Eu quero e eu preciso de Justiça”. Foi com esse pensamento que Eliane Soares, 42 anos, decidiu que não iria mais ficar calada diante da violência que estava sofrendo, havia um ano. Técnica em enfermagem e morando em Belo Horizonte, Eliane não poderia imaginar pelo que iria passar ao lado de uma pessoa em quem ela confiava e que escolheu para dividir sua vida. As violências começaram devagar, com agressões verbais seguidas de arrependimentos. “Eu achava que não era nada grave e que não iria acontecer comigo”, contou. Quando as coisas começaram a piorar e as violências foram ficando mais intensas, Eliane decidiu que precisava de ajuda e foi buscar o apoio da Justiça. “Fiquei com muito medo de agir, diante de tantos casos que a gente escuta falar, mas se eu não fizesse nada, poderia acabar sendo mais uma estatística”, desabafou. As marcas que ficaram no corpo, resultado de queimaduras que sofreu por conta da violência doméstica, a fazem lembrar tudo o que passou, mas, em contrapartida, demonstram também sua força e persistência em optar pela luta contra aquilo que lhe fazia mal.

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“A Justiça atendeu ao meu pedido de socorro, e agradeço muito a todo o sistema de Justiça. Desde o momento em que fui à delegacia até o julgamento e a sentença. Essa tranquilidade me foi trazida pela Justiça mineira, foi o que me deu e me dá muita força”, disse Eliane Soares. Caso semelhante aconteceu com Rosemary Hermogenes, 51 anos, que conseguiu dar a volta por cima. Depois de perder a irmã, vítima da violência doméstica, Rosemary, que sofreu agressões físicas e verbais durante toda a sua vida – a violência doméstica começou quando era criança, vendo seu pai agredindo sua mãe – decidiu colocar um ponto final nesse sofrimento. Ela recordou a época em que ela e a irmã não tinham coragem de denunciar e sofriam ameaças quando manifestavam o desejo de fazer isso. Depois de perder a irmã, ela foi atrás da Justiça e, hoje, seu ex-cunhado está preso. Ela também se separou de quem a agredia e chama a atenção para o fato de que a violência doméstica não escolhe classe nem cor. “A violência pode estar em todos os lugares”, disse. Para Rosemary, o acolhimento no Judiciário é fundamental para que a mulher encontre forças, e sua resposta frente às denúncias é o que traz alívio.

PAZ EM CASA

“O JUDICIÁRIO É O ÚLTIMO GRITO DE SOCORRO DA VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, É ONDE ELA BUSCA APOIO QUANDO NÃO TEM MAIS SAÍDA. NÃO PODEMOS VIRAR AS COSTAS PARA ESSA MULHER” - DESEMBARGADORA KÁRIN EMMERICH

A violência doméstica e o feminicídio foram abordados intensivamente pelos tribunais de todo o País entre os dias 20 e 24 de agosto, durante a 11ª Semana da Justiça pela Paz em Casa, campanha proposta pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em Minas Gerais, somente no ano de 2017, mais de 145 mil mulheres foram vítimas de violência doméstica, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado. No TJMG, assim como em outros tribunais, foram priorizadas as audiências referentes à violência doméstica e, em especial, o crime de feminicídio, considerado hediondo por ser cometido em razão da condição do sexo feminino.

ENFRENTAMENTO

“DEVEMOS ESQUECER AS HOMENAGENS E OS DEBATES APENAS EM DATAS COMEMORATIVAS E TRATAR A QUESTÃO DA MULHER EM UMA AGENDA COMUM, DURANTE TODO O ANO, PARA QUE POSSAMOS FALAR MAIS SOBRE ISSO” - DESEMBARGADORA ALICE BIRCHAL

