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"Diretas Já no Judiciário é ponto para a democracia", afirma Lenio Streck em artigo
01/09/2014 16h29 - Atualizado em 02/07/2019 07h57
*Por Lenio Luiz Streck
Os gregos inventaram a democracia. E também inventaram a autonomia do Direito. O primeiro tribunal está lá na Orestéia. Agamenon é assassinado na banheira pelo amante de sua mulher Clitenestra (na volta de Troia, 10 anos depois). Orestes, o filho desterrado de Agamenon, atiçado pelo deus Apolo, é induzido à vingança. Ele deveria matar sua mãe (Clitenestra) e seu amante, Egisto. Orestes mata os dois. Aí vem a culpa. É assaltado pela anóia, a loucura que acomete quem mata sua própria gente. Ao assassinar sua mãe, Orestes desencadeia a fúria das Erínias, que eram divindades das profundezas ctônicas (eram três: Alepho, Tisífone e Megera). Apavorado, Orestes implora o apoio de Apolo. Pede um julgamento.
Constitui-se, assim, o primeiro Tribunal, cuja função era parar com as mortes de vingança. Corifeu, líder do Coro, foi o acusador. Apolo, o defensor. Orestes reconheceu a autoria, mas invoca a determinação de Apolo. Os votos dos jurados, depositados em uma urna, dão empate: 5 a 5. Palas Atena desempata, com voto de Minerva (in dubio pro reo). Rompe-se um ciclo. Acabam as vinganças. É uma antevisão da modernidade.
Vejam: quando discutimos sobre se o presidente do Supremo Tribunal Federal poderia proferir voto de minerva (ou seja, votar duas vezes) para desempatar o julgamento do mensalão, nem precisamos ir adiante ou gastar fosfato. Está lá na Orestéia o voto de Palas Atena. A favor do réu. Ponto para o Direito. Claro: esse voto é apenas declaratório, para dizer que o Estado-acusador não conseguiu maioria para provar o alegado. Logo, o voto de Minerva (versão latina da peça) é a garantia de um resultado equânime e justo.
Pois na Orestéia está a primeira manifestação da autonomia do direito. Institucionaliza-se punição. E acabamos com a vingança. Esse é o papel da Instituição. Quando institucionalizamos algo, é porque isto — a Instituição — fará por nós o que não podemos ou não devemos fazer. A segunda manifestação da autonomia do Direito está em Hobbes, o primeiro grande positivista, colocando a Lei como interdição, livre de qualquer amarra.
Na sequência, o novo sujeito histórico representado pela volonté généralle na Revolução Francesa. É o legislador que põe (institui) a lei sem amarras. Por isso, surge o positivismo, como forma de manter o positivo, o positivado. Mas o Direito acaba fracassando. O positivismo do século XIX (nas suas três vertentes), expurgando moral, valores, ética, chega ao final da Segunda Guerra absolutamente arranhado. Algo tinha de ser feito. Ou seja, depois de Auschwitz, o Direito teria que vir de forma diferente. É o que Losano chama de “Direito pós-bélico”.
O novo paradigma
Pois a Segunda Guerra nos ensinou muito. O novo constitucionalismo trouxe uma espécie de blindagem contra o “velho”. A democracia passou a depender do Direito. Cláusulas pétreas e a institucionalização da moral no Direito (cooriginariedade): eis os grandes trunfos do Direito para o enfrentamento de (novas) barbáries. Daí as teses de Ferrajoli (Constituição normativa), Konrad Hesse (força normativa da Constituição) e Canotilho (Constituição Dirigente). Isso para dizer o menos. Enfim, a Constituição se transformou em norma. Ela vale!
E é nesse contexto que surge a jurisdição constitucional (embora tenha sido inventada anteriormente) como modo de assegurar o cumprimento dessa blindagem. E o Poder Judiciário exsurge nesse novo paradigma com uma perspectiva de que o Direito não é meramente ordenador, como no Estado Liberal; tampouco é promovedor no sentido do Welfare State; na verdade, ele é um plus normativo em relação aos modelos anteriores, porque ele tem características transformadoras (Streck/Bolzan de Morais), o que se pode ver já no início de nossa Constituição: “O Brasil é uma República que visa a erradicar a pobreza, fazer justiça social, promover a igualdade...”.
