O 3º Grupo de Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) encaminhou, nesta sexta-feira, 23, ao presidente da República e ao ministro da Justiça nota técnica sobre o PLS 7596/17. Leia abaixo:
DA LIBERAÇÃO MASSIVA DE CUSTODIADOS PERIGOSOS E DA MIGRAÇÃO DOS AGENTES DA PERSECUÇÃO PENAL PARA OUTRAS ÁREAS DE ATUAÇÃO: EFEITOS COLATERAIS DELETÉRIOS DO PLS 7.596/17
Foi aprovado e segue à sanção presidencial o PLS n. 7.596/17 que traz novas disposições sobre os crimes da abuso de autoridade.
O projeto, aprovado em votação simbólica na Câmara dos Deputados, embora talvez não de forma aparente, traz complexas rupturas a valores estruturais e principiológicos da atividade jurisdicional, tal como praticada no Brasil (e que, de resto, informam a cultura judicial do mundo ocidental).
Os efeitos disso, sem dúvida, terão enorme e quase imediata repercussão prática, especialmente em dois aspectos relevantes.
Sob a ótica da sociedade e da segurança pública prenuncia-se um inevitável movimento de hiperliberação de custodiados. Do ponto de vista das instituições, da gestão de pessoal, já se antevê a eclosão de um forte movimento de esvaziamento e evasão de agentes e operadores públicos do Direito que atuam na área penal, os quais, na medida do possível, acabarão por se redirecionar para outras áreas de suas respectivas carreiras.
Ambos os efeitos decorrem do vislumbrado potencial, trazido pelo PLS, de criminalizar a atividade rotineira das autoridades envolvidas com a persecução penal (policiais, promotores, juízes de todas as instâncias).
Nosso ordenamento jurídico vigente ainda é jovem, deriva de 1988, está em formação. O PLS 7596/17 tem potencial (aparentemente não visado) de romper qualquer paradigma contemporâneo relacionado ao trato às questões afetas à jurisdição criminal, induzindo talvez a própria superação da justiça penal, sem que outro modelo – que não o fundado na atuação do Direito penal – tenha sido instituído, coisa que nenhum país do mundo, nem o mais avançado, já logrou fazer.
Como se anuncia, ter-se-á optado, inadvertidamente, por inviabilizar os instrumentos de repressão penal como ramo de regulação das relações sociais.
Ninguém em sã consciência discorda de que quem comete abusos deve ser contido, e até efetivamente punido. Mas o problema surge quando não se define bem o que é “abuso” ou mesmo “quem” diz o que é o quê; quando não se tem por foco (ou por resultante) disciplinar o fato, mas sim a pessoa, a inibição do próprio ofício do agente público cuja missão é senão aplicar a lei penal.
Uma ilustração bem poderá dar delineamento concreto ao que ora se procura expor:
Por exemplo, esse projeto estabelece que é crime, punido com 1 a 4 anos de prisão, “deixar de deferir liminar ou ordem de habeas corpus, quando manifestamente cabível”. Malgrado aos ouvidos do leigo, do homem de boa-fé, isso soe bem (afinal, não se deve manter no cárcere quem não merece ficar lá), os profissionais do Direito sabem bem que a hermenêutica, a ciência interpretativa, traduz-se em tarefa complexa; infensa ao baralhamento retórico do “dever ser” com o que de fato “é”.
Em outras palavras: Direito não é matemática. Afinal o que seria uma liminar (ou “habeas corpus”) “cabível”? Seria aquilo que um ministro do Supremo (STF) diz que é, depois das outras instâncias dizerem que não é? Seria o que um desembargador do Tribunal diz ao determinar a soltura, por exemplo, de um suspeito da prática de um grave latrocínio por entender que, no fato concreto, não estão presentes os requisitos da custódia preventiva (ao contrário do juiz que os entendeu presentes)?
E nem se invoque, como guia interpretativo, uma suposta qualificação legal defluente da expressão “manifestamente”, do dispositivo legal ora em comento. A questão segue exatamente a mesma: quem mede o que é ou não “manifestamente cabível”? Trata-se de uma expressão aberta, uma superlativação indeterminada, não é fórmula aritmética, depende de alguns “sensos”; bons para uns, nem tão bons para outros. Varia de intérprete para intérprete, de julgador para julgador, de aplicador para aplicador.
Essa ilustração - ainda sobre o mesmo dispositivo legal projetado – pode ficar ainda mais nítida com um exemplo, um caso fictício, que muito bem poderia ser encontrado no escaninho de algum tribunal. Imagine-se que determinado juiz condena um indivíduo por tráfico de drogas. Em função algumas causas e circunstâncias, aplica-lhe a pena de 4 anos de reclusão em regime semiaberto, uma vez que entende que é esse o cabível. O segundo grau (uma turma de três desembargadores) confirma os fatos, a culpa do sujeito, a pena aplicada e manda expedir mandado de prisão (para iniciar o cumprimento da pena em estabelecimento próprio ao sistema semiaberto), que é cumprido. Com base na jurisprudência amplamente prevalente nos tribunais superiores, em casos como esse, caberia a substituição da pena por outras sanções, que não privativas de liberdade. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) em julgamentos de HCs, em processos assim, via de regra concede a ordem libertária e não raramente usa expressões sinônimas, análogas, quando não a própria: “a concessão da ordem, aqui, é manifestamente cabível, à luz de nossa jurisprudência, etc”.
