O desembargador Bruno Terra, ex-presidente da Amagis, participou de solenidade em homenagem a Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, realizada no dia 19 de abril, na Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro. O magistrado representou a Amagis e o Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, do qual é membro. O evento, realizado pela Marinha do Brasil, marca a memória do líder da Inconfidência Mineira no local onde ficou encarcerado por mais de dois anos antes de ser enforcado.

Durante o ato simbólico, foi afixada uma placa pelo Instituto Histórico no local que abrigou a cela de Tiradentes, em um gesto de preservação da memória nacional. O desembargador Bruno Terra foi o orador da cerimônia, que reuniu autoridades civis e militares, historiadores e representantes da sociedade.

Em seu discurso, o magistrado refletiu sobre a construção da história, o papel da ideologia e a importância de Tiradentes. Bruno Terra falou sobre a complexidade da narrativa histórica e a importância de se manter viva a lembrança de personagens que transcendem seu tempo e inspiram gerações. “A história de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, é controvertida, como controvertidas são as histórias das pessoas que marcaram época pela defesa de ideais que transcendiam o indivíduo e pequenas coletividades para abranger nações e civilizações”, afirmou.

Segundo Bruno Terra, a verdade nem sempre está presente no relato histórico, que muitas vezes pode ser contaminado por interesses de poder e ideologias momentâneas.  “Os eventos são tão desconformes à realidade, embora com pretensão de verdade, que hoje seriam rotulados como “fake news” ou, na melhor das hipóteses, como ficção de má qualidade. Seria a ficção historiográfica de alguns classificável como uma verdade embaçada, que não permite enxergar adequadamente a realidade e com isto constituindo um óbice ao conhecimento, como diriam Juan Luis Vives e Francis Bacon nos séculos XVI e XVII? Esse tipo de ficção talvez comporte teorização mais empolgante do que a realidade”, afirmou o magistrado, acrescentando que “o risco da ideologia aplicada à história é ficcionar, emprestar ares de ciência à ficção, o que significa necessariamente mentir”.

Ainda em seu discurso, Bruno Terra falou sobre a importância histórica de Tiradentes, que resiste ao tempo e à instabilidade das interpretações ideológicas. “Toda ideologia é passageira e ainda estamos aqui para proclamar a vitalidade do herói da Nação”, concluiu.

Leia abaixo o pronunciamento na íntegra:

Tiradentes: Mito e Ciência, Verdade e Ficção

Homenagem a Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes

Cerimônia na Marinha Brasileira, Rio de Janeiro

Bruno Terra Dias

A história de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, é controvertida, como controvertidas são as histórias das pessoas que marcaram época pela defesa de ideais que transcendiam o indivíduo e pequenas coletividades para abranger nações e civilizações. O registro da contemporaneidade nem sempre é fiel, frequentemente eivado de imprecisões necessárias às relações de poder. Tantas vezes, a historiografia consagra injustiças repetidas irrefletidamente ou convenientes ao momento ou à ideologia dominante. Tudo isso deve ser devidamente considerado.

O relato histórico não diz necessariamente uma verdade, bastando ler os historiadores da época das conquistas espanhola e portuguesa nas Américas para se ter certeza disso. Os eventos são tão desconformes à realidade, embora com pretensão de verdade, que hoje seriam rotulados como “fake news” ou, na melhor das hipóteses, como ficção de má qualidade. Seria a ficção historiográfica de alguns classificável como uma verdade embaçada, que não permite enxergar adequadamente a realidade e com isto constituindo um óbice ao conhecimento, como diriam Juan Luis Vives e Francis Bacon nos séculos XVI e XVII? Esse tipo de ficção talvez comporte teorização mais empolgante do que a realidade.

Nessa ordem de ideias, é bom ponderar que os caminhos abertos por aquilo que pensamos da realidade e dos relatos a respeito dessa realidade são a iluminação de nosso proceder, coerente ou incoerente, em nossa própria história, o que somente nossos pósteros dirão, se houver a necessária isenção ideológica. Convém ter em mente também a tripartição platônica de modelo, cópia, simulacro. Se Platão criticava a arte e a poesia, o argumento serve ainda hoje, quando interesses diversos do estabelecimento da verdade apontam para certas e determinadas pessoas como se não fossem o que verdadeiramente são: mitos fundantes da nacionalidade. Fora dessa tripartição, a Tiradentes reserva-se o escasso lugar de originalidade.

