Do intrigante princípio do juiz natural no STJ e no TST, segundo os dados revelados pelo CNJ e do juízo de admissibilidade no sistema recursal de Alice do novo CPC



Por Carlos Roberto Loiola

Magistrado em Minas Gerais



A primeira lição grafada no Tratado de Direito Privado, de Pontes de Miranda é: “Os sistemas jurídicos são sistemas lógicos”[1].

Mas será que existe realmente alguma lógica no sistema recursal brasileiro, principalmente para os tribunais superiores, a justificar a própria existência deles?

E o quê dizer da regra contida do art. 1.028, do novo Código de Processo Civil - CPC (dentre outros), que retira do juízoa quo a admissibilidade dos recursos?

Tribunais superiores existem, ou pelo menos assim deveria ser, para que, em algumas raras hipóteses de maior relevância social, um caso possa ser analisado novamente por julgadores mais experientes, após uma meditação mais abrangente e mais aprofundada acerca do tema recursal e da importância dele para a coletividade, com o fito de uniformizar a jurisprudência.

Os números divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça - CNJ, em seu portal na Rede Mundial de Computadores, contudo, acerca da justiça brasileira, relativos ao ano de 2014, podem nos relevar dados intrigantes, ou fabulosos, literalmente, acerca do princípio do juiz natural que efetivamente aplicamos aqui nas terras tupiniquins. E a regra inserida no art. 1.028, do novo CPC, nos remete a questionamentos ainda mais fantásticos.

A garantia do juiz natural, essência da jurisdição, deveria ter especialíssima conotação em nosso Direito, segundo Lauria Tucci, “significando que o membro da comunhão social tem direito a julgamento por juízo ou tribunal pré-constituído, isto é, por um órgão jurisdicional autêntico, legitimamente investido no exercício da jurisdição e com todas as garantias ínsitas ao normal desempenho da função de seu cargo (vitaliciedade, independência jurídica e política, inamovibilidade, irredutibilidade de vencimentos)[2].

Isso porque, segundo o pranteado José Frederico Marques, “a ideia de juiz natural contrapõe-se não a juízo especial, mas a juízos de exceção ou instituídos para contingências particulares[3] (grifei).

Fernando da Costa Tourinho Filho[4] acrescenta que tal princípio “contravêm, pois, ao princípio não só aos Tribunais de exceção como também os Juízes, ainda que juízes, mas … ad hoc. E se por juiz natural, ou legal, se entende, com Manzini, aquele instituído previamente por lei, para um determinado setor de relações, de fatos ou de pessoas, em contraposição a juiz eleito ou criado, arbitrária ou ocasionalmente, é evidente, tal qual expõe Beling, que “tienen que encontrar justas críticas todas las maniobras que, por razones ininteligibles, lleven el caso concreto a outro juez distinto del llamado a conocer del mismo, según las disposiciones legales generales” (cf. Derecho, cit. p. 34)”.

A regra do juiz natural vem esculpida no texto constitucional que estabelece que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (Constituição da República Federativa do Brasil, art. 5º, inciso LIII), sendo a jurisdição exercida unicamente por juízes e tribunais (art. 16, do novo CPC), estando os órgãos do Poder Judiciário, por sua vez, especificados no art. 92, da mesma Constituição.

Correlatos ao princípio do juiz natural ainda temos os princípios da investidura e o da indelegabilidade da jurisdição, todos indelevelmente abraçados pelo nosso ordenamento posto e umbilicalmente presos entre si.

Pois bem: analisando os números da justiça brasileira divulgados no portal do Conselho Nacional de Justiça[5], em 2015, ano base 2014, encontramos os seguintes dados acerca da operosidade dos Ministros dos Egrégios Superior Tribunal de Justiça e Tribunal Superior do Trabalho: em 2014, as despesas totais do STJ somaram aproximadamente R$1,1 bilhão. Nele aportaram novos 325.855 processos, sendo baixados 285.507 processos, ou seja, 8.652 por Ministro atuante na Corte (IPM - Indicador por Magistrado - baixados).

