O atual presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, tinha 14 anos e ainda era estudante quando três ministros foram afastados da Corte em decorrência de uma estratégia do Conselho de Segurança Nacional assinada pelo presidente Arthur da Costa e Silva. Em entrevista exclusiva ao site, Gilmar Mendes descreve a aposentadoria compulsória de Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e Victor Nunes Leal como um golpe “duríssimo” no Judiciário, e atribui a cassação a “um acerto de contas” dos militares com forças políticas anteriores ao regime. Na opinião dele, não havia, nas decisões e votos dos três ministros, qualquer traço de radicalismo ou extremismo que desse aos militares real justificativa para o decreto de perda dos cargos.

Gilmar Mendes é incisivo ao afirmar que os outros dois ministros aposentados no início de 1969, Ministros Gonçalves de Oliveira e Lafayette de Andrada, pediram para se retirar como um ato de protesto pela cassação dos colegas.

Leia a íntegra da entrevista:

Site – Na sua avaliação, como a era militar marcou a história do Supremo Tribunal Federal?

Ministro Gilmar Mendes – Foi uma fase muito difícil para o Judiciário. No início, o primeiro ato institucional afetou todo o sistema constitucional estabelecido em 1946 e colocou o Judiciário em xeque. Essa foi uma época heróica do STF, na qual houve concessão de importantes habeas corpus que beneficiaram, por exemplo, os governadores de Goiás e de Pernambuco. A institucionalização do regime veio com a Constituição de 67, que procura restabelecer parâmetros democráticos. Mas, em seguida, em 13 de dezembro de 1968, a edição do Ato Institucional n° 5 afetou esses propósitos e suas consequências são conhecidas também no âmbito do Judiciário. Entre elas estão a suspensão das garantias dos juízes, a aposentadoria compulsória dos ministros Victor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva e Hermes Lima, e as duas outras aposentadorias voluntárias, feitas em caráter de protesto, dos ministros Antônio Gonçalves de Oliveira e Lafayette de Andrada. Tal medida afetou duramente a Corte. Em seguida veio a crise decorrente da doença do presidente Costa e Silva e a edição de um novo ato que modificou o texto constitucional de 1967. Era a Emenda 1, de 1969, que estabeleceu novas regras e alterou completamente o texto vigente, mantendo o AI-5 com seus poderes excepcionais.

Site – Os ministros nessa época tinham autonomia para julgar imparcialmente, a exemplo de como acontece hoje?


Ministro Gilmar Mendes
– É claro que era um modelo muito restrito, que impunha muitas reservas mentais e restrições psicológicas aos protagonistas da cena judiciária. Evidentemente, não houve cassação de decisões do Tribunal, mas houve intervenções claras no funcionamento da Corte. Entre elas estava o aumento do número de ministros da Corte pelo AI-2. De 11 eles passaram a ser 16 e, com as aposentadorias decorrentes do AI-5, o número voltou a 11 [a manobra abriu a possibilidade de os militares indicarem mais ministros]. O Tribunal cumpriu um papel relevante, mas evidentemente submetido a limitações explícitas a partir da própria suspensão das garantias dos magistrados. Houve momentos dificílimos, de trauma, de grande intervenção. Quem não haveria de se tornar mais reflexivo diante de tamanha intervenção? Certamente foram momentos extremamente delicados, que podem ter afetado a sua maior autonomia. No entanto, durante o regime militar como um todo, o Tribunal prosseguiu na tarefa de declarar a inconstitucionalidade de leis e também de conceder habeas corpus. Mencione-se, por exemplo, que nesse período foi declarada a inconstitucionalidade de decreto-lei que invocava indevidamente fundamento de segurança nacional para disciplinar questões de locação (RE n° 62.731/GB, Relator Min. Aliomar Baleeiro, Pleno, DJ 28.6.1968). O Tribunal declarou também a inconstitucionalidade de dispositivo da Lei de Segurança Nacional que determinava a suspensão do contrato de trabalho de qualquer pessoa que estivesse sendo processada com base naquele diploma (HC 45.232/GB, Rel. Min. Themístocles Cavalcanti, Pleno, DJ 17.6.1968). Além disso, houve o episódio da Reclamação (Rcl 849/DF - Relator Min. Adalício Nogueira, Pleno, DJ 13.12.1971), em que o STF reconheceu a discricionariedade do procurador-geral da República de ajuizar a representação de inconstitucionalidade. Após restar vencido na questão, o ministro Adaucto Cardoso pediu a imediata aposentadoria. Talvez diante da nossa tradição legalista ou por outras razões, não se conseguiu fechar as portas do Judiciário, e também de fazê-lo em relação ao Congresso.

