A Lei Maria da Penha completa nove anos no dia 7 de agosto. Somente em Minas Gerais, existem 88 mil processos de violência contra a mulher. Cerca de 20 mil deles estão nas quatro varas especializadas na Comarca de Belo Horizonte. A superintendente da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Comsiv) do TJMG, desembargadora Evangelina Castilho Duarte, afirma que a lei tem conseguido alcançar seus objetivos, mas defende adaptações que garantam maior abrangência da legislação. Nesta entrevista ao site da Amagis, a desembargadora explica ainda por que muitas mulheres resistem a denunciar seus agressores e revela quais são as grandes conquistas da Lei Maria da Penha nestes nove anos.
Foto: Renata Caldeira/TJMG
A deputada federal Jandira Feghali (PCdoB/RJ), relatora da Lei Maria da Penha em 2006, apresentou, na Câmara dos Deputados, a proposta de modificar o texto para proteger também as transexuais. Como a senhora avalia essa proposta?
A Lei Maria da Penha trata, na atualidade, da proteção exclusiva à mulher vítima de violência doméstica e familiar. Porém, como a lei visa à proteção contra a violência em razão de gênero, e não em razão de sexo, a proposta é válida e não confronta a lei. Ao contrário, com essa modificação, a legislação brasileira poderá ser considerada como a melhor do mundo, já que, hoje, é a terceira melhor.
Nove anos depois, a senhora vê necessidade de fazer atualizações na lei?
A Lei Maria da Penha está atingindo seu objetivo que é de conscientização para a existência da violência doméstica e familiar que, antes, era admitida, tolerada e considerada como fato de irrelevância criminal, exceto quando causasse lesão corporal grave ou morte. A lei pode ser aprimorada para abranger a violência em razão de gênero, para proteção de homoafetivos, transexuais. É necessário aparelhar os órgãos que tratam da matéria, como delegacias especializadas, varas especializadas, promotorias de justiça, munindo-os de equipamentos e pessoal preparado. É indispensável, ainda, o aprimoramento dos profissionais que trabalham com a Lei Maria da Penha, para que haja uma aplicação e interpretação mais homogênea e conforme seu espírito. Não considero necessárias modificações substanciais na lei, apenas adaptação para maior abrangência e para possibilitar a denúncia por terceiros, que tomem conhecimento da sua existência, ultrapassando a hipótese de crime de ação penal condicionada. Seria conveniente, ainda, a criação de tipo penal para a agressão psicológica.
O número de casos de agressão diminuiu nesses nove anos? E o de denúncias?
Segundo pesquisa divulgada pelo Conselho Nacional do Ministério Público, houve uma redução de 10% dos casos de violência doméstica e familiar nesses nove anos. O número de denúncias aumentou, num primeiro momento, e se estabilizou no período, revelando a conscientização das vítimas e a resposta dada pelo Estado para os casos instaurados.
Segundo dados do IBGE, a cada ano, cerca de 1,2 milhão de mulheres sofrem agressões no Brasil. Pelas estimativas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), destas, 500 mil são estupradas, sendo que somente 52 mil ocorrências chegam ao conhecimento da polícia. Por que muitas mulheres ainda resistem a denunciar seus agressores?
A mulher só denuncia a agressão quando ela se torna insuportável. Muitos são os fatores que levam a mulher a não fazer denúncias, como a vergonha de se expor, a esperança de que o agressor modifique seu comportamento, a dependência econômica, o medo de perder os filhos ou o patrimônio, e a dependência psicológica. Todos esses fatores decorrem do ciclo de violência, que se inicia com a sedução pelo agressor, que se mostra cordial, cortês e envolvente, e se desenvolve com demonstração de ciúmes travestidos de cuidados e preocupação com o conforto e a segurança da mulher, até atingir o ponto culminante de cerceamento da liberdade, com agressões verbais, morais, psicológicas, e, finalmente, com agressão física. Segue-se uma fase de reconciliação, curta ou longa, até recomeçar o ciclo, que se repete pela redução da autoestima da mulher e da sua confiança em si, dificultando a denúncia.
Quais são os tipos de agressão mais comuns?