Ou seja, quanto mais autonomizamos o Direito — e isso foi uma necessidade histórica — maisfortalecemos o papel do Poder Judiciário, especialmente em países que não adotaram a fórmula dos tribunais constitucionais, também conhecidos como tribunais ad hoc. Isso quer dizer que — deixando de lado aqui as discussões sobre a diferença entre ativismo e judicialização (todos conhecem minha posição) — houve um sensível deslocamento do polo de tensão do Poder Executivo e do Poder Legislativo em direção ao Judiciário.
O deslocamento tectônico
Tal circunstância implicou a formatação de um Poder Judiciário autônomo e independente, exatamente para poder dar cabo a essa tarefa decorrente desse quase “deslocamento tectônico” ocorrido especialmente no Brasil. A administração dos diversos setores do Poder Judiciário (tribunais dos mais variados) ganhou contornos de administração “governamental”, sem considerar o papel dos presidentes dos tribunais dos estados, substitutos dos governadores dos estados em casos específicos.
Esse contexto aumenta sensivelmente a demanda por accountability. Mais de dezesseis mil juízes no Brasil não podem permanecer à margem dos processos de escolha dos órgãos de cúpula. O modelo tradicional, que privilegia a antiguidade, na contramão dos pressupostos republicanos, acaba impedindo a manifestação da meritocracia e da manifestação democrática da maioria. Esse modelo tradicional, do mesmo modo, não se coaduna com esse deslocamento (insisto, tectônico) do polo de tensão em direção ao Judiciário brasileiro.
Isto que dizer, simplesmente, que a República não é a mesma de antes. A palavra é a mesma; mas o seu sentido é outro (pensemos, sempre, em Friedrich Müller, quem, a par de ter inventado o termo pós-positivismo, delegou-nos a diferença entre texto e norma). Ele — o sentido — deve vir filtrado pelo novo paradigma instituidor. Do mesmo modo, o Poder Judiciário não é o mesmo de antes da Constituição. Mesmo que a Constituição não tivesse alterado nenhuma vírgula no novo texto constitucional, ainda assim a sua dicção seria absolutamente diferente e diferenciada do velho modelo. Uma filtragem hermenêutica haveria de colocar tudo no seu lugar de acordo com o paradigma do Estado Democrático de Direito.
O novo e velho
E o que é velho e o novo no Poder Judiciário? Assim como há o velho constitucionalismo e o novo, com a transformação do texto constitucional de meramente político a detentor de força normativa, há também uma dicotomia que deve ser enfrentada no âmbito das Instituições. Se democracia no contexto liberal tinha um âmbito de preservação formal de determinadas liberdades, no Estado Democrático ela é substancial. Todo o novo deve ser olhado com os olhos do novo.
Pois essa força pervasiva (de irradiação) da Constituição (Ausstrahlungswirkung) e do paradigma do Estado Democrático de Direito deve derramar sua força sobre os textos que compõem o quadro normativo da Instituição “Poder Judiciário”. Um dos pontos de recepção intensa dessa filtragem deve ser o conceito de democracia e de representação no contexto do Poder Judiciário. E, mais: na sua “essência” — entendida no sentido da tradição do novo constitucionalismo (pós-bélico) — o Estado Democrático de Direito é meritocrático.
Veja-se: essa problemática já está há muito resolvida no âmbito do Ministério Publico, que já desde o texto constitucional de 1988 aprofundou o seu processo representativo. Se a Constituição não era clara o suficiente para permitir que promotores participassem da eleição para os cargos de cúpula, a legislação ordinária espancou qualquer dúvida, o que hoje pode ser visto nas diversas unidades da federação e no próprio CNMP, onde não há a exigência de que o cargo seja ocupado por agentes de segundo grau. A EC respectiva falou em “membros do MP”.[1]
Ainda, uma questão importante: quando falo das eleições nos MPs estaduais e no CNMP, onde “não há a exigência de que o cargo seja ocupado por agentes de segundo grau”, cabe referir o procedimento de escolha do PGR. Apesar de a regra da Constituição (art. 128, §1º) não exigir a elaboração de qualquer lista pela categoria, apenas fala na nomeação pelo presidente da República, após aprovação pelo Senado, há uma consulta “informal” aos membros que ganhou roupagem “formal” ao longo do tempo (como ocorre nos MPs estaduais — art. 128, §3º). Ou seja, não há qualquer inconstitucionalidade de se fazer o menos quando se tem direito ao mais!