Site – A atitude dos ministros Lafayette de Andrada e Antônio Gonçalves de Oliveira, que pediram aposentadoria ao saberem das cassações, foi, de fato, um protesto ou pode ser vista como o temor de que o mesmo, mais cedo ou mais tarde, viria a acontecer com eles também?

Ministro Gilmar Mendes
– A característica do AI-5 era a de que os atos decorrentes dele eram incontestáveis, não poderiam ser submetidos a exame ou controle judicial nem mesmo do Supremo, e por isso o próprio Supremo foi atingido de maneira tão radical. Havia um temor generalizado de que, eventualmente, qualquer pessoa pudesse ser atingida por causa de algum pequeno deslize. Muitas vezes corria a notícia de alguém poderia ser cassado. O advogado Sérgio Bermudês, certa feita, me contou que Victor Nunes Leal, no dia da aposentadoria, estava recebendo o presidente da Xerox, que veio ao STF para apresentar as máquinas que seriam usadas no Tribunal. Naquela tarde, já corria o boato da possibilidade de aposentadoria e, por isso, ele acompanhava por rádio o noticiário. Num ponto da conversa, ele disse ao presidente da Xerox: “Olha, nossa conversa a partir de agora é absolutamente inútil porque eu deixei de ser vice-presidente do Tribunal”. Uma situação absolutamente inusitada!

Site – O senhor tem conhecimento de decisões desses três ministros cujo conteúdo poderia ter afrontado os militares?

Ministro Gilmar Mendes – É provável que a aposentadoria compulsória tenha acontecido em razão das vinculações políticas e posições ideológicas anteriores, muito mais do que por decisões específicas que tenham sido tomadas. Parece-me que foi um acerto de contas com forças políticas do passado. O Victor Nunes havia sido chefe da Casa Civil do governo de Juscelino (Kubitschek), que a essa altura já havia sido cassado. Muito provavelmente houve esse tipo de vinculação. Não se tratava de extremistas ou radicais e não havia qualquer decisão de conteúdo radical, ou, como se dizia, anti-revolucionário.

Site – No que essa fase contribuiu para que o Supremo viesse a ser a Corte de hoje?

Ministro Gilmar Mendes –
Ao longo dos anos, especialmente do período autoritário, o Supremo manteve suas atividades, até do ponto de vista técnico, como órgão de controle de constitucionalidade – especialmente no controle direto, abstrato de normas – e foi se aprimorando dentro da experiência da conjugação do modelo difuso, concentrado. A prática do mandado de segurança também teve sequência e o habeas corpus, mesmo com as restrições, continuou a ser concedido [ele era proibido apenas nos crimes políticos]. O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal Militar se destacaram em muitos casos importantes ligados à Lei de Segurança Nacional e eu tenho a impressão de que o Supremo desse período pavimentou o caminho da transição e de certa forma é o embrião desse novo STF da Constituição de 1988, com as responsabilidades políticas de hoje.

Site - Qual a importância da independência do Judiciário na democracia?