Superintendente da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Comsiv) do TJMG, a desembargadora Alice Birchal participou da abertura da Semana da Justiça pela Paz em Casa e destacou a questão do preconceito e do silêncio. Para a magistrada, existe uma dependência - psicológica, emocional e financeira - muito grande que impede a mulher de denunciar. “Levantar e debater esse assunto, bem como realizar campanhas educativas, são trabalhos que mostram a preocupação dos tribunais de Justiça com a questão da violência doméstica. O Poder Judiciário está empenhado nisso. Devemos esquecer as homenagens e os debates apenas em datas comemorativas e tratar a questão da mulher em uma agenda comum, durante todo o ano, para que possamos falar mais sobre isso”, defendeu. Nesse contexto, é fundamental que os magistrados estejam preparados para receber essas demandas. Pensando nisso, a desembargadora Kárin Emmerich, integrante do Comitê Técnico Gestor da Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes (Ejef) do TJMG, falou sobre o empenho da Escola nesse sentido. “A Ejef oferece cursos de capacitação no combate à violência doméstica para os juízes da ativa. Estamos trabalhando na implementação de um curso para aqueles magistrados que vão ingressar na carreira”, adiantou. De acordo com a desembargadora, é objetivo do Judiciário aprimorar, cada vez mais, a capacitação do magistrado que vai receber essa vítima. “O Judiciário é o último grito de socorro da vítima de violência doméstica,é onde ela busca apoio quando não tem mais saída. Não podemos virar as costas para essa mulher, e temos que oferecer a ela um olhar diferenciado, um acolhimento e um fortalecimento”, argumentou. Nos últimos anos, o TJMG investiu em parcerias para atuar na recuperação e reeducação do agressor, por meio do encaminhamento dele a grupos de reflexão conveniados com a Justiça estadual. Também foi ampliada a competência das varas criminais da Comarca de Belo Horizonte especializadas no combate à violência doméstica. De acordo com o TJMG, nas ações e processos decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da Lei Maria da Penha, esses juizados passaram a ter permissão para homologar acordos que envolvem direito de família.

AUDIÊNCIAS DE FORTALECIMENTO

“A INVERSÃO DOS VALORES VIGENTES [NA AUDIÊNCIA DE FORTALECIMENTO], FAZENDO COM QUE A MULHER SAIA DA POSIÇÃO DE VÍTIMA E ASSUMA UM PAPEL DE PROTAGONISTA DA MUDANÇA” - JUIZ MARCELO GONÇALVES DE PAULA

O juiz Marcelo Gonçalves de Paula, titular do 2º Juizado de Violência Doméstica e Familiar de Belo Horizonte, implantou uma metodologia inédita que vem sendo utilizada por ele na solução desse tipo de conflito na capital. Batizada de “audiência de fortalecimento”, a prática dá oportunidade à mulher de dizer ao agressor, que só escuta, tudo aquilo que sempre a incomodou e a oprimiu durante o tempo em que tiveram um relacionamento conturbado. Essa modalidade de audiência é empregada nos casos em que o agressor é reincidente no descumprimento de medidas protetivas já aplicadas anteriormente. “Ela fala; ele escuta, somente”, contou o juiz Marcelo de Paula. Em cada caso, a conveniência de realizar esse tipo de audiência é avaliada pelo Ministério Público (MP), pela Defensoria Pública (DP) e pelo juiz, e deve haver consenso. De acordo com o magistrado, a prática tem o objetivo de desconstituir uma das principais bases do machismo, que é a submissão. Nesse contexto, a proposta do projeto é estimular “a inversão dos valores vigentes, fazendo com que a mulher saia da posição de vítima e assuma um papel de protagonista da mudança”, esclareceu Marcelo de Paula. A ideia para criar esse procedimento, segundo o juiz, veio depois de ele observar a relação entre agressor e vítima. O magistrado percebeu que uma das grandes bases da relação que resulta em um ato de violência é a submissão, além da consciência, por parte do agressor, do medo que a vítima sente dele.

METODOLOGIA

Na audiência, a mulher é convidada a falar o que quiser. A metodologia proposta muda paradigmas no atendimento dado pelo Estado à mulher em situação de violência doméstica. Até então, contou o juiz, vítima e agressor não se encontravam, preferencialmente. Para ele, no entanto, em determinados casos é importante que esse encontro aconteça. Marcelo de Paula afirmou que, depois desse encontro, o agressor é obrigado a frequentar os grupos reflexivos promovidos pela Polícia Civil. As sessões, em grupo, são realizadas com o apoio de uma equipe multidisciplinar. Já a mulher é encaminhada para um instituto de apoio, que também conta com uma equipe multidisciplinar e é ligado à Secretaria de Estado de Trabalho e Desenvolvimento Social (Sedese). Após essas etapas, o juiz retoma o caso e avalia se outras medidas precisam ser tomadas.

