A implantação de ferramentas digitais é uma forte aliada na redução da burocracia e dos custos operacionais do Poder Judiciário e, ao mesmo tempo, um caminho para facilitar o acesso do cidadão à prestação jurisdicional. Diante disso, os Tribunais de Justiça têm investido cada vez mais na modernização tecnológica de seus processos. Nesta entrevista, o advogado especialista em direito digital e ex-desembargador do TJMG, Fernando Botelho, avalia os benefícios e os desafios impostos por este novo modelo de trabalho. Segundo Botelho, tão ou mais importante que empregar recursos na aquisição de novas tecnologias e equipamentos é modernizar o Judiciário com os olhos voltados para seus usuários.

Leia mais sobre o tema em matéria especial na edição de dezembro do jornal Decisão.

Fernando Botelho

Como o senhor avalia a modernização tecnológica do Judiciário?

É uma necessidade. Uma medida de compatibilização dos instrumentos do Estado-Jurisdição com os da sociedade civil. O Judiciário não pode viver descompassos grandes, como os que vimos quando chegamos a bancos, lojas ou mesmo em casa, e nos deparamos com a tecnologia dominando nossas vidas, frente à realidade dos escaninhos da Justiça repletos de papéis amarelados, carimbos e sinais formais do meio físico que não condizem com os valiosos recursos humanos que o compõem. Mas é importante dizer que isso não deve se tornar uma panaceia, uma solução em si mesma. A modernização tecnológica do Judiciário não pode ser encetada como se puséssemos um milagre a caminhar em dias. Diria que tão importante – ou até mais importante – que modernizar, é definir como modernizar. É modernizar com prudência e com determinação. É modernizar com olhos postos nos usuários. É ter metas que não escravizem nem arrisquem a eficiência mínima dos serviços, que não podem ser descontinuados por déficits tecnológicos.

Que desafios as novas ferramentas tecnológicas têm imposto ao modo de trabalho do Judiciário?

Novas tecnologias – como as que redimensionam os espaços públicos, criando as redes amplas e as microrredes sociais (WhatsApp, Facebook, Instagram etc.) – e o conceito ultrainovador da segurança criptográfica da informação trouxeram uma revolução, não só nos costumes, mas nos instrumentos de trabalho do juiz e na realidade dos processos. Tomemos, por exemplo, as evidências, as provas e indiciárias, que têm sido levadas pelos órgãos de investigação ao exame e ao crivo do Judiciário nos processos-crime e nos processos cíveis. Apreensão de aparelhos celulares, com imagens e filmes da intimidade de delinquentes, casais etc. Gravação monitorada de conversas telefônicas e de mensagens trocadas por WhatsApp. Emails corporativos violados, com ruptura de sigilos industriais e concorrenciais. Um arsenal, enfim, e quase que infinito, de novas realidades, menos formalistas e estáticas, e mais dimensionais e dinâmicas, que o registro textual do papel, é hoje desafio para o trabalho do Judiciário, que precisa estar ambientado, não só por seus magistrados, mas por seus servidores, e, num conceito mais amplo de Justiça, por promotores e delegados de polícia, na lida com detalhes e informes tão técnicos e tão demonstrativos da dinâmica real dos fatos. Não se faz isso, claro, sem sacrifícios. O processo eletrônico é um sacrifício necessário, como repositório dessa amplitude de provas. E a modernização dos critérios investigativos e do próprio conhecimento dos fatos constitui outro ônus que a modernidade impõe.

O Poder Judiciário está munido com as ferramentas necessárias para enfrentar esses desafios?

Os Tribunais têm feito muito. Têm investido financeiramente na aquisição de tecnologias e equipamentos, e na modernização de seus parques computacionais e informáticos. Têm também trazido os seus magistrados e servidores para uma discussão mais eficiente dos recursos da computação e da telemática. Até a implantação do Processo Judicial Eletrônico (PJe) foi aglutinada, em vários judiciários brasileiros, às realidades ambientais do processo de papel. Temos visto secretarias e gabinetes repletos de processos de papel, usando, paralela e simultaneamente, o PJe e a jurisdição eletrônica, num dos maiores esforços e mais valorosos sacrifícios humanos e infraestruturais que vimos até hoje em processos de automação. Isso precisa ser valorizado e reconhecido, mas há muito ainda a percorrer. As ferramentas já implantadas precisam de urgente otimização, que sacrifique menos o usuário interno e externo do Judiciário. Os sistemas de processamento dos processos precisam funcionar. O mau funcionamento de um programa ou aplicativo destinado ao processamento eletrônico dos feitos gera um caos na Secretaria de Juízo e no gabinete do magistrado, por consequência ambientando mal a inovação e causando desprestígio desnecessário e muitas vezes injusto do serviço judiciário. Tão importante esse ponto que nos parece que o momento recomenda mais aprimorar a inovação já implantada que alargá-la. São passos que historicamente integraram grandes processos de automação. O ir em frente é, muitas vezes, frear algo para um necessário e prudente “recall”, sobretudo em judiciários abarrotados de demandas e de contínua intensidade de serviços, como os do Sudeste.

A questão cultural e a dificuldade de adaptação e/ou aceitação dessas novas ferramentas são um problema?

