada Maria do Rosário (PT-RS), o PL assegura à criança e ao adolescente vítima de violência o direito de ser ouvido em local apropriado e acolhedor, com infraestrutura e espaços físicos que garantam sua privacidade.
Esses menores não terão contato, nem mesmo visual, com o acusado. As vítimas passam a ser acompanhados por profissionais especializados em saúde, assistência social e segurança pública. Além disso, o poder público poderá criar programas e serviços relacionados ao atendimento integral às vítimas e testemunhas, assim como delegacias e varas especializadas.
A iniciativa, que passou a ser lei, já vem sendo adotada desde 2009 pela Comarca de Muzambinho, no Sul de Minas Gerais, a única do Estado a utilizar esse método. De acordo com o juiz Flávio Umberto Moura Schmidt, o projeto é inspirado no trabalho iniciado na Justiça do Rio Grande do Sul, em 2003.
A comarca fez uma parceria com a Casa Lar, entidade que abriga menores vítimas de violência na cidade, para que as crianças e os adolescentes sejam ouvidos nas dependências da instituição, sem que haja interferência com os abrigados. A expectativa é que a medida seja colocada em prática nos próximos 60 dias.
A assistente social do TJMG que atua em Muzambinho, Elisandra Mirian Medici Neto, informou que o local é equipado com um moderno sistema de gravação de áudio e vídeo, que registra o depoimento, enquanto advogado, juiz e promotor acompanham a declaração em outra sala.
Durante todo o processo, a criança é acompanhada por um psicólogo ou assistente social. A sala tem as paredes pintadas com motivos infantis e brinquedos para que o ambiente seja o mais acolhedor possível. “Nosso objetivo é não vitimar e traumatizar ainda mais a criança. Por isso, utilizamos uma linguagem adequada e damos a ela todo o suporte emocional para que se sinta à vontade naquela situação”, diz a profissional.
Direitos preservados
De acordo com o juiz Flávio Schmidt, o modelo que a comarca vai adotar é o mesmo utilizado pelo Childhood Brasil, braço da World Childhood Foundation, fundada pela rainha Sílvia, da Suécia, e apoiado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). A metodologia prevê que a criança seja o menos invadida emocionalmente durante o processo. Os depoimentos ocorrem em um ambiente acolhedor e com recursos de gravação em vídeo que servem como prova durante o processo de julgamento.
Essas entrevistas fornecem material investigativo para o Tribunal de Justiça e evitam que a criança tenha que testemunhar ou repetir o depoimento diversas vezes e na presença do réu. Desde 2010, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) indica esta metodologia como referência para os Tribunais do País.
Resistência
Flávio Schmidt contou que já enfrentou forte resistência por parte de conselhos regionais de classe e outras entidades para o uso do depoimento especial. De 2009 até hoje, o método foi empregado em apenas seis processos na comarca de Muzambinho. Agora, com a publicação da lei e com a atuação de profissionais como assistentes sociais e psicólogos, o depoimento especial deve ser adotado em um número muito maior de casos.
Segundo o magistrado, além de preservar a criança, a metodologia garante a segurança jurídica no processo. “O magistrado obtém com esse método a certeza absoluta da verdade porque não há a intervenção da máscara no depoimento especial”, diz ele.
“Em um depoimento realizado em uma unidade judiciária, você consegue perceber que a verdade da criança é desvirtuada ou pela vergonha de falar daquela situação ou pelo reflexo do ambiente formal. Em um ambiente lúdico, a verdade aparece naturalmente. Temos a obrigação de evitar mais danos a essa vítima”, afirmou o magistrado.
Polos regionais
As expectativas para que o depoimento especial seja colocado rapidamente em prática nas comarcas mineiras são as melhores possíveis. Para facilitar a implantação do método, Flávio Schmidt sugere a criação de polos regionais em todo o Estado que concentrariam a estrutura física necessária para a realização dos depoimentos.
Por meio de convênios firmados com entidades como conselhos regionais, ONGs e Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), municípios maiores abrigariam as salas onde seriam colhidos os depoimentos, e esses locais seriam usados por comarcas menores.
Segundo o magistrado, o presidente do TJMG, desembargador Herbert Carneiro, já demonstrou que dará total apoio ao emprego do depoimento especial. “Pessoas que tenham sensibilidade e sentimento de compaixão vão apoiar essa medida. O presidente do Tribunal não vai medir esforços para levar o método às demais comarcas. A Magistratura precisa de líderes assim”, afirma.
Pioneirismo
O desembargador José Antônio Daltoé Cezar, hoje na 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), pode ser considerado o pioneiro do Depoimento Especial no país. Há 14 anos, o magistrado iniciou o então chamado Depoimento Sem Dano quando estava no 2º Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre.
O magistrado conta que a iniciativa partiu de sua própria experiência, ouvindo desde o início de sua carreira, como juiz substituto na Comarca de Santa Maria (RS), em 1988, crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, na forma tradicional.
“Em 2002, em um processo que um adolescente era acusado de praticar violência sexual contra uma menina de seis ou sete anos, não me lembro bem, ela estava muito inibida, desconfortável, triste com aquela situação. Disse então que nunca mais iria repetir aquilo. Então, tive a ideia de comprar uma câmera daquelas de segurança, e eu e o Promotor de Justiça João Barcelos de Souza Júnior (hoje desembargador) compramos um gravador K7 (o mais barato que encontramos), e fizemos a ligação por fio entre a sala de audiência e uma outra sala. Tecnicamente estávamos mal, mas muito melhor do que tomar o relato na forma tradicional. Em 2004, o TJ comprou equipamentos de melhor qualidade”, acrescentou o magistrado.
Ampliação
O Rio Grande do Sul já conta com 42 salas destinadas do depoimento especial. Esse número deve chegar a 70 até o final do ano. Segundo Daltoé Cezar, a grande diferença entre essa metodologia e o depoimento tradicional é a proteção da vítima. “Só olhando as duas maneiras para entender a diferença. A criança recebe em casa uma cartilha, mostrando de forma lúdica como será o seu depoimento”, explicou. A assistente social Marleci Hoffmeister, coordenadora da Infância e Juventude do TJRS, destacou que a diferença entre o depoimento especial e o tradicional está na humanização da escuta.
Segundo ela, na audiência tradicional, a criança ou adolescente não tem garantida uma escuta protegida, as perguntas são constrangedoras, inadequadas e feitas de forma direta. De acordo com Marleci, a estrutura física das salas de audiência, por si só, já desencoraja e amedronta o menor, interferindo consideravelmente no sucesso do procedimento.
Na visão da assistente social, a situação é oposta no que se refere às audiências realizadas pelo depoimento especial. Desde a intimação da criança até o momento de finalizar a escuta, tudo é feito de forma protegida, acolhedora, respeitando seu nível de desenvolvimento e seus sentimentos. “O menor tem sua voz valorizada e sua condição de sujeito de direito respeitada. Ele não é visto apenas como objeto de prova em um processo judicial. Está sendo escutado por um profissional capacitado em técnica de entrevista”, afirmou.
O que é o depoimento especial
O depoimento especial permite à criança e ao adolescente vítimas ou testemunhas de violência contar com um sistema de garantias nos inquéritos e no curso dos processos. A norma assegura aos menores o direito de serem ouvidos em local apropriado e acolhedor, com infraestrutura e espaços físicos que garantam sua privacidade. Esse depoimento será intermediado por profissionais especializados e será gravado em áudio e vídeo. A oitiva tramitará em segredo de justiça.