O Código de Defesa do Consumidor (CDC) completou no mês de setembro 25 anos em vigor. O desembargador Antônio Bispo, da 15ª Câmara Cível do TJMG, afirma nesta entrevista ao site da Amagis que, nesse um quarto de século de vigência do CDC, o aparato montado para a defesa do consumidor ainda não cumpre seu papel a contento, visto que a violação de direitos básicos ainda é observada em larga escala.
Para o desembargador, a dificuldade de se aplicar a Lei no país é um dos entraves para elevar o direito do consumidor a um patamar irreversível.
O Código Civil de 2002 e o Código de Defesa do Consumidor trouxeram inovações para a teoria clássica dos contratos?
O Código Civil de 2002 efetivou a mitigação da teoria contratual do Código Civil de 1916, que na doutrina, prática e na legislação, em especial a Lei 1.521/51 e Lei de Usura, já não permitia o puro positivismo do “pacta sunt servanda” importado do Código de Napoleão.
O Código de Defesa do Consumidor, cronologicamente anterior ao Código Civil, antecipou a moderna teoria contratual que hibernava no Congresso Nacional, no bojo do Código Civil aprovado em 2002.
Nesse contexto, a validade dos contratos deve antes de tudo submeter-se aos requisitos de validade inseridos no artigo 104 do Código Civil. Feito isso, submete-se avença aos limites da função social do contrato e se aquele resultado foi obtido com observância dos princípios objetivos da probidade e boa-fé.
Em se tratando de relação de consumo, a violação de outros direitos básicos do consumidor deve ser examinada antes de se atestar a higidez daquilo que foi contratado e de se declarar a sua plena eficácia.
Ao longo dos 25 anos de vigência do CDC, o consumidor tornou-se mais consciente de seus direitos e mais informado sobre o aparato estatal que foi montado para protegê-lo?
Pessoalmente, não concordo que o consumidor tenha se tornado mais consciente e informado dos seus direitos e ainda que este aparato estatal esteja exercendo o seu papel institucional a contento. Afirmo isso levando em consideração a quantidade de ofensas aos direitos do consumidor que se observa no descumprimento do dever de informação, refletido na propaganda enganosa veiculada nas diversas mídias de comunicação, bem como a quantidade de lesados que, pelo pequeno valor econômico, não se dispõem a se submeter à burocracia do aparato estatal a fim de serem ressarcidos.
No geral, qual tem sido a postura das empresas na solução de conflitos?
Pela ótica das empresas, posso afirmar da leitura dos litígios que me são submetidos que estas estão mais preocupadas em consolidar entendimento que lhes permitam as práticas abusivas ilegais e explicitamente contrárias às orientações da Lei do Código Civil e do Consumidor.
O Judiciário tem conseguido suprir as demandas de consumidores lesados em seus direitos? A legislação é facilmente aplicada no país?
Não. O Judiciário não consegue suprir as demandas dos consumidores que batem às suas portas, muito menos dos inúmeros lesados que ficam inibidos pela morosidade ou pelo custo-benefício de demandar.
Não é fácil aplicar a Lei no país. Embora o nosso sistema jurídico adote como direito constitucional fundamental o Princípio da Legalidade, o que se vê é uma autossubmissão do Poder Judiciário às orientações dos Tribunais Superiores que vêm equipando o poder econômico de argumentos que negam vigência à Lei. O próximo Código de Processo Civil é uma utopia justificada com esse argumento, que enseja o enfraquecimento da Lei, pelo abrandamento dado por sua interpretação ou pseudo-interpretação.
A AMB lançou recentemente a campanha “Não deixe o Judiciário parar”, que visa combater a cultura do litígio no Brasil e mobilizar alguns setores, como os de serviços, que são os grandes litigantes no país. Como as empresas e o Judiciário podem mudar essa realidade?
Pela relação dos grandes litigantes, pode-se perceber que essa realidade passa pela submissão das empresas às determinações legais. Enquanto esses grandes grupos não se submeterem ao império da Lei, estaremos fadados à paralisação, pelo volume de feitos ou pelo desestímulo de acesso ao Judiciário.
Nos países desenvolvidos, seja qual for o sistema jurídico, o respeito à Lei, por parte das companhias, corporações e fornecedores, é total. É política de empresa, o cliente tem sempre razão. Por aqui, vigora uma lógica diferente. O cliente nunca tem razão. Sempre que há reclamação, via de regra, o consumidor é taxado de esperto, querendo levar vantagem.
A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados aprovou, no início deste mês, alterações no Código de Defesa do Consumidor. Uma delas estabelece que a fase conciliatória e preventiva do processo de repactuação de dívidas compete concorrentemente aos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. Esse seria um método capaz de reduzir o número de ações que chegam ao Judiciário?
Não vejo nessas alterações maiores preocupações com o consumidor endividado, ainda que essa conciliação conte com a intervenção do Ministério Público, Defensoria Pública e Procons. A atuação deles deveria incidir na Conduta das Instituições Financeiras supostamente fiscalizadas pelo Banco Central. O artigo 8º da Lei número 7.492/86 diz que emprestar dinheiro sem taxa de juros prevista em lei é crime punido com pena de reclusão. E o que vemos é o Judiciário editando súmulas e enunciados para justificar uma lacuna propositalmente mantida a despeito do que dispõe a Constituição Federal a propósito do Sistema Financeiro Nacional.
O brasileiro recorre muito à Justiça?
Não. Considerando o tamanho da economia do país, a variedade de contratos celebrados para movimentar essa economia, é irrisório o número de contratantes que se socorrem ao Judiciário. Isso sem contar a questão tributária que coloca o Governo na conta de grandes litigantes.
A legislação brasileira está preparada para enfrentar as crescentes ações envolvendo o comércio eletrônico?
Sim. O que diferencia o comércio eletrônico do comércio tradicional é o meio pelo qual o contrato se formaliza. Essas transações eletrônicas estão sujeitas às mesmas regras do comércio tradicional, que são acrescidas das particularidades legais impostas às vendas fora dos estabelecimentos, posto que a escolha do objeto é limitada. Creio que a prova do negócio no caso do comércio eletrônico é mais fácil, já que toda documentação referente à transação poderá ser armazenada eletronicamente.
Há dispositivos no CDC que poderiam ser aprimorados e até criados? Por exemplo: podemos avançar na proteção do consumidor ao telemarketing abusivo?
Seriam bem-vindos, mas, pelo meu ponto de vista, esses dispositivos são desnecessários. O exemplo citado pode perfeitamente ser coibido por medidas coletivas das quais o Ministério Público, Defensoria e Associações são legitimados ativamente.
Quais são os principais avanços observados ao longo desses 25 anos de aplicação do CDC?
Os principais avanços que observo ao longo desses 25 anos de vigência do CDC são o crescimento da consciência do fundamental direito da cidadania ínsito nos incisos XXXIV e XXXXVI da Constituição Federal e o fato de que o direito fundamental assegurado no inciso XXXII da Constituição Federal não se tornou letra morta. É oportuno salientar que os objetivos fundamentais da nossa República (artigo 3º da CF) não se efetivam sem a eficácia do Código de Defesa do Consumidor.