Três anos depois de ter sido condenada à aposentadoria compulsória pelo pleno do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, a juíza Wandinelma Santos voltará ao cargo por ter conseguido reverter a punição em um novo julgamento. Por decisão do Conselho Nacional de Justiça, o TJ-MT reviu o caso em março e desconsiderou a decisão anterior.

A magistrada havia sido acusada de baixa produtividade, emissão de informações falsas à Corregedoria Geral da Justiça e condutas incompatíveis com o cargo. Em entrevista ao site MidiaJur, de Cuiába, ela disse ter sido “vítima de um relatório fantasioso” elaborado durante uma correição promovida em 2004 na comarca de Tangará da Serra, onde ela comandava a 1ª Vara Criminal.

“A correição foi iniciada 90 dias depois do meu licenciamento [para tratamento de saúde], quando a vara estava sob a responsabilidade de outra juíza. Meu caso foi tão estranho que nem houve a fase de sindicância. Já se abriu diretamente um Processo Administrativo Disciplinar (PAD), contrariando a ampla defesa e o processo legal”, afirmou a juíza, que ainda não reassumiu o cargo porque aguarda ser informada sobre a comarca a qual será encaminhada.

Ela disse que “teve azar”, pois as investigações e a relatoria do PAD ficaram sob as responsabilidades de desembargadores que não vieram da magistratura. “O problema não é o quinto constitucional, mas vir do quinto e não se informar.” Sobre a aposentadoria compulsória, Wandinelma relata ser “humilhante você entrar no Google e ver seu nome em páginas e páginas, mostrando uma biografia que não é a sua”.

Leia a entrevista:

Após a determinação da aposentadoria compulsória, em 2011, como ficou a vida da senhora?
Wandinelma Santos — Quando eu recebi a notícia da decisão do tribunal, eu estava em Salvador, porque minha filha estudava lá e eu a estava acompanhando. Eu recebi com perplexidade, nunca passou pela minha cabeça. Não visitei gabinete, não fui conversar com ninguém, não mandei memorial, tamanha a certeza que eu tinha de que a minha verdade, se lida, seria avalizada. Em um primeiro momento senti perplexidade, dor, mas no dia seguinte eu já tinha certeza técnica de que o julgamento tinha sido nulo devido a um quórum, entre aspas, desqualificado no sentido técnico da palavra. E aí eu passei a estudar a matéria e, nessa pesquisa, cheguei a ter contato com um dos grandes mestres do Brasil nessa área, que é o Dr. Mauro Gomes de Matos, advogado do Rio de Janeiro, especializado na área de Direito Administrativo e até então o único que havia escrito sobre Processo Administrativo Disciplinar contra magistrados.
Eu fiz contato com ele e ele se propôs a protocolar uma medida no CNJ, uma vez que ele entendia que recorrer aqui seria “chover no molhado”, pois ninguém do Pleno do TJ sequer pediu vistas dos autos. Ele entrou com um procedimento em Brasília, e na época eu expliquei a ele que eu não tinha nenhuma condição financeira de pagar os honorários que ele merecia, uma vez que a aposentadoria trouxe uma perda brutal de ganhos. E ele disse que não ia me cobrar nada, porque não suportava ver uma injustiça. Da metade da tramitação do processo para a frente, meu filho caçula passou a acompanhar. Graças a esses dois anjos consegui que esse processo que me aposentou fosse anulado por unanimidade no CNJ.

Como os magistrados, servidores e a própria sociedade reagiram com a sua condenação? A senhora passou por algum momento humilhante?
Wandinelma Santos
— Por parte de colegas recebi muito apoio. Mas é humilhante você entrar no Google e ver seu nome em páginas e páginas, mostrando uma biografia que não é a sua. Isso é humilhante, é dolorido. Com relação a magistrados, tive amigos verdadeiros que me prestaram todo tipo de apoio, outros que eu nem tinha muito contato mas que se dispuseram a ser minhas testemunhas. Fora essas cerca de dez pessoas, não recebi nenhum telefonema. Nem de colegas de primeiro grau, nem de segundo grau. Nem um telegrama de pêsames. A própria Associação Mato-grossense de Magistrados (Amam) na época não emitiu sequer uma nota de pesar.