VALE DO RIO DOCE

Na Comarca de Guanhães, no Vale do Rio Doce, diversas atividades foram desenvolvidas, durante o mês de agosto, visando o combate à violência doméstica. A juíza da 2ª Vara Cível, Criminal e da Infância e da Juventude, Aline Damasceno Pereira de Sena, contou que as iniciativas abrangeram três eixos: institucional, educacional e cultural. Dentre as ações, um protocolo foi assinado entre segmentos da sociedade local para o atendimento às vítimas de violência doméstica, tendo como ponto central a articulação de uma rede de proteção permanente, com canais de comunicação simplificados e um atendimento humanizado e ágil para ações preventivas. Além disso, ações foram organizadas em parceria com o Poder Executivo, Conselhos Tutelares, Polícias Militar e Civil, Defensoria Pública, OAB-MG, Ministério Público e setores da sociedade civil, visando o atendimento e o enfrentamento constante à violência doméstica. Para Aline Damasceno Pereira de Sena, a questão da violência doméstica exige muito mais do que a simples atuação repressiva do Poder Judiciário, pois as raízes desse problema estão relacionadas a uma cultura que estimula a reprodução de comportamentos violentos em relação às mulheres. “As ações realizadas em agosto nos deram enorme satisfação por atuarem sob o viés preventivo e de contenção da progressividade da violência, demonstrando às atuais e futuras gerações que é possível a construção de um relacionamento amoroso e familiar saudável, e que, com isso, ganham a família e toda a comunidade”, afirmou a magistrada. Em agosto, também foi promovido na comarca mais um encontro do 13º Grupo Reflexivo de Autores da Violência Doméstica, em que temas relacionados à violência foram debatidos, como aplicação de medidas protetivas e implicação de condutas. Esse projeto já existe na comarca há cerca de dois anos. Também foi feita a exposição fotográfica “Ajudem Aquela”, patrocinada pelo Coletivo “Filhas de Frida”, no Fórum de Guanhães. Voluntárias foram maquiadas com temas alusivos à violência doméstica e foram fotografadas. No mesmo dia, foi exibido o filme “Eu não sou um homem fácil”. Além disso, a juíza Aline Damasceno e o promotor Luciano Sotero Santiago ministraram uma palestra sobre os dispositivos da Lei Maria da Penha e os tipos de violência doméstica contra a mulher para adolescentes da rede pública de ensino de Guanhães.

UNIÃO

“A UNIÃO FAZ A FORÇA, E A CASA DA JUSTIÇA ESTÁ COM AS PORTAS ABERTAS PARA RECEBER TODAS AS REDES DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. UMA MULHER SOZINHA PODE SER MAIS FRÁGIL. MAS, SE ELA ESTIVER AO LADO DE MUITAS, ELA SERÁ FORTE” - JUÍZA MARIXA FABIANE LOPES

A juíza presidente do 1º Tribunal do Júri de Belo Horizonte, Marixa Fabiane Lopes, participou da Semana pela Paz em Casa, na capital mineira, e falou ao DECISÃO sobre a importância da união de todos em prol do combate à violência doméstica. “A união faz a força, e a Casa da Justiça está com as portas abertas para receber todas as redes de enfrentamento à violência doméstica. Uma mulher sozinha pode ser mais frágil. Mas, se ela estiver ao lado de muitas, ela será forte”, disse ela, acrescentando a dicotomia presente nos júris. “Se, por um lado, ele representa dor e tristeza de familiares de uma vítima fatal do feminicídio, por outro, simboliza a realização da Justiça. É diante deste plenário, composto por jurados, que haverá a realização da Justiça; é onde os cidadãos dirão qual Justiça querem para si”, apontou.

*Reportagem Especial publicada no Jornal DECISÃO - edição de setembro de 2018