As dimensões da recepção da Loman
Nesse sentido, é necessário alertar para um fato relevante. Muitas vezes — e nossa tradição jurídica tem nos pregado peças — somos levados a interpretar a Constituição de acordo com a legislação ordinária. Vários pontos podem ser levantados nessa linha. Assim, o constituinte não negou a meritocracia no modo de escolha dos órgãos de cúpula do Poder Judiciário. A Constituição singelamente estabeleceu, no artigo 96, que compete aos Tribunais eleger seus órgãos diretivos (...). E, quanto a isso, nada mais disse. Por exemplo, em nenhum momento a Constituição faz menção a que o(s) mais antigo(s) devam ser os escolhidos. Isso para iniciar a discussão.
Aliás, não deveria ser recepcionada a Loman no que toca à escolha do mais antigo membro (se é o mais antigo, sequer há escolha, é indicação). Uma interpretação em conformidade com a Constituição aponta para a possibilidade de todos os integrantes do órgão pleno serem candidatos. Isto porque, como dito, não existe “reserva constitucional” que sustente a restrição. E também isso é assim porque devemos levar em conta, na interpretação da lei, o conjunto principiológico da Constituição, e.g.,moralidade e isonomia.
Esse problema relacionado à uma espécie “reserva de poder” em favor do critério da antiguidade vem acompanhado de outro, que é o do alijamento dos juízes (magistrados de primeira instância) do processo de escolha dos órgãos de cúpula dos tribunais.
Aponto, nesse sentido, três soluções para a superação desse alijamento dos juízes:
A primeira delas é a interpretação da Loman em conformidade com a Constituição, fazendo uma autêntica filtragem hermenêutico-constitucional. Esse processo pode ser implementado mediante simples alteração do Regimento Interno do Tribunal, estabelecendo como sendo o colégio eleitoral o de toda a estrutura do tribunal de um estado ou região, da qual os juízes, obviamente, fazem parte. Parece evidente que a independência do Poder Judiciário não depende de que seu processo eletivo fique restrito aos magistrados de segundo grau. Ao contrário: examinando a temática da representação do Poder Judiciário por seus órgãos de cúpula à luz da Constituição naquilo que se entende pelo princípio da concordância prática — para falar apenas deste —, tudo está a apontar para um aperfeiçoamento institucional do Poder Judiciário, trazendo-o mais para perto do papel que a ele é reservado no paradigma do Estado Democrático de Direito, onde o elevado grau de autonomia do Direito é um dos seus corolários.
Há, assim, um conjunto de elementos que liga o processo de avanço da autonomia do Direito com os avanços da democracia no Estado Democrático de Direito. Balizando essa imbricação temos os princípios — que são virtudes soberanas, lembremos — republicano, democrático e da democracia participativa, que, mutatis mutandis, devem servir de inspiração para a oxigenação da ossatura institucional.
Na especificidade, a Constituição Federal, no seu artigo 96, I, estabeleceu que aos tribunais compete eleger seus órgãos diretivos. Regulamentando a matéria, tem-se o artigo 102, da Loman, anterior a CF, pelo qual:
Os Tribunais, pela maioria dos seus membros efetivos, por votação secreta, elegerão dentre seus Juízes mais antigos, em número correspondente ao dos cargos de direção, os titulares destes, com mandato por dois anos, proibida a reeleição.(...).
Esse dispositivo da Loman, depois de um banho de imersão constitucional (para usar uma expressão de que gostava Liebman), estaria violado por algum Regimento Interno que viesse a permitir a eleição direta e secreta do Órgão de Cúpula na qual todos os membros — magistrados de primeiro e segundo grau — pudessem votar?
Em um primeiro momento, poderíamos nos contentar com uma análise semântica, discutindo, lexicograficamente, o sentido das expressões “os tribunais, pela maioria dos seus membros efetivos”. Seria possível atribuir à expressão “tribunais”, seguido do complemento explicitativo “pela maioria dos seus membros efetivos”, o sentido de que compreenderia o conjunto dos membros vitalícios, entendidos como membros não somente os magistrados de segundo grau, mas, sim, também os magistrados de primeiro grau já vitaliciados?