Não custa lembrar que a mentira convém à humanidade como a verdade a Deus, o que vem a propósito desta véspera de Páscoa e do seu significado para a humanidade cristã. O humano é imperfeito e incompleto. O que parece discurso religioso é, em verdade, a condição de nossa existência, inclusive quando nos propomos fazer ciência com toda nossa falibilidade.

O aprendizado humano é mimético, não apenas por imitação como pela reiteração, principalmente introduzindo imperfeições pessoais e eventuais aperfeiçoamentos (para o que se exige certa sofisticação em habilidades mentais). Assim ocorre desde a mais tenra idade, para autoconhecimento como para conhecimento do ambiente e compreensão da presença e das necessidades do outro. No outro está uma das maiores falhas humanas: a ideologia. A custo reconhecemos haver a mesma falha em nós, igualmente.

O ser humano trabalha com imagens, mas o ser humano não é imagem senão em seu discurso teológico. A imagem não é o ser, é apenas uma referência ao ser ou a algo que ao ser interessa. Aparência não é essência, como ser não é imagem, mas o ser humano trabalha com imagens e aparências, trabalha com semelhanças e verossimilhanças para seu contentamento, correndo o risco de que, quando chegar, a verdade esteja além de suas possibilidades, assim na ciência como na política, o que fará parecer ficção a existência de pessoas notáveis, cujas histórias sejam constitutivas do mito da nacionalidade.

Ficcionar, não é necessariamente mentir, quando se escreve um romance, mas não é dizer uma verdade histórica, embora toque a alma com credibilidade ou verossimilhança, de modo que faça sentido ao leitor, para quem será uma experiência válida. O risco da ideologia aplicada à história é ficcionar, emprestar ares de ciência à ficção, o que significa necessariamente mentir.

É preciso distinguir, neste momento de fracas verdades e vasto pasto dedicado a conveniências ideológicas, entre verdade e ficção. A ficção faz do irreal uma possibilidade de ser na alma do leitor, suspende a irrealidade pelo desejo profundo de que seja verdade. Coleridge, em sua Biographia Literaria, disse, a respeito da poesia, que ela impõe a wishful suspension of disbelief (uma suspensão da descrença determinada por um desejo), fazendo com que o leitor aceite temporariamente o improvável e o fantástico de uma narrativa. O mesmo ocorre com a ideologia aplicada à história: impõe ao leitor desavisado uma suspensão da verdade determinada pelo desejo de adequação às relações de poder.

A vida tem sido, nas cidades destes dias de formação duvidosa e informação não verificada, conduzida por cálculos probabilísticos e por algoritmos. Para tantos, não há mais uma densa nuvem entre o presente e o incerto futuro. O mundo foi transformado em uma casa de apostas viciadas em favor do cálculo probabilístico e do algoritmo. O cientificismo invadiu a sociedade e desfez a religião, o mito fundador e as histórias exemplares, tão necessários à constituição do sentido de Nação.

O sentido da vida foi desencantado. Se tudo é fatal e deve ocorrer de acordo com leis inarredáveis, não há importância alguma nas transformações introduzidas pela humanidade no planeta Terra, que é nada mais do que poeira cósmica habitada por seres insignificantes, sem vontade, sem desejo e sem ímpeto. A ficção ideologizada, nesse mundo de exclusivas relações materiais a que me recuso, é apenas ópio, detestável vício da alma.

Me pergunto: o que fazer quando relações materiais, regidas por leis físico-químicas inafastáveis, têm como resultado o inesperado? O imprevisto ganha ares daquilo que não é verdade e não poderia acontecer. A história de Joaquim José da Silva Xavier, para quem se submete a um mundo de exclusivas relações materiais, é o inesperado, aquilo que não poderia ter acontecido. Ressurge com ele o sentido da vida com suas características fundamentais, inclusive a imprevisibilidade. Foi ele o líder mítico, carismático, cuja sombra se estende através dos tempos para nos alcançar. O local de seu cativeiro, até julgamento e execução, e os Autos de Devassa da Inconfidência Mineira, provam materialmente sua existência, sua história, seu heroísmo. Tudo isso parece inacreditável ao espírito fraco comandado por certezas probabilísticas e algoritmos, espírito mutilado que tem na verdade uma inconveniência.

Toda ideologia é passageira e ainda estamos aqui para proclamar a vitalidade do herói da Nação! Viva Joaquim José da Silva Xavier!