No mesmo ano de 2014 o TST teve uma despesa de R$813 milhões, nele aportando novos 244.555 processos, sendo baixados 200.571, ou seja, 7.429 por Ministro (IPM – Indicador por Magistrado – baixados).

Considerando os 238 dias úteis do Poder Judiciário no ano de 2014, desconsiderando os naturais períodos de férias ou licenças pessoais de cada Ministro, considerando ainda que cada Ministro tenha trabalhado 06 horas por dia, 05 dias da semana, apenas para decidir esses processos, desconsiderando o tempo gasto nas demais atividades ministeriais, inclusive as decisões de outra natureza, julgamentos em plenário, solenidades etc, cada Ministro do STJ logrou baixar nada menos do que 36 processos por dia de trabalho, ou seja, um processo a cada 10 minutos de trabalho.

Cada Ministro do TST, nessas mesmas circunstâncias consideradas, trabalhando sem férias ou licenças, 06 horas inteiras por dia, 05 dias da semana, sem descanso algum, baixou 31 processos por dia de trabalho, ou seja, um processo a cada 12 minutos.

Ora, considerando os termos da Constituição da República Federativa do Brasil, que expressamente dispõe que os servidores da justiça receberão delegação apenas para a prática de atos de mera administração e atos de mero expediente sem caráter decisório, que já foram desconsiderados nos cálculos acima, podemos facilmente concluir: em verdade, o princípio do juiz natural, no Brasil, é praticado por juízes sobrenaturais.

Mas não há nada que não possamos transformar em grande espetáculo, no Brasil.Diz o §3º, do art. 1.010, do novo CPC, (Lei 13.105/2015) que a Apelação será remetida ao Tribunal, independentemente do juízo de admissibilidade, o mesmo ocorrendo.

Diz em relação ao Recurso Ordinário (art. 1.028) e aos Recursos Extraordinário e Especial (art. 1.030, § único) aplicando-se subsidiariamente a mesma regra em relação ao Recurso de Revista (art. 15).

Portanto, se em 2014 o STJ e o TST, juntos, receberam 570.410 processos, agora, sem o juízo de admissibilidade nas instâncias que lhes são inferiores, em breve aportarão milhões de processos naqueles Tribunais Superiores, e nossos operosos Ministros haverão de julgar tais recursos em segundos, quiçá em milésimos de segundos, tal como fazem nossos campeões olímpicos.

Com algum esforço de hermenêutica podemos acreditar que é possível a um sobrenatural juiz resolver em dez ou vinte minutos um caso de alta complexidade, como devem ser os casos que deveriam ser submetidos às Altas Cortes.

E podemos ainda acreditar, como fizeram os autores do novo Código de Processo Civil, tal como fazia Alice no País da Maravilhas, que é possível a uma nação de dimensões continentais como a nossa e com problemas históricos que se arrastam desde o descobrimento, que todas as demandas sejam analisadas dezenas de vezes, por seus juízes naturais e sobrenaturais, em muitas e muitas instâncias, até o trânsito em julgado, e que isso ocorra em tempo razoável, com eficiência e justiça.

Mas há uma lógica sincera e inderrogável no maravilhoso mundo de Alice que não podemos ignorar: ele foi criado para que a ingênua e imaginativa personagem, ao final, pudesse sonhar em ser feliz para sempre...



[1]Tratado de Direito Privado. Pontes de Miranda. Atualizado por Vilson Rodrigues Alves. Bookseller. Campinas/SP. 1999.Tomo 1. p. 14.

[2] Constituição de 1988 e Processo – Regramentos e garantias constitucionais do processo. Rogério Lauria Tucci e José Rogério Cruz e Tucci. Saraiva. São Paulo. 1989.

[3] Instituições de Direito Processual Civil. 4ª edição. Forense. Rio de Janeiro, 1972, v. 1, p. 155.

[4] Processo Penal. 16ª ed. Saraiva, São Paulo. vol. 2, p. 57.

[5] Portal www.cnj.jus.br, justiça em números, Tribunais Superiores.


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