A resposta pode ser afirmativa. E há vários indícios formais (formale Anzeigen) que apontam para isso, por exemplo, o mais simples deles, que é, quando se trata do orçamento, este se destina, por exemplo, aos tribunais, quer dizer “toda a estrutura daquele Judiciário” e não apenas do “Tribunal enquanto órgão de cúpula do Poder”. Claro que, em outros momentos, a Constituição coloca “tribunais e juízes” lado a lado. Mas não os distingue ao ponto de cindir a estrutura daquele Poder Judiciário (Estado federado ou Região). De todo modo, quiséssemos nos fixar em conceitos lexicográficos, poderíamos simplesmente jogar o artigo 102 da Loman contra ele mesmo. Sim, texto contra texto, para buscar a extensão da expressão “tribunais” para a abrangência de “todos os membros, entendidos estes como magistrados de primeiro e segundo graus”. Refiro-me, pois, ao fato de que a Loman diz que os tribunais elegerão... dentre seus juízes mais antigos... Veja-se como a semântica, isoladamente, pode nos pregar peças. Primeiro, tribunais... depois, dentre seus juízes...!
Mas, como referi, não precisamos — e não devemos — nos tornar reféns daquilo que Dworkin denomina de “aguilhão semântico”, isto é, quando se acredita que as bases do direito estão fixadas de forma incontroversa por meio de regras semânticas compartilhadas. O texto (lei) é importante. Sem ele não há norma (sempre, Friedrich Müller). Kein text ohne Norm; keine Norm ohne Text (Sem texto não há norma; sem norma não há texto). Claro que o texto não se esgota nele mesmo. Não há texto em si, como não há a “coisa em si”, como já denunciava Kant. Na interpretação de um texto (e nas suas possibilidades de alteração) — que é sempre um evento (fenômeno) —, não podemos nos limitar à analise semântica acerca do que pode/deve ou não ser abarcado pelo conceito de uma expressão.
No caso concreto, o busílis do problema não está na expressão “tribunais” e, sim, naquilo que a Constituição estabelece como sendo um Poder Judiciário autônomo e independente. O busílis está, também, naquilo que eventualmente uma lei — no caso, a Loman — coloca como empecilho ao desiderato da Constituição (no caso, se interpretarmos a expressão “tribunais” como limitadora da participação dos juízes no pleito, então essa limitação deverá ser expungida, via Nulidade Parcial Sem Redução de Texto (Teilnichtigerklrärung ohne Normtextreduzierung). O mesmo se diga em relação à expressão “mais antigos”.
Dito de outro modo, o Direito não é como as artes plásticas. Ele necessita de um intérprete e de uma teoria para ser compreendido. No dizer de Eros Grau — problemática retrabalhada em meu Hermenêutica Jurídica e(m) crise — o Direito é alográfico. O sentido é atribuído “de fora”. As palavras da lei assumem um sentido próprio em um primeiro nível e, em um segundo, um sentido decorrente da applicatio (Gadamer). Por isso não devemos ser picados pelo “ferrão da semântica”. Eis o ponto! Não fosse assim, o marceneiro poderia ser intérprete da lei. Mas, ao ser intérprete — com o que estaríamos admitindo que o Direito não é alográfico (ele seria autográfico!) —, o marceneiro poderia pensar, facilmente, que uma lei que dissesse que três pessoas disputarão uma cadeira no Senado estaria tratando da disputa pelo móvel da Casa Legislativa. Na palavra furto estão as milhares de modalidades de furto? Como se pode ler a expressão “tribunais”? Há um conceito unívoco sobre o que se entende por essa expressão? E se no mesmo dispositivo tivermos as palavras “tribunais” e “juízes”, uma coisa está desligada da outra?
Efetivamente, o Direito não cabe na lei. Os sentidos da lei somente se dão na concretude. Se o Direito não fosse alográfico, um bom linguista poderia ser o intérprete perfeito, dispensando qualquer formação jurídica. Alguém picado pelo “aguilhão semântico” poderia pensar que a dicção das palavras “os Tribunais, pela maioria dos seus membros efetivos” seria autoexplicativa. Mas não é. Mas — e ainda bem — o Direito é alográfico. Por isso, o intérprete é indispensável.
