Sob o título “Que justiça queremos?”, o artigo a seguir é de autoria de Germano Siqueira, vice-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra).
Setores da sociedade brasileira, avessos ao legítimo papel contramajoritário e afirmativo dos direitos fundamentais que deve ser exercido pelo Poder Judiciário, geralmente produzem discursos a favor da minimização de seu papel institucional, ao argumento de que encarna uma estrutura pesada e de resultados questionáveis para a nação. São os mesmos que jamais informaram a respeito dos ganhos para sociedade, decorrentes da atuação dos juízes, mesmo debaixo de uma lógica processual perversa, causa real do embaraço à efetividade das decisões judiciais.
Esses mesmos sujeitos animam-se em apresentar soluções mágicas ao povo brasileiro, que ao cabo consistem em “congelar” a estrutura judiciária em favor do estimulo à criação de mecanismos de justiça privada (mediação e arbitragem), alternativa tão falaciosa quanto as promessas de que o Brasil seria um novo país em termos de infraestrutura até a Copa do Mundo de 2014.
Por conta desse equivoco, sem demanda popular, sem base democrática, sem discussão no âmbito da Magistratura e derivada de diagnósticos firmados por comissões fechadas no âmbito do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), formadas predominante por atores que não conhecem efetivamente a estrutura da Justiça brasileira, resultou, por exemplo, o contrassenso institucional representado pela Resolução 184 do Conselho Nacional de Justiça (impeditiva da criação de novos órgãos, cargos e funções) e que, na prática, restinge o acesso da população ao Judiciário, em decorrência estimulando a criação de nichos privados de mercado profissional (os mediadores e conciliadores), sem compromissos deontológicos e sem as dificuldades do concurso público que os habilite a exercer tão importante mister.
Se hoje é claramente perceptível dentro e fora do Judiciário, ressalvadas as raras vozes contrárias à independência judicial, que a carreira da Magistratura vem paulatinamente tornando-se desestimulante, no horizonte acena-se com um presente de grego para a sociedade, representado pela virtual criação de uma justiça privada sem travas de acesso e sem controle ético-disciplinar de seus agentes.
Isso indica como resultado, logo ali, soluções desqualificadas dos conflitos e danos sociais inevitáveis, como já ocorreram seguidas vezes nas comissões de conciliação prévia trabalhistas, instituídas pela Lei 9.958/2000, acusadas de fraudes que as levaram ao total descrédito.
Verifica-se, portanto, uma tendência e uma opção de valorizar as ditas soluções alternativas de composição de conflitos, enquanto no trato das questões do Poder Judiciário, o rebaixamento das condições materiais de trabalho e o desinteresse pela superação desse estado de coisas é patente.
A entrega da solução de conflitos a agentes privados e o abandono da priorização do aparelhamento do Poder Judiciário –-o que deve ser alertado-– representam, portanto, um imenso equívoco. Haverá, a um só tempo, o encarecimento do acesso aos meios de pacificação social, perda de qualidade decisória (pelo descontrole da atuação ético-profissional dos agentes envolvidos, que não se submetem a corregedorias) e vedação do acesso à Justiça Pública aos mais pobres.
Já disse o STF, no julgamento das ADI’s 2139 e 2160, que é possível o acesso à Poder Judiciário sem percorrer as vias prévias da conciliação (Lei 9.958), mas nem isso tem sido um fator de inibição.
Não é a privatização da Justiça que resolverá a crônica litigiosidade nacional, entretanto, que leva o país a conviver com quase 100 milhões de processos em curso.
O Conselho Nacional de Justiça, em 2012, divulgou a lista dos cem maiores litigantes do Brasil e detectou que, desse volume, a Administração Pública (federal, municipal e estadual), juntamente com o setor financeiro e de telefonia, atende pelos indicativos dos maiores demandantes e demandados do Judiciário.
Na listagem concretamente considerada figuram a União, o INSS, a Fazenda Nacional, vários municípios brasileiros e diversas instituições financeiras como os principais residentes dos polos ativo a passivo, o que decorre da qualidade dos serviços diretos ou concedidos prestados ao povo brasileiro, da legislação previdenciária e tributária complexa, da cultura de litigiososidade que o próprio Executivo desenvolveu e da intenção de frustrar –pelo decurso do tempo em demandas vintenárias ou trintenárias– o direito legítimo de outrem, percorrendo-se todas as instâncias do Judiciário pelo benefício de uma legislação processual condescendente com o espírito emulativo e caprichoso, para retardar o cumprimento da decisão.
Não fosse pouco, no caso da Fazenda Pública, existe a truanesca situação de pagamento via precatório, ordinariamente descumprido nos Estados e Municípios, sem que até hoje se tenha visto casos de responsabilização dos respectivos administradores.
