Georgia Baçvaroff, Izabela Machado e Tiago Parrela
Quando abre os olhos, depois de uma noite de sono, doutor Teixeira visualiza a pilha de processos, a mesa, o computador e os materiais de trabalho de seu gabinete, onde ele também passará o dia, acompanhado, sempre, de homens armados e sem qualquer privacidade. São 24 horas por dia vivendo nas dependências do fórum e distante da família, que precisou ser transferida para Buenos Aires. Nem mesmo nos seus sonhos, Teixeira consegue sair dali.
Doutor Teixeira é o juiz personagem principal do filme 'Foro Íntimo', cujas gravações aconteceram dentro do Fórum Lafayette, em Belo Horizonte. A história foi baseada em fatos reais. O filme é o primeiro longa de ficção do diretor Ricardo Mehedff, e a inspiração para o roteiro, escrito a quatro mãos com Guilherme Lessa, surgiu há cerca de cinco anos, quando Mehedff começou a ler notícias sobre juízes brasileiros que viviam sob proteção policial no País.
Mehedff contou que, durante o processo de elaboração do roteiro, entrevistou quatro magistrados brasileiros – sendo um mineiro – que relataram situações extremas, como o fato de terem que dormir no próprio gabinete e até em um quartel do Exército, para minimizar o risco de um possível atentado. “Para mim, isso era a grande ironia e uma inversão de valores. Um juiz, que estava ali para julgar e, às vezes, condenar e prender alguém, encontrava-se igualmente preso nesse sistema”, afirmou o diretor.
Fórum Lafayette
Como parte de sua pesquisa, Mehedff passou várias tardes no Fórum Lafayette acompanhando audiências das varas criminais, contando com a ajuda do então diretor do Foro da Comarca de Belo Horizonte, juiz Cássio Fontenelle. Reconheceu que esse processo foi fundamental para a composição do filme, mas que, ao fim do dia, saía sempre exausto e tenso por absorver toda aquela “carga dramática”. “Ao chegar ao andar das varas criminais e de tóxicos, já sentia uma energia diferente, pesada. Ficava impressionado. Quando ia embora, levava tudo aquilo para casa. Fico imaginando o juiz, que precisa lidar diariamente com isso”, relatou o diretor.
Brasil doente
'Foro íntimo' mostra um juiz fragilizado, prestes a perder o controle de suas emoções e atormentado por situações que, muitas vezes, parecem mais alucinações. O filme tem uma forte carga psicológica e carrega uma tensão crescente. “Eu quis construir um personagem humano, frágil, como todos nós somos. De forma alguma quis colocá-lo em um pedestal, como muitos enxergam um juiz”, disse o cineasta.
O diretor contou ainda ter ficado espantado com o quanto a realidade brasileira se assemelhava à ficção. “De certa forma, fiz uma analogia do Brasil atual, pois vejo um país doente. Não só a instituição da Justiça, mas todas as instituições brasileiras. O juiz do filme representa o Brasil que não consegue mais andar para frente e vive sob ameaça de todos os lados”, comparou.
Para Ricardo Mehedff, todo o processo de produção do filme o ajudou a enxergar o quanto as pessoas, principalmente aquelas que nunca precisaram recorrer à Justiça, desconhecem o próprio sistema judicial brasileiro. “Existe um estereótipo criado com a ajuda de filmes hollywoodianos que glamuriza a Justiça, que a coloca muito distante da população. No Brasil, não há glamour nenhum nisso. É bem o contrário”, pontuou o diretor.
“Ao chegar ao andar das varas criminais e de tóxicos, já sentia uma energia diferente, pesada.
Ficava impressionado.” - Ricardo Mehedff- Diretor do filme
Solidão
O juiz da ficção é interpretado pelo ator Gustavo Werneck, que mergulhou no universo da Justiça e dos processos criminais para compor o “Doutor Teixeira”, seu primeiro papel protagonista no cinema. Além de ator, Werneck também é médico e, por conta disso, se identificou com a solidão com a qual o juiz se depara em muitos momentos de seu trabalho.