Por isso, a interpretação do fenômeno — possibilidade de os juízes participarem da eleição direta para os órgãos de cúpula dos Tribunais — deverá ser feita a partir da Constituição e das possibilidades de implementação, pelos tribunais, de procedimento para tal. Nesse sentido, se a Constituição diz que compete aos Tribunais eleger os seus Órgãos de Cúpula, eles mesmos, os tribunais, recebe(ra)m essa delegação para estabelecerem a dimensão de seu colégio eleitoral. Explico esse que parece vir a ser o ponto de estofo da discussão.
A Constituição, ao não estabelecer a forma de eleição e tampouco restringir os cargos de presidente e vice-presidente aos membros mais antigos (biocronologia), deixou a cargo dos tribunais, via Regimentos Internos, o estabelecimento desse modelo. E a Loman, ao estabelecer que os tribunais, pela maioria dos seus membros efetivos, “por votação secreta, elegerão dentre seus Juízes mais antigos, os cargos”, não constitui nenhum impedimento a que os tribunais, via Regimentos Internos, explicitem que “membros efetivos” também sejam juízes (a forma de alteração regimental será feita de acordo com a independência de cada tribunal — forma essa que pode ser unificada, obviamente, criando-se uma redação minimante padronizada).
Ou seja: se a Constituição apenas diz que compete aos tribunais eleger os seus órgãos de cúpula, não há empecilho a que os tribunais venham a interpretar esse dispositivo como albergando o voto dos juízes de primeiro grau. Ou seja, a Constituição concedeu autonomia para que os tribunais estabeleçam, por Regimento Interno, essa forma. E a Loman, anterior à Constituição, se se constituísse em empecilho — o que se diz apenas ad argumentandum —, seria interpretada de acordo com o artigo 96, I, da atual Constituição. E, nesse contexto, a interpretação constitucional também deve ter um corolário lógico:
Se todos os juízes (membros lato sensu, vitalícios) votam, ficando ampliado, assim, o colégio eleitoral, não tem mais sentido que os elegíveis sejam apenas os mais antigos, circunstância, aliás, nem de longe prevista pela Constituição e sua principiologia. No caso, a alusão aos “mais antigos” fica subsumida no plano maior da alteração.
Na hipótese, sempre é bom recordar da holding do case Marbury v. Madison. A Lei Ordinária (lá, no caso, era a Lei de Organização Judiciária) não podia dizer mais do que a Constituição. Aqui, em sendo a Loman anterior à Constituição, não se pode tê-la como recepcionada quando estabelece elementos para além, não apenas do texto do artigo 96, I, mas da norma que dele dimana, a partir da robusta principiologia que densifica a regra. Deve ser expungido o critério biocronológico para assunção aos cargos de direção dos tribunais e, através de emenda Regimental, estender o Colégio Eleitoral a todos os membros efetivos, que são os magistrados de primeiro grau com vitaliciedade.
A segunda forma de superar o alijamento dos juízes de primeiro grau é via alteração legislativa da Loman, explicitando, no texto, o colégio eleitoral com a participação dos juízes (no caso, magistrados de primeiro grau lato sensu). A argumentação é a mesma da “fórmula” anterior.
A terceira, na mesma linha da segunda — só que em sede constitucional —, é a aprovação de Emenda à Constituição, nos termos, por exemplo, das PECs (de números 15/2012 e 187/2012), que alteram o referido artigo 96, estabelecendo que todos os membros do Poder Judiciário (magistrados de primeiro e segundo graus), em votação direta e secreta, elegerão o presidente e o vice-presidente do tribunal dentre os membros do Órgão Especial (claro que, no caso de não existir órgão especial, dentre os desembargadores do tribunal).
Parece evidente que não constitui cláusula pétrea a forma de eleição dos órgãos de cúpula do Poder Judiciário. Despiciendo trazer à lume o que são as cláusulas pétreas e qual é a sua finalidade. Não esqueçamos, de todo modo, que jamais uma cláusula pétrea poderia ser invocada para evitar o avanço democrático de uma Instituição ou de um Poder de Estado.
Cláusulas pétreas existem como blindagem contra os predadores exógenos do direito (economia, moral e política) e para garantir que não haja retrocesso no processo social-democrático. Obviamente, não se poderia dizer que permitir que os juízes do Brasil — responsáveis pela condução das eleições parlamentares e majoritárias mais limpas do mundo — passem a ter direito a voto para os órgãos de cúpula do Poder Judiciário seja uma violação de cláusula de pedra.
Isto porque uma Constituição nunca deve ser lida contra ela mesma.
Ainda no que diz respeito à terceira maneira, também não há qualquer eiva no que pertine à iniciativa legislativa. O Poder Legislativo pode fazer emenda constitucional para estabelecer alterações desse jaez. A iniciativa do Poder Judiciário — a cargo do STF — não se constitui em óbice à iniciativa parlamentar para aprovar emenda constitucional. Lembremos, por exemplo, das diversas emendas constitucionais já aprovadas, alterando e introduzindo dispositivos no capítulo destinado ao Poder Judiciário.
Em conclusão
No mês de dezembro de 2012, a chamada Reforma do Judiciário (EC 45/2008) completou oito anos. Visava, segundo o discurso da época, a tornar o Judiciário consentâneo com o nosso tempo. Muito se falou em aumento da eficiência, em accountability, em busca de resultados. Porém, infelizmente, a estrutura — considerada lato sensu — continuou a mesma. E não há como se reformar, realmente, sem se reestruturar. Senão, vira remendo. A estrutura Judiciária precisa ser compatível com o modelo de Estado de Direito. Em nosso caso, precisa, também, ser democrática.
Em interessante estudo — hoje já conhecido de todos —, o magistrado argentino Eugenio Raúl Zaffaroni aponta a existência de três modelos estruturais, todos eles oriundos de estágios diferenciados de evolução política da magistratura. Em um modelo empírico primitivo, típico de regimes democráticos no mínimo débeis, há o domínio e o controle do Judiciário pelo poder político. E isso é feito pela nomeação dos juízes pelo poder político — que, no momento necessário, cobrará a devida lealdade — e por meio do deslocamento do poder decisório nas cúpulas, gerando baixa qualificação técnica e partidarização. Podemos dizer que superamos essa estrutura, pelo menos.
O segundo modelo é o técnico-burocrático. Afasta-se da arbitrariedade seletiva, pois os juízes são, na grande maioria, escolhidos por critérios de mérito técnico. Contudo, forma-se, em face da estrutura hierarquizada, uma magistratura burocrática e carreirista. A independência é apenas externa, impactando, inclusive, no controle de constitucionalidade. Embora corresponda a um ambiente mais estável, não se afasta o caráter autoritário.
Por fim, o modelo democrático-contemporâneo avança nas conquistas do modelo anterior, pois, além da seleção técnica de seus membros, a independência não fica limitada ao ambiente externo: a democratização do Judiciário é feita pela eleição dos órgãos dirigentes pelo voto igualitário de todos os juízes e pela desierarquização administrativa dos colegiados, supressão das sessões secretas e permite a formação de uma magistratura pluralística desde o momento da escolha técnico-meritória dos seus membros. Esse modelo é o que melhor se compatibiliza com o Estado Democrático de Direito.
Embora tais modelos não sejam representações estantes do mundo judicial, é fácil perceber que a Reforma do Judiciário de terrae brasilis não suplantou o modelo técnico-burocrático. Seu discurso, pelo contrário, é autoritário, na medida em que transforma o Judiciário em corporação. E isso não é bom.
Por isso a necessidade da democracia, com as alterações Regimentais antes aludidas (ou de lege ferenda, de outro modo). Não há impedimento de os juízes participarem do processo de escolha dos Órgãos de Cúpula dos tribunais.
Para tanto, sequer precisamos depender da semântica legal, pois a própria Loman acaba falando também de “juízes” (claro que a interpretação, aqui, torna despicienda esse apelo à semântica, pois estamos imunes ao “aguilhão semântico”). A Constituição apenas refere que os tribunais escolhem os seus dirigentes. Ao não especificar e detalhar o modo de escolha e tampouco aludir a que apenas os mais antigos possam fazer parte dos Órgãos de Cúpula, a Constituição (art. 96, I) fez exatamente o que dela se esperaria no novo paradigma: Afirmou o elevado grau de autonomia do Direito e, consequentemente, do Judiciário que por último diz o que o Direito é. Por isso, a alusão “aos Tribunais compete” se deve dar o alcance principiológico ínsito ao Estado Democrático, isto é, os próprios tribunais poderão fazer essa democratização. O caminho? Aquele que a própria Constituição prevê, via Regimentos Internos, também previstos na Constituição.
