A busca pela igualdade de gênero vem ganhando cada vez mais relevância na sociedade brasileira. No Poder Judiciário, é nítido o reflexo do empoderamento feminino. Do total de 130 desembargadores ativos no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), 24 são mulheres. Apesar dos avanços recentes, a desembargadora Heloísa Combat, da 4ª Vara Criminal, afirma que o preconceito contra a mulher na magistratura ainda existe, mas se mostra bem mais sutil. Nesta entrevista à Amagis, ela destaca as contribuições que as mulheres deram ao Judiciário e comenta as ações que a Justiça mineira tem adotado para reduzir os casos de violência doméstica e familiar.
Como o Judiciário mineiro tem trabalhado para cada vez mais ser protagonista de ações que reduzam os casos de violência contra a mulher?
O Judiciário tem adotado medidas de interlocução com a sociedade muito efetivas. Recentemente, a Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Comsiv) foi candidata no Prêmio Innovare. Programas como "O Judiciário vai à Escola" são importantíssimos porque tudo começa pela educação. A Comsiv também fez um trabalho recente com o Instituto Albam, que trata do agressor. Os assistidos pelo Albam têm índices de reincidência irrisórios. Alguns nem querem sair do programa. Se você não tratar o agressor, nada muda. Penso que o Judiciário tem que estar nas ruas, na vida das pessoas. Há vários juízes fazendo muitos trabalhos excelentes, principalmente no interior. Dois ótimos exemplos são o do juiz Serlon Silva Santos, da Vara Criminal e da Infância e da Juventude da comarca de Patrocínio, e o da juíza Lúcia de Fátima Magalhães Albuquerque Silva, da Vara Criminal e da Infância e da Juventude da comarca de Ouro Preto.
E o que o Judiciário tem feito para proteger essas mulheres vítimas de violência doméstica?
As tornozeleiras eletrônicas têm cumprido bem essa função. Além disso, precisamos investir mais em casas-abrigo como a "Benvinda" – onde a mulher que está em risco pode ser acolhida. O problema é que, em geral, as mulheres que são vítimas de violência doméstica não querem sair de casa porque não querem se expor ou mudar sua rotina. Mas tem um momento em que ela precisa ser convencida e ir para locais como esse. Nesses espaços, nós ficamos encantados de ver a força dessas mulheres, que precisam também receber assistência psicológica e ser empoderadas. Elas têm que aprender um ofício, ter renda própria, ser independentes financeiramente. O problema é que o Estado, sozinho, não dá conta de tudo isso. A sociedade precisa se unir para atuar na defesa dessas mulheres, e o Judiciário precisa agilizar e simplificar os processos que envolvem violência contra elas.
A ministra Cármen Lúcia, do STF, declarou este ano que ainda existe preconceito contra a mulher na magistratura. A senhora concorda com a afirmação?
Com certeza. O preconceito existe, mas já diminuiu muito. Antigamente, era muito pior. Era algo escancarado. Hoje, é bem mais sutil e em menor frequência, mas ainda há. Ainda é possível escutar conversinhas do tipo: ‘ela até julga bem, mesmo sendo mulher’. Quando entrei para a magistratura, em 1985, as pessoas estranhavam ao me ver julgando seus processos. Elas esperavam encontrar sempre um homem. Quando fui fazer concurso para ingressar na magistratura, em Belo Horizonte, dois juízes me diziam que eu não ia passar porque o Tribunal não queria magistrada. Pois eu não só passei, como fui a primeira mulher separada judicialmente a ingressar na magistratura mineira. Meus colegas que me perdoem, mas até hoje o sexo é fator que interfere nas promoções. Se há um homem e uma mulher com as mesmas qualificações disputando uma promoção, o homem leva a melhor. Em 90% dos casos, isso ainda acontece. Até hoje, e já estamos no século XXI, tivemos uma mulher ocupando um cargo de direção do TJMG, que foi a desembargadora Márcia Milanez, na 3ª vice-presidência. Por isso, acredito que o melhor exercício que podemos fazer é nos colocar no lugar do outro. A mulher não é mais competente que o homem. O que acontece é que a mulher, por conta da discriminação que sofre, se dedica, muitas vezes, mais que o homem. Como temos que matar um leão por dia, nós nos esforçamos mais para conseguirmos essa igualdade. Temos que ter os mesmos benefícios e os mesmo deveres.
Quais são as maiores dificuldades que uma magistrada encontra na carreira por ser mulher?
A vida itinerante das magistradas não é fácil, mas a mulher se vira muito bem. A minha experiência, no início da carreira, não foi fácil. Eu era separada e tinha três filhos. Você acaba relegando a família. Meus filhos sofreram com a minha ausência. Muitas vezes não pude ir à reunião da escola, às festinhas de aniversário e a outros compromissos porque tinha que trabalhar no interior. Não havia substituto. Eu tinha que fazer a compra do mercado, cuidar do filho doente, resolver problema de escola. Em geral, esse papel é feito pela mulher. Nossos colegas, na maioria das vezes, têm a mulher para cumprir isso, mas eu tive que fazer sozinha. As magistradas que têm apoio do marido são mais felizes, mas de qualquer forma elas não deixam de vivenciar o seu papel. É difícil conciliar tudo, a gente sofre, tem complexo de culpa, mas dá para levar. O segredo é se organizar e pedir a Deus força e luz para seguir adiante.
Quais as principais contribuições que as magistradas trouxeram para a Justiça mineira?
No direito de família, as magistradas que atuam nessa área contribuem muito com sua vivência pessoal. Esse olhar feminino sobre a questão é extremamente relevante. Existe uma maior sensibilidade em algumas mulheres. E isso se traduziu em avanços na prestação jurisdicional, como os que foram implementados pela desembargadora gaúcha Maria Berenice Dias. Sou grande admiradora de suas teses avançadas.
Quem são seus ídolos?
A desembargadora Maria Berenice Dias e a ministra Cármen Lúcia, por suas posturas firmes, pela compostura, pela seriedade e dedicação ao trabalho. Com suas ideias avançadas e arrojadas, Maria Berenice contribuiu muito para o direito de família e para assuntos como as uniões homoafetivas, que sempre fui favorável. Ela tem uma mente muito aberta e se dedica a isso até hoje. Admiro Cármen Lúcia por sua trajetória de vida, por sua dignidade, simplicidade e humildade. São duas mulheres admiráveis. No Judiciário de Minas, lamento não ter conhecido a desembargadora Branca Margarida Pereira Rennó, mas me espelhei muito nos exemplos das desembargadoras Jane Ribeiro Silva e Maria Elza de Campos Zettel, entre outras.
*Confira, na edição de janeiro do Jornal Decisão, a segunda parte da entrevista com a desembargadora Heloísa Combat, na qual a magistrada aponta os principais avanços do Judiciário mineiro.