Nesse contexto, é importante reconhecer que os juízes expressam o poder político uno do Estado e é a estes que, na jurisdição, em caráter definitivo, cabe –-por exemplo-– restringir a liberdade de pessoas, desfazer, refazer, autorizar, desautorizar, anular, validar ou invalidar atos jurídicos, responsabilizar agentes por atos privados e administrativos (inclusive a Presidente da República), bem como declarar a validade de diplomas legislativos, tudo em perfeito equilibro constitucional.
Apenas à magistratura tem cabido exercer, a duras penas, o papel de equilíbrio social em uma sociedade cada vez mais tensionada, mesmo carecendo de maiores e melhores instrumentos.
Em que pesem tais dificuldades, quer quanto ao aparelhamento humano, material e processual, os dados revelam que o Poder Judiciário, na medida que sua estrutura cresce e se implanta, consegue dar respostas positivas para a sociedade e para o próprio Estado, do ponto de vista da satisfação de direitos, da distribuição de recurso e da arrecadação de contribuições sociais e tributárias, sendo este o caminho para a paz social e não o sucateamento dessa essencial estrutura de poder.
Para exemplificar: em 2004, na Justiça Federal, entre RPVs e Precatórios, foram pagos R$ 4,67 bilhões para 582.213 beneficiários; nos anos seguintes, pelo incremento da estrutura de trabalho, esses valores chegaram a R$ 14,87 bilhões em favor de 1.219.393 beneficiários (Dados do Conselho da Justiça Federal).
Por força da atuação típica daquele órgão judiciário, são ainda revertidos para a União, em média, a cada ano, R$ 6 bilhões.
No âmbito da Justiça do Trabalho, conforme dados do Conselho Superior da Justiça do Trabalho, no ano de 2013 foram pagos aos trabalhadores brasileiros R$ 20,84 bilhões, observando-se, também aqui, uma extraordinária evolução, igualmente coincidente com o acréscimo de estrutura do Judiciário Trabalhista, pois o mesmo dado de 2007 indicava o pagamento de R$ 9,8 bilhões (R$ 10 bi em 2008, R$ 11,2 bi em 2010, R$ 14,7 bi em 2011 e R$ 18,6bi em 2012).
Não é diferente quanto aos tributos e contribuições sociais que o judiciário trabalhista arrecada. Dentro do mesmo período disponível para pesquisa (2008 a 2013), tem-se que a potencialidade de efetivar a arrecadação de tais valores e reverter aos cofres públicos era, no primeiro ano, de R$ 2,9 bilhões, passando em 2013 para R$ 7,038 bilhões. E sublinhe-se por necessário: essa força de arrecadação da Justiça do Trabalho é impulsionada de ofício pelos juízes do trabalho, não carecendo, para tanto, da iniciativa executória do governo, necessária nos demais segmentos judiciais.
Mas, muito mais que os valores pagos, o que efetivamente importa são os bens jurídicos protegidos pela Magistratura, de caráter imaterial. A cada dia tem assumido maior relevo a proteção à dignidade no trabalho, o que se revela sempre uma prioridade num país que tem números avassaladores em acidentes de trabalho e onde ainda são encontrados inúmeros casos de mão-de-obra análoga à escravidão.
Do mesmo modo, a Justiça Federal tem atuado no acesso à saúde, tanto nos casos de fornecimento de medicação quanto em internações na rede pública , dadas as debilidades do sistema SUS, retratadas em matérias jornalísticas do último final de semana, reveladoras de que em muitos casos só resta ao cidadão a proteção do Judiciário.
Vê-se, portanto, que mesmo com os bloqueios de hoje, os juízes brasileiros, quando minimamente apoiados pelo crescimento havido nos últimos anos, fruto da aprovação de alguns projetos de criação de Varas e de cargos de magistrados, ainda que imperfeitamente modulados no próprio CNJ, deram resposta substancial à sociedade e ao Estado.
Em resumo, as raízes da inefetividade das decisões judiciais estão, sobretudo, em causa ainda não enfrentada devidamente, que é a legislação processual condescendente com a violação de direitos. E a razão aparentemente obscura do não enfrentamento dessa circunstância está, basicamente, na falta de vontade política daqueles que, invariavelmente, se beneficiam do retardamento das demandas judiciais: segmentos dos poderes político e econômico que reagem aos necessários avanço e modernização institucional.
É relevante, portanto, compreender o papel do Poder Judiciário e, mais que isso, entender que sem Poder Judiciário forte e aparelhado não há democracia digna dessa exata designação.
Que a sociedade brasileira possa refletir sobre o tema e dar repostas, enfim, sobre a pergunta inicial: Que Justiça queremos?
Fonte: Blog do Fred / Folha de S. Paulo