Efetivamente, os juízes devem participar da escolha dos seus dirigentes. Veja-se que recente pesquisa da AMB constatou que 99%(!) deles sequer sabiam qual o percentual dos recursos orçamentários destinados à sua Vara/Comarca.[2]
Alia-se a isso a crescente contaminação do Judiciário pelo discurso econômico (análise econômica do direito e seus efeitos colaterais). Não para menos, tanto se fala hoje em eficiência, como se fosse ela a pedra de torque da atuação do Judiciário. Há muito por fazer, mesmo tendo já passados mais de vinte anos desde a promulgação da CF.
Por exemplo, torna-se mais sintomático quando o Conselho Nacional de Justiça publica uma resolução estabelecendo como critério para promoção, “o respeito às súmulas do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores.”[3] [4] Não fosse isso, surgem críticas ao “independentismo” da magistratura de primeiro grau, como se ter uma postura independente fosse algo reprovável. Mas o juiz não é independente, é verdade. Ele tem um senhor: a Constituição!
Não se pode falar em aproximação do Judiciário da Democracia quando, em seu âmago, impera uma estrutura hierarquizada, que, ao fim e ao cabo, termina por criar magistrados de maior e menor dignidade e consideração. Forma-se uma espécie de aristocracia judicial — quando sabemos que a jurisdição e o controle de constitucionalidade é exercido igualmente por todos os membros do Poder Judiciário. E como se falar em boa gestão judicial quando a escolha do seu dirigente deixa de ser uma questão político-democrática para se tornar biológico-cronológica?
A restrição a que apenas os membros do segundo grau participem da eleição não faz sentido — o Representante há de ter alguma ligação com os “Representados” ou, então, a escolha do presidente do Tribunal poderia ser feita pelo governador ou pelo presidente da República (como é o caso do presidente da Suprema Corte, que é escolhido pelo presidente da República nos EUA). Isso porque estou supondo que o “cargo” de presidente do tribunal signifique uma atribuição de representação de alguém que irá “gerir administrativamente” o órgão, o que tem implicações diretas sobre o dia-a-dia dos “representados”.
Vivemos, ainda, o Ancien Régime nos Palácios da Justiça?
A resposta está com os tribunais, exatamente os que receberam da Constituição, no artigo 96, I, o poder de eleger os seus órgãos diretivos. O constituinte deixou para o processo democrático definir os mecanismos dessa eleição.
Encerro com uma frase de um autor muito caro para a magistratura brasileira — que, frise-se, nem é bem de minha predileção — Boaventura de Souza Santos, para quem “as Repúblicas devem ter por imperativo ‘democratizar a democracia’, mais ainda as suas Instituições responsáveis pela proteção e promoção da democracia, como é o caso do Judiciário”.
Passados 190 anos do Grito do Ipiranga e 123 anos do fim da Monarquia, precisamos, então, proclamar a independência e instaurar a República dentro do Judiciário! E democratizar a democracia!
[1] Claro que, no caso dos juízes, a participação deles no processo eletivo não implicará a possibilidade de um juiz chegar a presidir o respectivo Tribunal. No caso, assim como para concorrer a governador é necessário que o candidato seja brasileiro nato e maior de 35 anos, também há requisitos intrínsecos a serem preenchidos a partir da especificidade do Poder Judiciário.
[2] http://www.amb.com.br/portal/docs/pesquisas/MCI_AMB.pdf
[3] Recebemos com surpresa e preocupação a Resolução 106 do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, que trata do estabelecimento de critérios para a promoção, remoção e acesso de magistrados por merecimento, uma vez que assim prescreveu: “ Art. 5º Na avaliação da qualidade das decisões proferidas serão levados em consideração: (...) e) o respeito às súmulas do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores.” Santos Júnior, Rosivaldo Toscano dos. Independência ou Morte. Disponível em . Acesso em 21.02.2011.
[4] A mesma advertência faz Isidoro Álvares Sacristán: “Las tendencias actuales de situar a los jueces bajo la funcionalización choca con el concepto clásico de independencia y nos llevaría a la jerarquización que alentaría una disciplina intelectual cerca del totalitarismo jurisdicional.” (SACRISTÁN, Isidoro Álvares. La justicia y su eficácia: de la constitución al proceso. Madri, COLEX, 1999, p. 79).
* Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.
Fonte: Conjur