Antes de as gravações começarem, ele também passou alguns dias no fórum acompanhando o trabalho de magistrados da vara criminal. “Percebi que o juiz é um homem absolutamente normal, mas que, a partir do momento que veste a toga e precisa lidar com atos graves cometidos por outros homens, ele passa a estar sozinho e a ter uma escuta interna muito forte. Como médico, também tomo decisões importantes e solitárias. O médico cura a doença no ser humano, e o juiz, de certa maneira, também aplica um tipo de remédio com a intenção de reabilitar aquela pessoa”, avaliou Werneck.
Profissão de risco
Para o juiz Wagner de Oliveira Cavalieri, titular da Vara de Execuções Criminais de Contagem (Grande BH), a Magistratura pode ser considerada uma profissão de risco na medida em que os juízes atuam de forma individualizada e direta. “O magistrado, ao decidir, acaba por contrariar interesses de toda espécie, e isso pode lhe causar situações de risco”, admitiu o magistrado. De acordo com Cavalieri, enquanto em outras profissões são as instituições que agem na visão da sociedade, na Magistratura, há uma personificação de um ato que é do Poder Judiciário. Com isso, o juiz atrai para si sentimentos diversos, entre eles os de vingança ou revanche.
É para evitar esse tipo de situação que o juiz Odilon de Oliveira, da 3ª Vara Federal de Campo Grande (MS), recebe escolta da Polícia Federal há nada menos que 18 anos, desde que atua na fronteira do País combatendo o tráfico de drogas. Ele avaliou que esse aparato estatal de segurança é indispensável para a proteção do magistrado e da família e que, “infelizmente, o Brasil não está preparado para enfrentar essa realidade, sendo imprescindível a conscientização dos Tribunais”.
Para Odilon de Oliveira, a vida sob a escolta deixa o mundo muito reduzido para quem recebe a proteção. “É como se vivêssemos em regime semiaberto ou de prisão domiciliar”, disse o juiz, ressaltando o grande numero de restrições impostas pela segurança. “Ter escolta não significa viver in dolce farnient, exatamente por essas limitações e por constrangimentos inerentes à própria situação”, descreveu Oliveira.
“A Amagis vem desempenhando papel fundamental no aperfeiçoamento das condições de segurança dos magistrados e seus familiares, com a Comissão de Segurança e o acompanhamento de diversas situações que envolvam magistrados.” - Juiz Wagner Cavalieri
Missão
Embora passe por tudo isso e viva situações muitas vezes inimagináveis, como bem retratou o filme ‘Foro Íntimo’, Odilon de Oliveira afirmou que não escolheria outra profissão. “O interesse social não deve ser lesado por afronta de criminosos contra magistrados. Eu faria tudo de novo, se fosse preciso”, enfatizou o juiz.
Criar uma cultura de segurança de autoridades, com treinamentos periódicos para exercer a proteção dos magistrados, seria uma medida eficaz no combate ao cenário de ameaças contra o Judiciário, na opinião do magistrado. Ele defendeu ainda que seja criada uma estrutura em cada Tribunal de Justiça e em cada fórum, com viaturas blindadas e composta por agentes do próprio Poder Judiciário, com esse objetivo.
“O interesse social não deve ser lesado por afronta de criminosos contra magistrados.
Eu faria tudo de novo, se fosse preciso.” - Juiz Odilon de Oliveira
O juiz Wagner Cavalieri também defendeu o aprimoramento constante dos mecanismos de segurança, bem como treinamentos tanto para magistrados quanto para seus familiares, a fim de que adotem comportamentos em suas vidas profissionais e pessoais de acordo com as peculiaridades das funções que exerçam. De acordo com ele, o aperfeiçoamento dos sistemas de câmeras de segurança, com monitoramento ao vivo e a distância, aumento dos efetivos de vigilantes ostensivos e exigência da presença da Polícia Militar, ou Guarda Municipal, nos fóruns, durante os horários de expediente, são medidas que poderiam contribuir para a segurança dos magistrados.
