4ª Vara Cível da Comarca de Montes Claros
Autos nº 43309292695-8
Autoras: L. do V. e C. Do V. S. S.
Réus: Scielo – Scientific Eletronic Lybrary Online e Associação Nacional de História – ANPUH
Ação: Indenização por danos morais c/c obrigação de fazer
Vistos, etc...
As autoras, mãe e filha, aforaram a presente ação contra as rés, alegando que a publicação promovida por elas contém um artigo com assertivas depreciativas em relação ao Cacique L. A. do V., pai e avô, respectivamente das requerentes, razão pela qual pretendem uma verba indenizatória no valor de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), per capta, bem como a correção ou retirada das informações contidas na internet sobre a referida pessoa.

Segundo as autoras, a publicação ofende a honra do Cacique L. A. do V. e, além disso, das próprias requerentes e de toda a nação Tembé.
Juntaram documentos, em especial os necessários à propositura e desenvolvimento válido da presente ação. Citadas as rés, apenas a segunda ofereceu contestação em tempo hábil, alegando, em preliminar, ausência de valor da causa e incompetência deste juízo, bem como ilegitimidade ativa e passiva. No mérito, alegou que o artigo publicado é um texto histórico-científico, foi fundamentado em pesquisas e fontes, nada havendo de ofensivo contra a honra das autoras ou do Cacique L. A. do V..

Em sede de audiência, ainda que proposta, não foi possível a conciliação entre as partes, mesmo no que diz respeito a produção de um texto próprio, por parte da autoras ou de quem indicassem, à respeito do ilustre Cacique, a fim de fazer a contraposição ao texto guerreado.
Ainda no curso da audiência as autoras, através de seu procurador, entenderam de renunciar ao depoimento pessoal da representante legal da segunda requerida.
Em face disso, vieram-me os autos para sentença.
Relatados, analiso e decido.
Quanto à preliminar argüida em relação ao valor da causa, presume-se que este se enquadra ao valor mínimo de alçada, até porque as autoras estão sob o pálio da justiça gratuita. Tal posicionamento, aliás, atende ao princípio da economia processual. No que diz respeito à alegada incompetência, tenho que dela não posso conhecer, posto que deveria ter sido argüida por exceção, visto que relativa e, portanto, obedecido o disposto no artigo 307 do CPC.

De outra sorte, o conhecimento ou análise da argüição sem a necessária observância do rito estaria violando o princípio do contraditório e do devido processo legal.

Este é, aliás, o entendimento de Nelson Nery Júnior, expressa em seu Código de Processo Civil, 11ª edição, nota 1ª:
“Incompetência relativa. Somente pode ser argüida por meio de exceção. Caso o réu argua a incompetência relativa em preliminar de contestação, o juiz não poderá dela conhecer. Como preliminar de contestação só se argüi a incompetência absoluta (CPC 301 II)” .
Eis porque estou deixando de conhecer tal argüição e dou por prorrogada a competência.
Quanto à legitimidade ativa, tenho que as autoras a possuem em face do que dispõe o parágrafo único do artigo 20 do Código Civil em vigor.
A menção feita à nação Tembé, foi meramente retórica, mas nos autos nada se requer em nome daquele nobre grupamento indígena.
Quanto a legitimidade passiva, também entendo que legítimas ambas as rés, posto que devem responder pelas suas publicações.
Apenas o pedido de retratação, nos parece, juridicamente impossível, posto que só poderia ser efetuado, se procedente, por quem escreveu a matéria, visto que se constituiria em obrigação de fazer personalíssima, razão pela qual excluo do pedido a apreciação de mérito quanto a esta parte.
Ultrapassadas as preliminares argüidas, passo a análise do mérito.

Antes, deve ser dito, que apesar de uma das rés não ter contestado a ação, não se produz os efeitos da revelia, visto que contestado pela outra.
Não acolho a alegação de prescrição, uma vez que, sob o nosso entendimento, o prazo só começa a correr quando do conhecimento pela parte interessada da suposta ofensa.