Ministro Gilmar Mendes - Eu tenho a impressão que ela é decisiva. Na verdade, a democracia é um regime complexo, se assenta no ideário da decisão da maioria, fixado em períodos determinados, mas um regime que deve respeitar a minoria e ensejar a essa minoria a possibilidade de alternância de poder, de superação daquela maioria eventualmente dominante. A jurisdição constitucional cumpre um papel importante de proteger a minoria contra os abusos da maioria e esse já é um papel importante. Vemos esse quadro nas ações diretas de inconstitucionalidade, quando partidos políticos, notoriamente minoritários, vem ao Supremo contra uma decisão da Câmara ou do Senado ou uma decisão tomada pelo Congresso Nacional. É a minoria dizendo que essa decisão não deve valer porque ela é inconstitucional. Há no Supremo casos importantes quando os partidos de oposição vem ao Tribunal dizendo que uma CPI precisa ser instalada e a maioria que domina a Mesa impede. O Supremo manda instalar a CPI como ocorreu na chamada CPI dos Bingos. O Tribunal está cumprindo a sua função de proteger a minoria, mas o Supremo Tribunal Federal tem outras funções. A defesa dos direitos em geral é uma defesa difícil, como ocorre na defesa de direitos contra o interesse de uma massa majoritária, da opinião pública. Quando nós tomamos decisões controvertidas - e, às vezes, são decisões solitárias como é o caso da decisão do presidente do Tribunal no período de recesso -, muitas vezes nós temos a opinião pública contra o entendimento do Tribunal. Tempos depois dizem que o Tribunal estava certo ao decidir daquela maneira. Não havia outra alternativa porque se tratava da proteção do interesse geral. O Tribunal estava aplicando a Constituição e evitando que interesses eventuais se colocassem sobre a Constituição. Isto é preciso ser destacado. Se nós olharmos o papel do Supremo Tribunal Federal na construção da democracia brasileira, nesses 20 anos, nós vamos ver que em momentos decisivos o Tribunal atuou como órgão de moderação evitando os abusos das CPIs, do Judiciário, de policiais, do Ministério Público e de um ou outro juiz do próprio Tribunal. Muitas vezes temos corrigendas aqui mesmo. Então, nós vamos fazer um balanço e ver que o resultado histórico é, realmente, representativo. É um órgão que tem a missão de contrariar muitas vezes uma opinião que se consolidou, a opinião publicada, a opinião determinada. Por vezes, a opinião pública não é devidamente informada e toma partido a toda hora como nós tomamos partido num jogo de futebol. Mas a missão do Tribunal é muito mais complexa, é algo realmente que precisa ser visto nesse contexto, por isso que nós não precisamos e nem devemos ficar amofinados quando somos criticados por uma ou outra decisão porque isso se insere num contexto. Podemos errar? Claro. Muitas vezes poderia haver decisão de outra maneira, mas é preciso ver essas decisões nesse contexto complexo, tendo em vista proteger as minorias e os direitos fundamentais e evitar que nós nos entusiasmemos pelo grito da turba. É muito fácil ser aplaudido de uma decisão e depois ser criticado por uma outra. É muito fácil a opinião pública mudar de opinião e ela mesma, que dizia que aquela posição era certa, agora falar que é errada. Então, é preciso ter cuidado com esse tipo de situação e eu acho que o Tribunal tem cumprido bem seu papel. O sujeito que critica um habeas corpus muitas vezes é, daqui a pouco, um impetrante de um habeas corpus de seu próprio interesse. Então, a doutrina da jurisdição constitucional criminal da liberdade que se forma e se consolida, ela favorece a todos, não especificamente aquele que é beneficiário direto da ordem.

Site - O senhor pode fazer um comparativo entre o momento da suspensão da concessão de habeas corpus e o da liberdade em que vive o país hoje, analisando o alcance desse instrumento em questões polêmicas?

Ministro Gilmar Mendes - Na verdade, nós mudamos muito. Já no modelo de extensão gradual, que se iniciou no regime militar, o país foi ganhando novas formas, novos ares e, após a Constituição de 1988, nós tivemos uma reconformação institucional nos direitos e liberdades em geral, inclusive no campo do habeas corpus. Temos déficits de uma sociedade desigual, mas há uma consciência jurídica muito evidente, tanto é que qualquer cidadão, o mais simples deles, tem a ideia de que pode reclamar, de que pode protestar, de que pode ir ao Judiciário. Às vezes nós apontamos déficits ou deficiências entre pobres e ricos, mas nós sabemos que isso decorre não de um descrime feito pelo judiciário ou por um estabelecimento de uma justiça de classe, mas nós sabemos que as necessidades são atribuíveis à falta de assistência jurídica, de assistência judicial efetiva, gratuita. As Defensorias Públicas às vezes não funcionam a contento, mas nós temos hoje meios de enfrentar eventualmente as condições de arbitro, tanto é que chegam ao Supremo Tribunal Federal habeas corpus feito em papel de pão, feito por alguém no presídio na defesa de interesse próprio ou de terceiro. O caso da progressão de regime que deu ensejo a uma declaração de inconstitucionalidade de uma lei que havia sido declarada constitucional foi provocada, no Supremo Tribunal Federal, por iniciativa de um preso que estava recolhido a um dos presídios do Brasil e que trouxe o tema e o tema ocupou o Plenário da Suprema Corte por vários meses até que o Tribunal chegasse à conclusão de que aquela lei - que inicialmente era inconstitucional que estabelecia que todos deveriam cumprir as penas de crimes hediondos em regime fechado - que aquela lei era inconstitucional. Veja, portanto, que há essa abertura. De quando em vez, reclama-se da liberalidade da concessão de habeas corpus especialmente em casos polêmicos. Naqueles em que a opinião pública julga que as pessoas deveriam ser mantidas presas. Creio que hoje a sociedade tem plena consciência de que este é um grande instrumento para a sua defesa e para a defesa de seus iguais.

Fonte: STF