Diria que esse não é propriamente um problema. É uma condição da automação. Não é o usuário que deve se adequar a sistemas computacionais e telemáticos. São os sistemas que precisam se adequar aos usuários. Isso é mandamento da computação e da telemática. Sistemas ruins não são aceitos, qualquer que seja a faixa etária. A rejeição a eles é fenômeno positivo e não negativo. Deve ser considerado pela sua expressão quantitativa e qualitativa. Daí a necessidade do permanente monitoramento, das pesquisas de usabilidade, da oitiva das segmentadas representações dos usuários nos processos de inovação tecnológica. Resolvidos problemas massificados, aí sim, devemos falar nos graus propriamente culturais e nas dificuldades de adaptação ou aceitação das novas ferramentas por segmentos de usuários. E, para isso, influi, substancialmente, a existência, ou inexistência, de processos eficientes de treinamento e aculturamento do recurso humano. Há evidências no mundo e na história de que sistemas ou inovações tecnológicas não enfrentaram dificuldades ou facilidades por serem bons ou ruins, mas por terem ou não sido implementados com bons ou maus métodos de treinamento. Gerações anteriores costumam ser, inclusive, receptivas a bons treinamentos, ainda que para processos inovadores mais amplos. Na atualidade, pessoas de idade avançada vêm inclusive retornando ao mercado de trabalho nos EUA e na Europa, com grande valorização, justamente pela aptidão e disciplina maior que possuem para a recepção educativa dos novos métodos de trabalho.

A tecnologia é a solução para a morosidade do Judiciário e para seu alto custo?

Diria que a tecnologia é uma “conditio sine qua non” do funcionamento do Poder e, por isso, o custo do seu investimento representa fator de redução dos custos judiciários. Logo, é fator de redução, no longo prazo, dos custos operacionais do Judiciário e, na medida em que seja implantada com preparação e cuidado com os recursos humanos que a utilizarão, constitui fator significativo para diminuição do tempo de duração das demandas, consequentemente de fomento do princípio constitucional, da menor duração dos processos.

De que forma a sociedade também pode ser beneficiar com a digitalização dos processos?

O processo em papel é um elemento público, mas de publicidade formal. Ele não possui, digamos, o fator ubíquo que o processo digitalizado oferece, segundo o qual o litígio, em todos os seus matizes, pode ser visto, consultado, entendido, analisado, e até julgado, a partir de qualquer ponto onde haja uma conexão/internet. Isso muda, como vem de fato mudando, a visualização do sistema judiciário pela sociedade. As partes leem hoje, por si, as peças e os documentos dos processos, e o fazem em tempo real com o momento da decisão, a partir de simples download feito diretamente do sistema eletrônico processual do Tribunal. E sem custos adicionais. Discutem entre si, com familiares, advogados, amigos. Fazem os seus próprios juízos de valor. E isso não seria possível com o processo puramente em papel, formalizado dentro da conhecida cadência ritualística, com características avessas, normalmente, ao conhecimento pelo homem médio. O processo eletrônico tem tornado o litígio um episódio da vida comum, a todos acessível. Isso tem contribuído para uma maior seletividade, na escolha, pelas partes, de profissionais da advocacia e, também, para a maior valorização e popularização do trabalho jurisdicional. O juiz, com a publicidade exponencializada pelo fator ubíquo do processo digitalizado, se torna conhecido. O seu trabalho jurisdicional passa a ser direta e genuinamente visto, lido, interpretado pelas partes e por uma massa muito maior de pessoas e intérpretes, o que, embora acresça a sua responsabilidade no fator comunicação do julgamento pelos textos decisórios, não deixa de representar consequência valorizadora do Poder Judiciário. E a sociedade civil se educa melhor, conhecendo assim a intimidade da decisão e do litígio.

Como lidar com a segurança dos processos na rede?

A Lei criou exigências técnicas rigorosas para a segurança do armazenamento dos documentos processuais e para a sua transmissão pelas redes telemáticas. Não tem havido grandes problemas ou questionamentos quanto a esse tópico. O grande fator de insegurança dos processos e dos dados neles disponíveis continua a ser, como o do papel, relacionado com o fator humano. Recursos de tecnologia da informação e da segurança computacional e telemática precisam estar bem guardados, bem geridos e bem dimensionados em ambientes seguros. Isso requer gestão. Gestão é feita por pessoas e profissionais. E o Judiciário tem procurado se cercar de profissionais e gestores de tecnologia bem preparados e atentos com o fator segurança do processo. As informações e os dados processuais têm trafegado nas redes sem riscos de ruptura ou danos.

Com toda a informação que circula na rede e o fácil acesso a esse amplo conteúdo, podemos afirmar que existe privacidade?

Podemos afirmar, sem dúvida, e os fatos não só brasileiros, mas mundiais, vão mostrando isso no dia a dia, que o fenômeno da digitalização eletrônica dos dados e os potentes recursos telemáticos têm conferido à privacidade um valor ontológico quase que formal. Somos invadidos a todo o tempo, por todos os lados da comunicação, por abordagens, tentativas de engodos, engendramentos, os mais diversos e sofisticados. O Brasil necessita, inclusive, copiar a diretiva da União Europeia o mais urgentemente possível, quanto à proteção da privacidade contra recursos eletrônicos. Sem isso, estamos cada vez mais expostos a essas abordagens e aos riscos de danos não só à imagem, mas à individualidade e até ao patrimônio.