Na última semana, o Superior Tribunal de Justiça, fixou a tese de que o homicídio causado por motorista embriagado não combina com o agravante de não permitir a defesa da vítima. De acordo com argumento da 5ª Turma da corte, a qualificadora exige que o autor tenha, conscientemente, intenção de matar. Inédito, o desfecho poderia ter sido outro, já que o relator do caso, ministro Jorge Mussi, monocraticamente, chegou a negar o prosseguimento da Apelação.
Foi a insistência da defesa do réu, em Agravo Regimental, que levou o relator a reconsiderar sua decisão. Após a recusa, o criminalista Alberto Zacharias Toron alegou que a jurisprudência tanto do STJ quanto do Supremo Tribunal Federal já era firme o suficiente para sedimentar uma posição sobre o assunto.
Para indeferir o pedido, o ministro Jorge Mussi havia dito que, apesar de estarem “satisfeitos os requisitos de admissibilidade” do Recurso Especial admitido no Tribunal de Justiça de São Paulo, “por todo o exposto, com fundamento no artigo 557, caput do Código de Processo Penal c/c artigo 3º do CPP, nega-se seguimento ao Recurso Especial”.
O caput do artigo 557 do CPC prevê a possibilidade de o relator, monocraticamente, negar seguimento a recurso “manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior”. Toron, então, questiona: “O recurso interposto na origem está 'em confronto com a jurisprudência dominante do STF ou do STJ?'"
“A resposta é francamente negativa porque a matéria tratada no REsp encontra fundamento em julgado do eg. STF (2ª Turma, HC 86.163, relatoria do Ministro Gilmar Mendes, v.u., DJ 3.2.06) e em precedente da eg. 6ª Turma deste STJ (HC 30.339-MG, 6ª Turma, v.u., relator ministro Hamilton Carvalhido, DJ 16.2.2004)”, afirma Toron na petição.
O criminalista acrescenta que, “buscando demonstrar a alegada ‘jurisprudência dominante’, a r. decisão agravada só invoca julgado da própria 5ª Turma”. E aponta uma incoerência: “O julgado citado na r. decisão agravada, da relatoria do em. ministro Gilson Dipp (HC 36.174), foi, no ponta da qualificadora, justamente o reformado pelo eg. STF no julgamento do citado HC 86.163”. Ou seja, o único julgado que motivou a recusa do recurso por "contrariar a jurisprudência" era uma decisão da própria turma do relator, derrubada mais tarde pelo Supremo. E um efeito sintomático da pressa em acabar com os processos devido ao assoberbamento do Judiciário.
Segundo o advogado, a decisão do ministro não cita contrariedade a qualquer súmula, nem afirma tratar-se de recurso “manifestamente inadmissível” ou “prejudicado”. “Portanto, se nenhuma das hipóteses autorizadoras do artigo 557 do CPC se faz presente, o recurso (...) não poderia, data vênia, ser fulminado monocraticamente, extirpando-se, ademais a possibilidade da sustentação oral, ou mesmo de a própria turma, agora com nova composição, rever seu entendimento anterior (...)”, sustenta.
Princípio da colegialidade
Valendo-se de outro argumento, Toron disse que a decisão monocrática violou o princípio da colegialidade. Ele cita julgamento do Habeas Corpus 103.147, em que o Supremo entendeu que “não cabe ao relator examinar o mérito da causa para negar o seguimento a Recurso Especial, sob pena de indevida ofensa ao princípio da colegialidade”.
Em sustentação oral na corte, o criminalista ressaltou o direito à ampla defesa. De acordo com ele, o fato de o recurso não ter sido levado a julgamento colegiado “solapou duramente o direito de defesa do recorrente”.
Entenda o caso
Raphael Cordeiro de Farias Wright foi acusado de atropelar e matar Ângela Maria de Moraes, assessora do Tribunal Regional Federal da 3ª Região e ex-mulher do desembargador Márcio Moraes, ex-presidente do TRF-3. O caso ocorreu na madrugada do dia 16 de outubro de 2003, na Avenida Paulista, em São Paulo. De acordo com a acusação, o veículo cruzou um sinal vermelho quando Ângela atravessava a rua.
Apesar de a denúncia ter afirmado que o motorista estava em alta velocidade e embriagado, na decisão que o mandou a júri popular (sentença de pronúncia), o juiz desqualificou o crime. Havia marcas de frenagem na pista, o que indicaria que ele tentou parar o carro, e por isso o julgador entendeu que se tratava de homicídio com dolo eventual. O Ministério Público recorreu e o Tribunal de Justiça de São Paulo reverteu a decisão para reincluir a qualificadora do uso de meio que impossibilitou a defesa da vítima, ainda que o enquadramento fosse por homicídio com dolo eventual.
A defesa foi ao STJ alegando que, pela sua própria natureza, o dolo eventual é incompatível com a qualificadora em questão. Disse que ela exige a “atuação específica do autor do delito no sentido de escolher o meio empregado para a prática da infração penal”, e que a impossibilidade de defesa da vítima tem de ser causada por uma conduta consciente do agente, não bastando o fato de ele estar dirigindo sob a influência de álcool ou acima dos limites de velocidade.
Ao analisar o caso, Mussi, relembrou que o crime é considerado doloso "quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo". Ele esclareceu que o dolo pode ser direto, quando se quer o resultado lesivo, ou eventual, quando, com sua conduta, o agente simplesmente assume o risco da lesão.
O ministro acrescentou que a qualificadora trata de um artifício que, impossibilitando a defesa da vítima, “eleva a probabilidade de sucesso da empreitada” e coloca a salvo o criminoso, porque evita uma reação. Por isso, concluiu que a incidência dessa qualificadora pressupõe a intenção do resultado. Assim, a Turma determinou, em decisão unânime, que fosse excluída da decisão de pronúncia a qualificadora prevista no artigo 121, parágrafo 2º, inciso IV, do Código Penal.
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Fonte: Conjur