Artigo publicado no jornal Estado de Minas de hoje, 28 de dezembro.

* Vinícius Dias Paes Ristori

A Constituição Federal, no seu artigo 6 º, reconhece a saúde como um direito social, fundamental ao ser humano, tendo, portanto, aplicabilidade imediata e eficácia plena na sua realização. Assim, assevera o artigo 196 da Constituição Federal que a saúde é um direito de todos e dever do Estado, cumprindo-lhe executar políticas sociais e econômicas que visem organizar um sistema único de saúde acessível e igualitário. E, na esteira constitucional, a Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/90) assinala que tem o Estado obrigação de prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício, de forma universal e gratuita, viabilizando assistência terapêutica e farmacêutica integral, em qualquer nível de complexidade.

Contudo, apesar do dever do Estado de atuar positivamente na consecução de políticas que assegurem a efetivação do direito à saúde, verifica-se a existência de uma gama de barreiras burocráticas, econômicas e políticas que emperram a realização eficaz do direito à saúde. Encontramos facilmente os mais variados fatos de descasos com a saúde, com a desinformação, falta de leitos hospitalares, falta de disponibilidade de remédios, baixo grau de recursos financeiros no investimento na área sanitária, o atendimento público da saúde, que mais parece um favor do que um direito do ser humano.

Não podemos olvidar, todavia, que a implantação das políticas sociais que concretizam os direitos dessa natureza carece de recursos que, na nossa realidade, são insuficientes para sua crescente demanda. É certo que o Estado obtém receitas por meio da atividade tributária, diretamente relacionada à produtividade econômica do país. E, proporcionalmente ao número de habitantes, o Brasil não se revela uma nação rica. Assim, diante de infinitas necessidades e parcos recursos, o administrador público, qualquer que seja a época considerada e a agremiação política a que pertence, encontra diante de si o grande desafio de efetivar adequadamente os direitos sociais.

Nesse quadro, como constatado, a inevitável consequência é que inúmeros casos individualizados não encontram solução necessária e satisfatória de concretização do direito à saúde. E como o cidadão pode levar à apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito, existem atualmente milhares de ações tramitando em todo o país objetivando o fornecimento, por parte do Estado, de algum medicamento ou tratamento médico. Nessas demandas, sobressai a relevante questão da independência e do equilíbrio de poderes, manifestada no dilema de aferir-se até onde é lícito ao Poder Judiciário interferir nas condutas eleitas e efetivadas pelo Executivo.

Verificamos que muitas decisões ou opções políticas acerca da alocação de recursos para a realização de direitos fundamentais muitas vezes não são prioritárias. Podem mesmo ser direcionadas e aplicadas em áreas também relevantes que, no entanto, não integram o núcleo da dignidade da pessoa humana.

Estando, pois, o direito à saúde intimamente ligado ao direito à vida e com o princípio da dignidade humana, mesmo diante de restrições fáticas de recursos disponíveis, sua outorga não poderá ser afastada, ou seja, as justificativas de reserva possível orçamentária devem ser ultrapassadas na medida em que recursos podem ser obtidos ou retirados em outras áreas menos essenciais à dignidade do homem. Sabe-se que a captação de recursos para formar o orçamento é permanente, de forma que nunca serão completamente exauridos, podendo, assim, determinada despesa que ficou fora de uma escolha alocativa vir a ser assumida por um orçamento posterior.

Assim, cabe ao Judiciário, respeitando a interdependência entre os poderes, e o equilíbrio que deve nortear o sistema de freios e contrapesos, intervir na aferição da norma que representa a escolha política, verificando se a escolha priorizou devidamente um direito social fundamental, que detém aplicabilidade imediata na Constituição Federal.

Lado outro, é certo que, como qualquer outro direito fundamental, o direito à saúde não é absoluto ou ilimitado. Os limites são buscados nos outros direitos igualmente consagrados pela Constituição, sendo que a eficácia e a efetividade de qualquer deles, quando atende judicial realização em um plano concreto, não pode repercutir de forma inviabilizadora do cumprimento dos demais direitos sociais assegurados à sociedade.

Dessa forma, as questões relativas à condenação do Estado ao fornecimento de medicamentos e terapias aos administrados devem ser apreciadas com a maior cautela possível, pois, indubitavelmente, envolvem a priorização de alguns direitos em detrimento de outros. Assim, não devem ser admitidas exigências de prestações supérfluas ou abusivas, desproporcionais ou imoderadas por parte do Estado, pois isso escaparia do limite do razoável, não sendo exigível que a sociedade arque com esse ônus.

Em termos práticos, o direito à saúde reconhecido não alcança a possibilidade de escolher o paciente a terapia ou o medicamento que melhor se adapte ao seu tratamento. Somente com prova inequívoca de que os medicamentos e terapias fornecidos pelo Estado, por meio do Sistema Único de Saúde, não sejam eficazes e adequados no tratamento do mal que acomete o paciente é que se torna admissível a determinação de fornecimento de outros que não os disponibilizados ordinariamente. De igual modo, não é plausível que o Judiciário determine imediata implementação de um gasto extraordinário em favor da saúde de um único cidadão quando não seja realmente indispensável à sua sobrevivência digna; ou mesmo, sem possibilitar ao Estado demonstrar judicialmente que tem motivos fáticos razoáveis para deixar de cumprir, concretamente, a prestação positiva.

Em suma, sopesando que a limitação de recursos públicos é fato verificável, sendo utopia imaginar ou defender que o Estado possa conceder toda e qualquer prestação na área da saúde a toda e qualquer pessoa, situação que não existe em qualquer país do mundo, nem mesmo naqueles de melhor condição econômica, cumpre ao Poder Judiciário o dever de verificar, em cada caso concreto, a efetiva impossibilidade da prestação e, em consonância com o princípio da repartição dos poderes, fiscalizar a legalidade dos atos do Poder Executivo, determinando, sempre que necessário, sua correção e adequação ao efetivo cumprimento das políticas públicas constitucionalmente definidas e essenciais para a promoção da saúde e, consequentemente, da dignidade humana.

*Juiz de Direito do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG)