Ao longo do processo, o casal mudou de ideia e passou a aceitar uma criança com até seis anos de idade.
Enquanto eles atualizavam o cadastro, outros casais faziam o mesmo no país.
Dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) mostram que os casais selecionam cada vez menos a cor, o sexo e a idade dos filhos.
Entre 2010 e 2014, a proporção de pretendentes que aceitava só crianças brancas caiu de 39% para 29%. Já a de indiferentes em relação à cor passou de 29% para 42,5%.
Thales e Flávia adotaram há um ano Maria (nome fictício), negra, na época com três anos --ela passou dois à espera de uma família.
Também aumentou o percentual dos que aceitam crianças com três anos ou mais. Em 2010, eram 41% do total de interessados; neste ano, são 51,5%.
Para especialistas, ao menos três fatores explicam a mudança: a participação obrigatória dos candidatos a adoção em cursos oferecidos por ONGs e varas de infância e juventude, o trabalho de grupos de apoio e a maior divulgação do processo.
"Demorou para dar resultado, mas, a cada ano, conseguimos conscientizar mais que não interessa a faixa etária [da criança]. Filho é para a vida inteira", diz Reinaldo Cintra, juiz da coordenadoria de Infância e Juventude de SP.
A mudança de perfil dos futuros pais os aproximam das crianças que estão nos abrigos, já que a maioria delas é negra e mais velha.
DESCOMPASSO
Apesar disso, os requisitos de cor, idade e gênero, somados à falta de estrutura do Judiciário, ainda são apontados para explicar a existência de até seis pretendentes para cada criança apta à adoção.
Para a Corregedoria Nacional de Justiça, o número superior de interessados é positivo. O problema está na existência de crianças "indesejadas" pelos pretendentes.
Das crianças disponíveis para adoção, 78,5% têm mais de dez anos, 77% têm irmãos (e não podem ser privadas do convívio com eles) e 22%, alguma doença.
No país, há 30,9 mil pretendentes na fila de adoção, para 5.456 crianças aptas --sendo 67% pretas ou pardas.
De acordo com o juiz Cintra, sempre haverá interessados em adotar crianças menores. "O sonho de muitos é ter um recém-nascido. Não critico, mas as pessoas precisam saber que demora."
'Tá estranhando? É minha mãe sim', diz garota adotada
Mulher branca escolheu menina negra, mais velha e com dois irmãos, com os quais a criança mantém contato
'Não dá para dizer que não gerou insegurança, mas quando a conheci vi que não tinha razão', afirma mãe adotiva
É assim que Evelin, 10, descreve o primeiro encontro com a mãe, Aurea Medrado, 46, e a irmã, Mariana, 15.
Um mês depois, a menina, com 4 anos, partia do interior para São Paulo, com uma malinha e uma boneca Mônica. "Ela prometeu. E eu confiei", conta Evelin.
Aurea e o marido, ainda casados na época, fizeram uma adoção tardia (quando a criança já não é mais bebê), inter-racial (a filha é negra; Aurea, branca) e compartilhada: Evelin tem dois irmãos, com os quais mantém contato frequente, adotados por dois casais.
Mas nada com que a família não soubesse lidar. "Teve um dia no mercado em que um senhor ficou olhando para mim e minha mãe. Aí eu falei: Você tá estranhando, né? Ela é minha mãe, sim", conta Evelin, rindo.
A resposta foi um pedido de desculpas, seguido de um "É que sou do interior".Ao que a menina emendou, agora segundo a mãe: "Eu também sou, de onde você é? No seu interior não tem adoção?"
Para Aurea, a espera pela adoção poderia ser resolvida se os pretendentes buscassem menos um perfil idealizado de filho.
"Hoje os candidatos descrevem como é a criança desejada por eles", afirma. "O foco poderia ser invertido: será que posso ser útil para a criança que existe?"
Aos seis anos, Elisa (nome fictício) mudou sua história após ser adotada por Márcia de Paula, 44, e Ailson Katsumata, 56, há um ano.
"Existem ideias preconcebidas. Não dá para dizer que não gerou insegurança. Mas, depois que a conheci, vi que não tinha nenhuma razão de ser", conta Márcia.
NOVA CHANCE
Já o casal Fábia Simões, 39, e Renata Longui, 35, estava decidido: ao preencher o cadastro, não inseriram restrições de cor nem de gênero.
Também aceitavam adotar irmãos de até dez anos.
Passaram-se nove meses até a chegada de Carlos Henrique, 8, que é negro, e Giovana, 7, branca, ambos irmãos biológicos e havia quatro anos em um abrigo.
O longo tempo de espera fez com que o juiz escrevesse na sentença que "a vida deu uma nova chance" para os dois terem uma família.
"Parece que eles sempre foram nossos", afirma Renata.
Fonte: Folha de São Paulo