A lei de imprensa já foi declarada inconstitucional e não se aplicaria, ainda assim, à espécie. Mais uma vez, ultrapassada a prejudicial de mérito, passamos, agora sim, à questão de fundo. Trata-se de um litígio em que se opõe o direito a imagem e a honra contra o direito à liberdade de informação, opinião e de expressão. A questão se torna árdua porque o debate se dá dentro do leque, ou catálogos de direitos fundamentais. Todos os direitos em questão são acolhidos pela Constituição da República Federativa do Brasil.

Não existe divergência quanto aos fatos, ou seja, o parentesco das autoras ou a publicação e seus responsáveis. Todavia, discute-se se o conteúdo do texto é ofensivo e se um direito deve ser mitigado em favor do outro. Trata-se, pois, nitidamente de uma questão de colisão de direitos fundamentais.
Questões de tal natureza, segundo a melhor doutrina, resolvem-se ou pela ponderação (Robert Alexy), ou pela adequação (Klaus Günther e Jürgen Habermas).

A teoria de Alexy pretende que, diante de um caso concreto, como este, sejam colocadas as normas que colidem e, em face disso, verificar-se qual delas, na medida do possível (considerando a sua natureza enquanto princípio), deve prevalecer, diante da concreção dos fatos narrados pelas partes. Evidentemente que a opção pela aplicação de uma delas não exclui a validade da outra em face de outros casos que por ventura surgirem.

As teorias de Günther e Habermas , por sua vez, exigem que todos os fatos do caso concreto sejam analisados em profundidade para se verificar qual a norma adequada a ser aplicada no caso sob análise. O caso concreto diz respeito a um artigo publicado pelas rés, através de uma revista científica, que diz respeito ao Estado Novo e a conduta do então Presidente Vargas em relação aos índios brasileiros.

O autor, Seth Garfield é um historiador norte americano, que escreve sobre questões relativas aos povos indígenas nacionais.
No referido artigo o autor faz uma crítica ao Estado novo, à conduta de Vargas e a sua tentativa de se utilizar dos povos indígenas no seu governo totalitário.

Entretanto, afirma que os povos indígenas não se deixaram, em todo o seu conjunto, dominar pelo Estado Novo. Alguns grupos, com maior autonomia, agiram de forma mais agressiva contra tal política, enquanto outros, sem a mesma liberdade de ação, tentaram reverter tal política em favor dos indígenas, atuando por dentro do sistema. Parece ser neste grupo que o autor insere L. do V..

Segundo o artigo este teria escrito uma carta em 1945 a Vargas, queixando-se do tratamento recebido pelos índios no Estado do Pará. Garfield afirma que a postura do Cacique não era acrítica e que ele, embora tenha defendido o Governo Vargas, sua postura não foi acrítica, posto que teria denunciado a corrupção dos brancos no SPI (Serviço de Proteção ao Índio) e a forma de tratamento por estes dispensadas aos índios.

Segundo o artigo, L. do V. pretendia que as funções chaves do SPI fossem ocupadas por índios. Relata, ainda, que L. do V. estudou em Belém do Pará, serviu na marinha e prestou serviços por longos anos no SPI sem nada receber. As autoras se insurgem, basicamente, contra três afirmações feitas por Garfield no artigo: a) que uma das intenções do Cacique ao escrever era se auto promover; b) de que seu pai era desconhecido; c) que o que ele realmente conhecia era os costumes dos brancos.

Segundo as autoras tais afirmações atingiram a honra e a imagem do cacique, causando danos a serem reparados, em face do sofrimento a que foram submetidas ás autoras por causa do referido artigo.

Analisando os fatos, verifica-se que o artigo pretendeu, na verdade, criticar a política do Estado Novo e de seu líder, o Presidente Vargas e não do ilustre membro da nação indígena. Pretendeu o artigo demonstrar que a política de Vargas, sob uma falsa promessa de apoio ao índio, na verdade era racista e xenófobo, tratando-os como uma raça e cultura destinada a um desaparecimento natural, mas sob a tutela do Estado.
Neste contexto ele aponta dois tipos de resistência, a dos Xavantes, arredia e agressiva e dos que procuraram, por falta de outras possibilidades, operar dentro do sistema, mas sem deixar de tecer críticas à forma de aplicação da política indianista.