Como começou toda essa situação que resultou na aposentadoria compulsória?
Wandinelma Santos —
Tudo nasceu de um equívoco imenso que desandou nessa violência sem tamanho que eu passei. Na época, foram determinadas correições ordinárias em todas as comarcas do interior. Noventa dias antes de iniciar essa correição na Comarca de Tangará da Serra, passei por uma perícia no Tribunal de Justiça e a junta médica concluiu que eu deveria ficar afastada por seis meses, para repouso da voz. Esse laudo foi homologado pela presidência do tribunal, e a presidência determinou que eu me afastasse para o tratamento de repouso da voz. Imediatamente, retornei para a minha comarca. Eu atuava na 1ª Vara Criminal e peguei o pouco que faltava de estoque processual e, no jargão jurídico, zerei a vara, não deixei nenhum processo para despachar, nem para sentenciar. A gestora do cartório gerou uma certidão atestando que não havia nenhum processo no estoque e eu encaminhei, por ofício, essa certidão para o então corregedor, desembargador Munir Feguri, e entrei para o meu tratamento médico na capital.

E foi nessa época que foi feita a correição?
Wandinelma Santos —
A correição foi iniciada 90 dias depois do meu licenciamento, quando a vara estava sob a responsabilidade de outra juíza. E aí, quando a equipe da corregedoria foi realizar os trabalhos no gabinete, encontrou centenas de processos conclusos, para impulso e para decisão. E, em cima desse quadro, que não era da minha responsabilidade, foi elaborado o maldito relatório. Partiu da premissa errada. Foi tão violento esse relatório que, em um dado momento, o corregedor assina o relatório dizendo que eu era “a vergonha da magistratura mato-grossense”. Eu que tinha saído, deixado meu estoque zerado, baixado o estoque da minha vara em 42%, baixei o estoque substituindo a 2ª Vara Criminal em quase 30%. Reduzi tanto o estoque das duas varas que essa mesma equipe sugeriu que elas fossem unificadas, porque tinha muito pouco processo. Eu saio, deixo um cenário quase ideal, e 90 dias depois sou chamada de “a vergonha da magistratura mato-grossense”.

O fato de a senhora não estar atuando naquele momento foi levado em conta?
Wandinelma Santos
— Mesmo depois que foi concluído que a vergonha da magistratura mato-grossense não era eu, e sim quem deixou aquela lambança, não recebi nenhum pedido de desculpas de ninguém até hoje. Esse relatório foi tão equivocado, o corregedor me pareceu que assinou ele sem ler ou prestar atenção, porque o médico que presidiu a junta médica e recomendou o meu afastamento por seis meses, Dr. Carlos Feguri, é irmão do desembargador Munir Feguri. E no relatório, é questionada a lisura do médico. É questionada a veracidade do laudo médico, então ele não deve ter lido, porque senão ele estaria chamando o próprio irmão de falsário.

Talvez não teria havido um excesso de confiança em quem produziu o relatório?
Wandinelma Santos
— Tudo nasceu em cima desse relatório, que foi assinado pelo corregedor, não sei se por excesso de confiança ou excesso de atribuição e deu no que deu. Meu caso foi tão estranho que nem houve a fase de sindicância. Já se abriu diretamente um Processo Administrativo Disciplinar, contrariando a ampla defesa e o processo legal. E esse processo, eu produzi mais de 20 volumes de provas e documentos, todos extraídos do Poder Judiciário nas várias comarcas por onde passei. Fui vítima de um relatório tão fantasioso, tão irreal, que uma das acusações mais pesadas feitas contra mim é de eu ter violado o sistema Apolo do tribunal e simulado um número excessivo de audiências em relação ao que eu teria feito na vida real.

