“O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno”[1] (Clarice Lispector)
A política do mata e esfola tem insuflado cada mais vozes a reclamar por uma forma sempre mais requintada e humilhante de apenar. A alteridade está esquecida e a esperança de que os homens da lei voltem suas consciências para a procura de um caminho que suplante o erro ao invés de entroná-lo como motivo de proscrição pública é tênue.
De todos os alvos já considerados agora se toca numa construção cujos alicerces podem ruir. Mas, lembrando Clarice, ainda existirá o terreno.
A magistratura não está mais na casa forte das garantias de plena independência. É tratada como apêndice de um Estado e que ganhou proteção demais para manter o posto independentemente do descontentamento que possam provocar suas decisões.
E aí está o problema e o caminho para sua vulnerabilidade: retira-se do magistrado a segurança nos moldes do lhe havia dado o constituinte de 88 e acresce-se a vaga expressão de que a perda do cargo pode resultar de qualquer comportamento que deponha contra o decoro esperado. Ora, mas qual o decoro esperado? A que ofende a parte mais poderosa e descontente com o pronunciamento judicial?
O magistrado agora terá de pensar (ou temer) mais antes de decidir, despachar ou simplesmente cumprimentar um transeunte na rua. Sabe-se lá possa ser esta a parte em favor de quem ele decidiu. Pior ainda, pode ser alguém de forte expressão política e daí, como consequência, daquele aceno de cabeça ou de um aperto de mão público deverá ele se dar por suspeito em toda causa na qual aquela pessoa cumprimentada (afinal de contas houve o cumprimento) tiver interesse direto, indireto, presumido etc.
Pelos efeitos da proposta, nem mais se precisa de recurso para reverter uma decisão judicial. Basta acusar o magistrado de ter pecado contra o decoro e retirar-lhe o cargo. Afinal de contas, porque esse absurdo de aposentadoria como pena máxima quando o juiz é acusado de algum ilícito? Pois bem, resolvido o problema, retire-se o prêmio e a casa já não é mais segura. Mas ainda resta o terreno e é precisamente dele que se deve cuidar.
Em resumo, a PEC 505/2010 pretende duas coisas muito simples: a primeira, impedir que a aposentadoria compulsória exista. Afinal de contas se o juiz ainda puder sobreviver depois de defenestrado ele não recebeu pena alguma! A segunda: garantir que a perda do cargo ocorra por qualquer razão, basta a alegação de que determinado agir é “procedimento incompatível com o decoro de suas funções”.
A pena máxima será a perda do cargo (ficando vedada a aposentadoria compulsória) e a perda do cargo pode se dar por qualquer motivo, não há como defini-lo. A redação final do §2º para o artigo 95 da Constituição Federal proposta pela emenda é magistral para suplantar a possibilidade de que qualquer magistrado encontre defesa possível se contra ele for levantada a falta de decoro para as funções.
O desejo da PEC 505/2010 é a magistratura autômata, sem coragem e sem condições para pensar livremente. E se o pensamento do juiz for indecoroso? A PEC 505/2010 bem traz a lembrança do ato institucional 01 de 1964 que suspendeu a garantia constitucional de estabilidade.[2] Não se precisará de um agir que se amolde a uma conduta certa e definida para que se condene à perda do cargo, basta qualquer agir que se possa pinçar e taxá-lo de indecoroso.
A magistratura pode salvar a si quando perceber que o terreno não pode ser apagado, vendido ou abalado sob o jugo de expressões abertas, forjadas e lançadas para que se permita nelas o cabimento de qualquer imputação. Agora, o crime é a falta de decoro. Ficou mais fácil, podem pensar alguns, mas para balançar a casa. O terreno ainda existe e basta que não se troque o terreno pela casa.
Tenhamos um exercício da alteridade. Como se condenar um juiz à perda do cargo sob o fundamento de que seu proceder foi incompatível com o decoro de suas funções? Sim, a magistratura não apenas pode e deve mostrar a impossibilidade formal da PEC como a sua insubsistência no âmbito da matéria. E mais, a magistratura precisa e pode se negar a decidir sob o jugo dos interesses meramente “demissionais” e apontar que, no mundo da razão, a expressão “procedimento incompatível com o decoro de suas funções” está coberta de uma ilegalidade fascista.
Quando diz a PEC em seu preambulo que altera dispositivos constitucionais para permitir a perda do cargo por magistrados “na forma e nos casos que especifica”, ela mente. Não há especificação alguma que seja possível aceitar a título de atitude delineada legalmente no termo “procedimento incompatível com o decoro de suas funções”. Claro, se vingar a proposta, dirão seus defensores que virão balizas legais e jurisprudenciais e nisso (vaticínio), mentirão também. Nenhuma regulamentação vai direcionar ou amenizar a imprecisão do conceito. Vai é criar-lhe mais chifres.
Aceitar que um magistrado só pode perder o cargo por decisão transitada em julgado e se ele já não tiver sofrido a pena de aposentação compulsória é uma garantia que não se pretende manter, porque senão o que poderia ameaçar um juiz que não apenas a sua consciência? O homem por trás do juiz pode, como qualquer pessoa, responder penalmente e civilmente por seus atos (desde que se amoldem, ou sejam amoldados, nalgum ilícito criminal ou civil), mas a magistratura não pode ser punida em seu lugar. A PEC 505/2010 não pretende assegurar que o agente empossado no cargo de juiz seja processado e julgado, mas sim que a magistratura não tenha condições de evitar o seu julgamento (e condenação) por quem o quiser fazer e pelo motivo que pretender.
A magistratura é antes de qualquer coisa a porta estreita pela qual a dignidade humana ainda encontra chance de se manter. Retirar dela a certeza de que seus atos não poderão redundar, ao bel prazer de quem se dispuser a fazer uma leitura tortuosa, na ameaça de retirada do cargo significa a busca do amesquinhamento de sua importância.
Ao contrário do que alegam, a vitaliciedade não é um prêmio aos maus, mas a possibilidade de que os bons se manifestem. Essa possibilidade não pode encontrar vírgulas ou locuções adversativas para o seu exercício.
[1] LISPECTOR, Clarice. “Mineirinho”. Senhor, n.40, jun./1962
[2] Art. 7º - Ficam suspensas, por seis (6) meses, as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade e estabilidade
Conceição Aparecida Giori é advogada, sócia do escritório Oliveira Campos & Giori Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 26 de julho de 2013