Rogério Medeiros Garcia de Lima

A Lei “Ficha Limpa” (Lei Complementar nº 135/2010) é importante marco. Originou-se de iniciativa popular e expressa a saturação da sociedade brasileira diante de recorrentes casos de corrupção na vida pública. Esse sentimento se alastra em outras esferas: na Câmara Municipal de Belo Horizonte tramita proposta de lei idêntica, para escolha dos ocupantes de cargos de confiança no âmbito municipal.

O Supremo Tribunal Federal decidiu que a nova lei, promulgada em 04.06.2010, não se aplicava às eleições de outubro daquele ano, porque o artigo 16 da Constituição Federal estabelece: “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”.

Também constitui importante parâmetro democrático a atuação do STF como árbitro final de importantes questões da vida nacional. É prática secular nos Estados Unidos, onde, por exemplo, a Suprema Corte determinou que os acusados de terrorismo, presos em Guantánamo, devem ser julgados segundo a Constituição e leis de garantia aplicadas a qualquer cidadão norte-americano. Nem por isso o então presidente George W. Bush, a mídia e a opinião pública execraram o tribunal.

É preciso destacar que o STF convalidou a Lei “Ficha Limpa” no que diz respeito à sua validade formal. Ou seja, não reconheceu alegados vícios na tramitação do projeto original. Inaplicável às eleições de 2010, a lei vigora potencialmente para as eleições futuras, embora existam algumas pendências passíveis de questionamento. Por exemplo, ela se aplica a quem cometeu crimes, abuso de poder ou atos de improbidade administrativa e foi condenado, definitivamente ou por órgão judiciário colegiado, antes de sua vigência? Ou somente àqueles cujas condenações foram impostas após 04.06.2010?

Em louvável iniciativa, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ingressou com ação declaratória de constitucionalidade no STF, para que a Corte, com bastante antecedência, afirme a vigência integral da Lei Complementar 135 a partir das eleições de 2012.
Sou adepto da eficácia plena da Lei “Ficha Limpa”, ao incluir nos seus rigores também aqueles que foram condenados por crimes, abuso de poder ou atos de improbidade administrativa anteriormente a 04.06.2010.

O saudoso jurista mineiro Caio Mário da Silva Pereira salientava ser o Direito um “todo inteiro” (Del Vecchio), complexo sistema de valores. Ora, não resta dúvida de que a moralidade administrativa é dos mais eloqüentes valores aclamados pelo povo brasileiro e expressos na Constituição Federal de 1988 (artigos 14, §9º, e 37, caput, e §4º), Lei Federal nº 9.784/99 (artigo 2º, parágrafo único) e Constituição do Estado de Minas Gerais (§ 2º do artigo 13).

O administrador público não pode colocar seus poderes a serviço de interesses pessoais exclusivos e de conceitos que discrepam de valores morais respeitáveis (Caio Tácito, Moralidade Administrativa, Revista de Direito Administrativo, nº 218, 1999, pp. 1-10). Esses valores sociais relevantes são traduzidos juridicamente nos princípios. Cada área do Direito não é senão a concretização de certo número de princípios, que constituem o seu núcleo central. Eles possuem uma força que permeia todo o campo sob o seu alcance (Celso Ribeiro Bastos, Curso de Direito Administrativo, 1996, p. 23). Os princípios governam a Constituição e a governam nos termos absolutos que a legitimidade impõe. Em caso de conflito constitucional, o princípio é superior à regra. O princípio se aplica, a regra não (Paulo Bonavides, Reflexões - Política e Direito, 1998, pp. 22/29).

O princípio da moralidade, sem dúvida, possui força normativa direta. Sua aplicação, no caso da Lei “Ficha Limpa”, torna inelegíveis todos os enquadrados nos seus rígidos termos. Não importa que a prática da ilicitude seja anterior à vigência da lei.
Interpretar uma lei importa, previamente, em compreendê-la na plenitude de seus fins sociais, a fim de determinar o sentido de cada um de seus dispositivos. Somente assim ela é aplicável a todos os casos que correspondam àqueles objetivos. O primeiro cuidado do hermeneuta contemporâneo consiste em saber qual a finalidade social da lei, no seu todo, pois é o fim que possibilita penetrar na estrutura de suas significações particulares. O que se quer atingir é uma correlação coerente entre o todo da lei e as partes representadas por seus artigos e preceitos, à luz dos objetivos visados (Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito,1980, p. 285).

Por fim, incomodo-me com a crescente “judicialização” da vida social no Brasil, notadamente no campo da política. A primeira trincheira de combate aos políticos “fichas-sujas” são os partidos políticos, que deveriam recusar suas candidaturas. Falhando os partidos, o dever de rechaçar tais políticos é do cidadão eleitor. Não votar em quem “rouba, mas faz” ou em palhaços, por ser engraçado. Depois não adianta xingar os políticos e nem o Judiciário.

* O artigo foi publicado no jornal Gazeta de São João del Rei.

***Sanjoanense, desembargador do TJMG, doutor pela UFMG e professor universitário; este artigo foi publicado à Gazeta de São João del-Rei, edição de 30.04.2011, p. 4.