“A Amagis vem desempenhando papel fundamental no aperfeiçoamento das condições de segurança dos magistrados e seus familiares, com a Comissão de Segurança e o acompanhamento de diversas situações que envolvam magistrados. Além disso, a Associação atua de forma harmônica com o Centro de Segurança Institucional do TJMG, somando esforços e cobrando melhorias das condições para cada magistrado do Estado”, destacou Cavalieri.
Secretário-adjunto da Secretaria de Segurança de Magistrados da AMB, o desembargador Wanderley Salgado de Paiva destacou o trabalho que tem sido desenvolvido na Associação, em parceria com as demais Associações estaduais e Tribunais de Justiça de todo o País, com o objetivo de orientar os magistrados filiados, bem como os integrantes dos respectivos tribunais. Projetos para a área de segurança, como a criação do "botão de pânico" nos respectivos gabinetes e veículos, armamento e veículos blindados estão entre as iniciativas, assim como a cartilha 'Magistrados seguros: dicas preventivas de segurança', lançada recentemente pela AMB, na sede da Amagis, com objetivo de promover dicas mínimas para os magistrados e seus familiares.
Foro Íntimo
Depois de dez anos enfrentando de perto as ameaças de traficantes e quadrilhas organizadas, o desembargador Eli Lucas de Mendonça aposentou-se, em 2009, e não quer reviver as difíceis lembranças. Sua palavra hoje é de agradecimento à família, aos colegas magistrados e aos servidores que conviveram com ele durante o difícil período em que atuou como juiz titular na Vara de Tóxicos de Belo Horizonte, enfrentando perigosos narcotraficantes do País. “Os demais, que não me compreenderam e, por muitas vezes, quiseram ser meus algozes, eu perdoo, relembrando Cristo preso na Cruz, que, diante do sofrimento, pediu ao Pai: ‘Perdoai, eles não sabem o que fazem’”, citou ele, concluindo que “lidar com seres humanos é muito complexo”. O desembargador contou que, apesar das dificuldades que faziam parte do exercício da profissão, sobreviveu, honrando o cargo que exerceu.
Hoje, Eli Lucas de Mendonça tem o descanso merecido. Ele reafirmou a importância da compreensão da família, a solidariedade da Magistratura e o apoio do Tribunal de Justiça, bem como da Amagis, para o bom desempenho da perigosa e estafante função judicante. “São indispensáveis a presença do TJMG e o papel da Associação dos Magistrados, no sentido de estar ao lado do juiz, defendendo suas prerrogativas e buscando melhores condições de trabalho, aí incluindo a segurança pessoal e familiar. Isso fortalece a carreira e possibilita tranquilidade no exercício pleno da função judicante”, afirmou o desembargador.
Consequências
Ao expor um juiz abalado psiquicamente, o filme Foro Íntimo permite ao espectador refletir sobre até que ponto vale a pena a dedicação e o sacrifício impostos pela profissão e quais as consequências disso. Para o ator Gustavo Werneck, o confinamento, a solidão nas decisões e a enorme frustração por não conseguir as provas, que ele julgava fundamentais no processo, acabam por adoecer o personagem.
Na vida real, o juiz Wagner Cavalieri acredita que não se pode exigir do magistrado, ou de qualquer outro servidor público, que ele abra mão de tudo em função de seu exercício e em favor da sociedade. “A sociedade é corresponsável pela paz social e pela preservação dos valores éticos e morais que devem sustentá-la. Todavia, quem assume o compromisso de cumprir sua missão deve estar preparado para enfrentar momentos de crise e dificuldades”, reconheceu.
Para o juiz da Vara de Execuções de Contagem, a exibição do filme pode ajudar, na medida em que participa a sociedade e a própria Magistratura da evolução dos riscos que a classe enfrenta diuturnamente. “Mas também penso que devemos mostrar nossas dificuldades, mas sem expor nossas fragilidades”, afirmou.