A agressão verbal é a mais comum e consiste em grosserias e palavras duras. Ela não é encarada como agressão, mas com falta de educação. Há a agressão moral, com imputação de condutas caracterizadas como injuriosas, difamatórias e caluniosas contra a mulher. Há também agressões psicológicas, que consistem em pressões, ameaças, humilhações, diminuição da autoestima e da autoconfiança da mulher. Há ainda a agressão patrimonial com destruição de bens, documentos, objetos de valor pecuniário ou afetivo, com a finalidade de privar a mulher da sua independência, liberdade, e cidadania. A mais grave é a agressão física, que pode, ou não, causar lesão corporal leve ou grave e até levar à morte. As agressões moral, patrimonial e física é que são punidas, conforme tipos penais do Código Penal. As demais são apenas coibidas pela Lei Maria da Penha.
O perfil do agressor mudou nestes nove anos?
O perfil do agressor não mudou com a edição e aplicação da Lei Maria da Penha. O agressor continua sendo aquele que considera ter direito de agredir a mulher, porque é o indivíduo superior da relação, a quem a companheira deve respeito reverencial, obediência e submissão. É o mesmo dos séculos passados, pois a violência doméstica e familiar está fundada no patriarcalismo, que considera a mulher o ser inferior, sem direito à igualdade. A violência doméstica e familiar ocorre em todas as classes sociais, em todos os segmentos culturais e profissionais e em todos os bairros da cidade.
Qual o perfil da vítima?
A vítima é a mulher que se insere em um ciclo de violência acreditando que o companheiro irá modificar, melhorar e atender às suas expectativas de companheirismo, respeito e solidariedade.
Como a senhora avalia a aplicação de medidas protetivas por parte do Poder Judiciário nos casos de violência doméstica?
As medidas protetivas no âmbito da Lei Maria da Penha são uma grande conquista, permitindo que sejam aplicadas antes da instauração da ação penal, quando há representação criminal pela vítima, dando efetividade à sua proteção. São medidas que não podem ser consideradas cautelares, mas protetivas à mulher, para garantir que a violência será interrompida. É indispensável que sejam concedidas com rapidez, tão logo esteja caracterizado o risco de renovação ou agravamento da agressão, para que não se culmine em crime mais grave. É também indispensável que o Poder Executivo, a quem incumbe fiscalizar o cumprimento das medidas protetivas, através das Polícias Civil e Militar, execute sua função fiscalizadora, para efetividade da medida concedida.
Um importante mecanismo utilizado em alguns estados brasileiros é o monitoramento eletrônico do agressor e da vítima. A utilização desse dispositivo no Brasil ainda é insuficiente diante dos milhares de casos de violência contra a mulher?
O monitoramento eletrônico é eficaz para garantir o cumprimento das medidas protetivas e de penas aplicadas, mas não tem se mostrado suficiente, dado o elevado número de processos em andamento e de agressores. Há um aplicativo para aparelho celular, que pode ser utilizado pela mulher, para acionar a polícia em caso de ameaça de descumprimento das medidas protetivas. Porém, há um custo para sua adoção que dificulta a utilização. O monitoramento eletrônico, nos moldes atuais, precisa ser fiscalizado com rigor pelas Polícias Civil e Militar para se tornar mecanismo eficiente.
Quais foram as grandes conquistas da Lei Maria da Penha nestes nove anos?
Abandonar a antiga concepção de que a agressão doméstica e familiar é fato corriqueiro e de menor importância e passar a considerá-la como crime, com agravantes em alguns casos, foi a maior conquista da Lei Maria da Penha. A criação de varas criminais especializadas para processar e julgar os crimes de violência doméstica e familiar é outra conquista da lei, pois permite que esses casos sejam decididos por profissionais mais capacitados, mais interessados na matéria e com uma visão mais humanística e solidária. A discussão contínua da matéria, com mudança do paradigma de julgamento, é outra conquista, permitindo que a mulher vítima seja tratada com mais respeito e atenção.
O Brasil está entre os países com maior índice de assassinatos de mulheres no mundo, com uma taxa de 4,4 mortes em 100 mil, ocupando a sétima posição em um ranking de 84 nações, segundo dados do Mapa da Violência 2012 (Cebela/Flacso). Esses dados motivaram a criação da Lei do Feminicídio, sancionada em março. Já foi possível notar algum reflexo da lei?
O feminicídio é o crime de morte de mulher em razão de gênero. A lei prevê qualificadora para a sua ocorrência. Trata-se, no entanto, de legislação que aprimora e aprofunda a proteção à mulher. Ainda não se tem estudos sobre o resultado da lei, pois é preciso que haja um tempo entre a promulgação e os fatos.