E seria possível violar esse sistema?
Wandinelma Santos —
As audiências só são realizadas dentro do sistema. Não há como magistrado algum, nem que fosse o Mandrake, gerar um processo fictício, para gerar uma audiência. E com relação a esse item específico, quem prestou depoimento como testemunha foi o hoje presidente do TJ, desembargador Orlando Perri, que atestou que o sistema Apolo era inviolável. Ainda assim, concluiu-se no primeiro julgamento que meu caso deveria ser encaminhado à Procuradoria-Geral de Justiça por falsidade ideológica. Foi uma sucessão de absurdos.

Algo que também pesou bastante no primeiro julgamento foi a informação sobre a senhora estar em Salvador na época do Carnaval durante sua licença médica.
Wandinelma Santos
— Quando eu tirei licença para o repouso de voz, era período de Carnaval. E eu tenho um apartamento em Salvador e fui passar meu aniversário lá, com meu marido e meus filhos. Lá, um jornalista me viu em um restaurante e, para ser cortês, publicou uma nota dizendo que tinha me visto brindar o Carnaval em Salvador. O corregedor da época, desembargador Manoel Ornellas, pegou essa informação e tomou como se fosse a coisa mais grave do Poder Judiciário de Mato Grosso. Não bastou o médico prestar depoimento, não bastou o jornalista dizer que foi uma fórmula que se usa em coluna social, o desembargador Manoel Ornellas quis levar isso até o fim. Em Cuiabá também era Carnaval, se eu estivesse aqui também estaria em um restaurante e não é crime em lugar nenhum do mundo estar fora da cidade onde você mora em licença médica. Graças a Deus, todos os demais membros do Pleno raciocinaram de forma correta e o desembargador Manoel Ornellas ficou falando sozinho. Mas ainda assim, eu era noticiada como a juíza vista no Carnaval de Salvador.

Acredita que possa ter havido má-fé nisso tudo?
Wandinelma Santos —
Não posso dizer se essa sucessão de equívocos ocorreu de boa ou má-fé, só sei dizer dos estragos que causaram em mim como mulher, como pessoa, como magistrada. O desencanto, a desesperança, a dor da violência e da injustiça. Eu tive um azar nisso tudo. Quem fez o meu relatório de correição, o desembargador Munir Feguri, nunca foi juiz de Direito, ele entrou pela cota da OAB. O relator do procedimento, desembargador Rubens de Oliveira, também nunca foi juiz de Direito, não tem a menor noção do que é ser juiz, do que é comarca, do que é servidor, do que é o sistema Apolo.

A senhora então atribui esses equívocos ao fato destes desembargadores terem vindo das vagas do quinto constitucional?
Wandinelma Santos —
O problema não é o quinto constitucional, mas vir do quinto e não se informar. Não tenho nada contra o quinto, só acho que as pessoas que não exerceram o cargo de juiz antes têm que se preparar para exercer este cargo, que é de altíssima complexidade e responsabilidade.

Em seu novo julgamento, o desembargador Sebastião de Moraes, que instaurou a divergência, “abraçou sua causa” por assim dizer e convenceu os demais para reverter a condenação. Acredita que isso foi decisivo?
Wandinelma Santos — Minha vida mudou no momento em que o atual corregedor Sebastião de Moraes bradou pela justiça. Ele mesmo me disse: “eu não fiz favor para a senhora, fiz favor para a justiça”. Ele vislumbrou que no julgamento anterior, que eu fui condenada por unanimidade, nenhum dos votantes pediu vistas dos autos. Porque ele é o órgão fiscalizador e orientador e, por conta própria, foi se inteirar do processo. E ele tentou corrigir a injustiça antes feita, porque aquele mesmo pleno havia julgado e sequer processado a minha substituta por coisas muito mais graves.


Fonte: Conjur