A nós, nos pareceu que o que o autor quis dizer como autopromoção, foi uma tentativa de um índio demonstrar que ele, como membro de um grupo indígena, estava mais preparado para agir em favor dos seus iguais do que os funcionários brancos, corruptos e sem conhecimento de causa.
De outra sorte, não sei se o autor ao manifestar o desconhecimento quanto ao nome do pai do Cacique L. do V., pretendeu lhe dar a pecha de filho ilegítimo, ou apenas pretendeu demonstrar o seu desconhecimento quanto a este dado. Entretanto, convenhamos, tal assertiva não tem o mesmo peso que a trinta ou quarenta anos atrás.

Quando afirma que era improvável que o Cacique conhecesse tanto a cultura quanto os costumes de 200 nações indígenas distintas, inclusive os seus dialetos, atribuindo um conhecimento maior do costume do homem branco, entende-se que o autor se referia à preocupação do nobre indígena com a forma desonesta e descompromissada que o branco conduzia as questões indígenas e, por isso, no seu entender, lançou um argumento imbatível, ou seja, o seu farto conhecimento da cultura indígena. Não se percebe a intenção de reduzir o caráter ou o comprometimento do líder indígena com os seus.
É provável que o artigo contenha erros fáticos e interpretativos, visto que não conheço uma obra cientifica de natureza científica ou social que nãos os contenha. Daí a importância do debate.

É possível, por exemplo, que descendentes ou partidários de Vargas não concordem com a forma que ele é retratado no artigo. Tiradentes, outro exemplo, herói nacional, é tratado por alguns historiadores como bode expiatório. Seus descendentes e partidários também podem não gostar de tais considerações, franqueando-lhes o debate. As personalidades citadas e o ascendente das autoras são com certeza, vultos históricos de grande relevo e sobre estes sempre recai o ônus da polêmica e da discórdia.

Compete aos partidários e familiares preservar e divulgar o debate, contribuindo para a construção e elevação da cultura histórica nacional.
Em uma escala de ponderação, o debate histórico nacional prepondera, no caso concreto, sobre o inconformismo das autoras em face de ponderações, supostamente, desfavoráveis ao seu ascendente.

De outra sorte, não se vê adequação da aplicação de uma norma que responsabilize as autoras por um suposto dano provocado pelo artigo combatido.
É que a publicação, por parte das rés, de uma obra científica que tem por escopo educar e informar, calcada em pesquisa e da lavra de um historiador internacionalmente conhecido e especializado em indianismo brasileiro, não pode ser considerada temerária ou negligente, enfim culposa ou dolosa, requisito este necessário em face da Constituição ou do Código Civil, para que se possa aferir o dano com fins indenizatórios.

Além do que, a crítica histórica científica, faz parte da natureza desta ciência e não pode ser considerada ofensiva, a não ser que produzida, falsamente e com único escopo de ofender, o que não se demonstrou ser o caso. Também não é adequado dizer que as rés, como sociedades empresárias do ramo, tenham assumido o risco de qualquer dano produzido por suas publicações, posto que não se trata de uma revista de “fofocas”, tão comuns, infelizmente, em nossos dias, e que tem por escopo, tão somente, dar informações sobre a vida privada de alguém, em geral “famoso”, mas, como dito, uma revista científica, sobre história, que tem por fim revelar fatos e análises relevantes para a história nacional.

Isto posto, julgo improcedente o pedido e condeno as autoras a pagar as custas e honorários advocatícios que fixo em R$ 4.000,00 (quatro mil reais), considerando o que dispõe o artigo 20 do CPC, dos quais ficam isentas por estarem sob o pálio da Justiça Gratuita.
P.R.I.C.

Montes Claros, 07 de fevereiro de 2011.
Lailson Braga Baeta Neves
Juiz de Direito
4ª Vara Cível