E o que isso quer dizer?
Significa que o STJ, nesse exemplo apresentado, já terá balizado a ocorrência típica de um injusto penal: os desembargadores do segundo grau - e até eventualmente os demais que de algum modo concorreram conscientemente para o indivíduo ser preso (juiz, promotor, pessoal de secretaria e apoio, policiais que cumprem o mandado) – teriam cometido um crime, em sua acepção formal.
Não se desconhece, aqui, o dispositivo do PLS que sinaliza que a mera divergência hermenêutica, “por si só”, não configura o crime (§2º de seu art. 1º). Ou seja, não se ignora que procurou-se estabelecer uma causa excludente do crime; no caso, uma excludente da tipicidade, na esfera do elemento volitivo do agente.
O problema é que formalmente já se terá o crime tipificado: houve abuso de autoridade(s) porque impediu-se a liberdade de alguém quando ela era “manifestamente cabível” (conforme o “senso definitivo” de órgão superior). A excludente, a seu turno, não raro, tem que ser discutida, valorada; ainda mais sob os limites da expressão “por si só”, que lhe diminui a força e lhe retira a automaticidade.
Havendo o “crime tipificado” já se tem azo, base mínima, para em tese discutir, acionar ou representar contra a(s) autoridade(s) envolvida(s). Uma vez que a autoridade passe a ser demandada (ou se transforme em parte-ré), ela já não poderá mais atuar no caso de origem: estará impedida, quando não, em situação de suspeição.
Numa palavra: os acusados e os presos terão um vigoroso instrumento para afastar juízes, promotores, policiais, de seus casos.
E isso certamente de fato ocorrerá, com alguma frequência, notadamente para aqueles que decidem dez, vinte, trinta casos diários que envolvem a liberdade ambulatorial dos acusados, como é o caso dos titulares da jurisdição penal especializada.
E como isso repercutirá na vida real, na concretude jurisdicional do País?
Na prática, o que se vislumbra, é um golpe mortal na jurisdição criminal. Os profissionais públicos que puderem escolher, mesmo os mais experientes e vocacionados, terão fortes motivos para mudar de área, se isso lhes for possível. Poucos suportarão ficar despendendo energia para se defender das distorções e arguições que contra eles serão viabilizadas pela futura lei (e, sempre sob o risco de, ao final, se submeter a interpretações diferentes do topo da pirâmide judicante; do Ministro A, de linha mais garantista, ou Ministro B, de linha mais punitivista). Os que ficarem, seres humanos que são, no caso de dúvida de como se posicionarão as instâncias superiores, tenderão compreensivelmente a posturas liberalizantes, ainda que contrariando sua consciência jurídica. E, assim, ruirá um dos baluartes da jurisdição moderna: a independência e liberdade de consciência do agente responsável pela jurisdição.
A diferença quanto ao risco de se praticar uma conduta ilícita, quando se trata do titular do ofício em si (de interpretação e aplicação do Direito), diferentemente de quando se está na esfera da vida comum (isto é, fora da missão de julgar e promover a persecução penal), é intrinsecamente brutal, daí porque se afigura tão problemático simplesmente “criminalizar a jurisdição” (da mesma forma que não se deve criminalizar a política, pelo só exercício ordinário das atividades respectivas).
De um motorista, ao vislumbrar um radar de trânsito, na dúvida se o local permite 60 ou 80 km/h, qual velocidade se espera que ele vá imprimir? Mas de um magistrado, é razoável exigir-lhe, tendo alguma dúvida de qual seria o entendimento dos órgãos superiores (mesmo sem ter dúvida alguma quanto ao seu próprio entendimento), mantenha alguém custodiado, na medida em que um posicionamento diverso do dele poderia significar que ele próprio praticou um crime? É certo pedir que no lugar da jurisdição, do ofício isento e independente de “dizer o direito”, o agente público tenha que abandonar seu entendimento e convencimento jurídico para enveredar num angustiante exercício de adivinhação sobre se isso ou aquilo pode ser ou não considerado crime pelos órgãos atribuídos e superiores?
Ao lado da fuga de profissionais públicos a atuar na área penal advirá, não há dúvida, um enorme contingente de presos liberados, já que a avaliação de periculosidade e de proteção social será feita, doravante, não só pela análise jurídica do fato, mas sob a sombra de um possível dissenso – com efeito penal – de órgão superior, que, na impossibilidade de ser adivinhada, será presumida e antecipada do modo mais liberalizante possível.
Num resumo grosseiro: mantendo-se um acusado ou condenado preso poderá sempre haver quem entenda que a autoridade responsável cometeu um crime por abuso. Soltando-o, esse risco não há. Por isso, os que puderem, inclusive os mais experientes, vocacionados e especializados, tenderão a mudar de área de atuação. A perda qualitativa será inestimável. Os riscos sociais e à segurança pública, idem.
(*) PAULO CALMON NOGUEIRA DA GAMA
DESEMBARGADOR CRIMINAL
7ª CÂMARA CRIMINAL E 3º GRUPO DE CÂMARAS CRIMINAIS REUNIDAS
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS